sexta-feira, 27 de junho de 2008
Deficiência.
Apesar da deficiência, ele parecia saber tudo que ocorria à sua volta.
Alegre, um pouco estabanado é verdade, mas, feliz, vivia distribuindo sorrisos e objetos espatifados por onde seu corpanzil passasse.
Um dia porém, na ante-sala de espera do ACD, uma garotinha, talvez uns 7 ou 8 anos, loira e bonita, sentada ao lado de sua mãe, olhando-o atentamente fez a seguinte observação. A sua voz soou alta e clara como a sua inocência:
-Nossa mamãe! Que garoto estranho! Tem olhos parecidos de um japonês mas, não se parece com um japonês.
O garoto síndrome de down ouviu. Apesar do esforço, não conseguiu concatenar o raciocínio e assimilar a conclusão da garotinha. Só ficou ali, parado, estático, um tanto triste por imaginar-se ofendido. Tal qual a garotinha, ele se encontrava com a sua mãe; era o dia de sua avaliação. Atingido, sentiu necessidade de ir à forra:
-Mãe, por que toda garota loira é burra? - Ele havia ouvido dezenas de vezes dos garotos da sua escola a tal famigerada piada da "loira burra".
-Filho, que é isso? - Comporte-se Fernando! - Admoestou-o a mãe.
As mães entreolharam-se amistosamente, sorrisos cúmplices e resignados.
Os garotos porém, se olharam num misto de antipatia e empáfia, mas algo tão momentâneo que não perdurou duas pulsações de um coração.
Momentos após, viu-se abrir nele um sorriso maravilhoso. E os olhos parecidos de um japonês, mas que não eram de fato de um japonês, brilharam esplendorosamente. E então ele se ateve nas reluzentes hastes metálicas que amparavam as pernas dela. Ela percebeu que ele mantinha o olhar fixo no seu aparelho, então sorriu-lhe timidamente. E a olhando novamente, concluiu que por mais que reluzisse aquele metal , jamais seria o suficiente para ofuscar os mágicos e resplandecentes olhos azuis daquela loirinha que ele achara tão linda.
sexta-feira, 20 de junho de 2008
Gaudêncio, um touro gaucho em Madri.
Olééééé! - Grita a platéia enquanto o toureiro se apronta nos requintes cênicos, pois o grande show estava por ser finalizado.
Ali da onde estava pressenti a fúria da lâmina e o derradeiro momento aproximando. Eu havia conhecido o meu amigo há pouco, entretanto devido as nossas diferenças idiomáticas quase nada pudemos falar ou entender. Lembro-me ainda que nos mantinham num local úmido, de parca luminosidade e de poucos metros quadrados. E eles nos incitavam aos gritos e tremulando pequenos lenços vermelhos, principalmente o meu amigo que, repentinamente se viu no centro da arena. Antes que ficasse longe das minhas vistas lembro-me de ter-lhe desejado um “Buena suerte compañero" afinal ele precisaria. Recordo também que se virou e olhou na minha direção e sorriu de forma estranha e sombria. E até hoje e sempre que me lembro dele me questiono se o enigma em seu sorriso se estampava por saber o que o aguardava, ou por não ter como rebelar-se diante o conformismo da morte. E foi assim embutido nas minhas incertezas que eu e mais meia dezena de touros o vimos às bufadas profundas, iradas com uma de suas patas dianteiras riscando o chão com contundência, criando rastros na terra. Depois disso fecharam o imenso portão e nada mais vimos, exceto o alarido dos espectadores.
Passado algum tempo reabriram o portão e lá na arena arredondada, entre um misto de terra e areia foi que tomamos ciência da verdade suprema, já que a única que interessava a ensandecida platéia era o combate entre o homem e o animal, o toureiro e o touro. E a peleja continuou por algum tempo com o toureiro fazendo sua capa ondular para frente obrigando o meu colega abaixar a cabeça, e assim atacá-lo. Era visível o desgaste do touro, até que ficou à merce do matador e do seu pontiagudo florete. O algoz estava á cinco ou seis passos de um touro extenuado quando se fez a hora da verdade, onde num lance de esperteza o matador crava a espada no pescoço do meu amigo cortando-lhe a aorta. Eu pude sentir a lâmina penetrando como se fosse na minha carne, assassinando, embaçando os olhos do touro que agora protagoniza a cena patética, a agonia enfeitada por seis ou sete coloridas bandeirolas cravadas em seu dorso. A contenda desumana brinda a platéia que exala os odores dum animal abatido enquanto eu sinto algo ruim por dentro, e tento vê-lo mais uma vez, mas o que me salta aos olhos é a terra tingida numa cor viva e que a todos excita, inclusive a mim. Sim, é a pura verdade, pois o encarnado sempre mexeu e mexerá comigo e com meus semelhantes, aliás, assim é, e assim será sempre. E agora o meu amigo passava por situação dramática ao sentir o sangue jorrando de sua carne como a fenda dum poço petrolífero, e o líquido espesso escorrendo do seu pescoço como um rio furioso que abre veios na mata.
E era tudo muito doloroso, e o víamos tombar à arrogância do algoz, mas ele era um bravo, um touro valoroso que compreendia o matador vestido num garboso traje. Sim, o meu parceiro apesar de ser um animal não era pretensioso e nem mesquinho, portanto podia compreender a necessidade das reverências do sujeito diante o aplauso do público. Talvez em seus últimos instantes tenha descoberto que apesar da contradição, a plateia humana é partidária da violência, ou à ela faz vistas grossas, e isso estava bem nítido diante da sua dor. Enfim, era assim o espetáculo, um show que não desconhece estar o touro e o toureiro à merce da gula da morte, ambos tentando salvar a sua pele ao se beneficiar do erro oponente. Mas dessa vez o homem prevaleceu, e o meu guerreiro amigo supondo que lhe restara alguma virilidade tentou se levantar do chão com os seus mais de 550 quilos, mas não havia força, apenas o instinto e um lamento mugido que confirmava que estava sucumbindo, mas que não era um covarde.
E ao fim, como se fosse ele um herói a quem é ofertado um minuto de vida o meu amigo viu o toureiro atirar o chapéu para uma linda jovem dispersa no meio da multidão no instante que os raios de sol daquele fim de domingo foram se apagando um por um como os sensores manipulados por dedos humanos.
Tudo se sacramentou quando meu amigo cerrou os olhos num aceite do fim.
Se dissesse para vocês que não senti o frio escorrendo por minha
ossatura, mentiria, ainda mais porque eu seria o próximo a desfilar o meu par de patas. Ah sim, ainda não sabem o meu nome, e com todo o prazer lhes digo; Gaudêncio Bravo, um legítimo
touro gaúcho perdido nas terras do flamenco! De linhagem nobre, eu descendo de
Fulgêncio Bravo, meu avô, o primeiro touro a tocar as 4 patas nas Plaza de Toros de
Madri. Éramos sim de uma linhagem combativa, e meu avô quando jovem e por sua
bravura ganhara de Don Henriques uma passagem de navio para a capital da Espanha. Sim!
apesar do ingresso ser só de ida (pois não se sabia se haveria volta) era nada mais que sua conquista reconhecida por Don Henriques Cerda, dono de muitas
terras ao sul do nosso grande Rio Grande.
E em se falando de Don Henriques conta a história que ainda jovem ele deixou a sua Espanha vindo fixar residência em nosso estado, Contam ainda as linhas que, sendo fanático por touros e touradas deu início á criação de touros duma estirpe nobre e da qual o meu avô foi o expoente. Portanto o milionário empresário acompanhando as virtudes e combatividade de vovô lançou-o a própria sorte levando-o ao país das touradas.
E foi assim que vovô se viu á bordo dum cargueiro com destino a Espanha, fato que poderia trazer-lhe a glória ou o triste fim como o de tantos outros touros. Querem saber se vovô morreu? Não! Vovô está aqui, e vivo, bem vivo, apesar da idade. E sobre a sua experiência nas touradas em solo madrilenho lembro da sua narrativa e dos fatos que aconteceram num feriado de muito sol e com a plaza totalmente lotada; Vovô enfrentaria nada mais, nada menos que o espetacular Domingos Figueras “El Vingador” como era conhecido á época. Sim! Figueras quando toureava era a garantia de lotação completa, cultuado por fãs que até hoje o reputam entre os três maiores da história.
E em se falando de Don Henriques conta a história que ainda jovem ele deixou a sua Espanha vindo fixar residência em nosso estado, Contam ainda as linhas que, sendo fanático por touros e touradas deu início á criação de touros duma estirpe nobre e da qual o meu avô foi o expoente. Portanto o milionário empresário acompanhando as virtudes e combatividade de vovô lançou-o a própria sorte levando-o ao país das touradas.
E foi assim que vovô se viu á bordo dum cargueiro com destino a Espanha, fato que poderia trazer-lhe a glória ou o triste fim como o de tantos outros touros. Querem saber se vovô morreu? Não! Vovô está aqui, e vivo, bem vivo, apesar da idade. E sobre a sua experiência nas touradas em solo madrilenho lembro da sua narrativa e dos fatos que aconteceram num feriado de muito sol e com a plaza totalmente lotada; Vovô enfrentaria nada mais, nada menos que o espetacular Domingos Figueras “El Vingador” como era conhecido á época. Sim! Figueras quando toureava era a garantia de lotação completa, cultuado por fãs que até hoje o reputam entre os três maiores da história.
E naquele mortal combate vovô Fulgêncio num dia
de muita sorte e mágica performance, mesmo que duramente estocado
aproveitou-se de um vacilo de "El Vingador" que se firulava garboso pela arena “mais alegre que paisano a meia-guampa” e desferiu-lhe uma chifrada certeira. O osso se cravou na coxa de Figueras deixando-o " mais esburacado que um poncho
de calavera”.
Ah vovô..vovô! E cá estou tchê, em Madri, e para que seja cumprida idêntica sina como a dele fui trazido por Ignácio
Cerda, legítimo herdeiro de Don Henriques, e que, tal qual o falecido pai é fanático por touros e touradas. Sim! e se aqui estou é pelo esmero do exigente Ignácio, pois só traria para a Europa um touro de mérito e personalidade, assim como eu. Portanto o herdeiro direto de Fulgêncio Bravo será eternamente grato ao avô, pois sob seus régios ensinamentos
é que me fiz valente e esperto, ganhando dos peões a alcunha de Gaudêncio "O Exterminador”. Sim, lá no sul todos me conhecem, pois sou um touro “mais forte que peido de burro atolado” e certamente o mais respeitado pela nação guasca.
Portanto era aquele o meu momento, e rapidamente procurei esquecer o que acabara de acontecer ao meu amigo, e assim me alicercei num espírito indomado e “mais apressado que cavalo de carteiro” adentrei a arena para enfrentar Murilo Badaró, à época um dos mais famoso e audazes toureadores da Plaza de Madri.Lembro-me como se fosse hoje que, antes de pelejar com o tal toureiro, um senhor, “mais enfeitado que carroça de cigano ”, montado num imenso cavalo branco adentrou a arena. Não era difícil perceber que trazia numa das mãos uma enorme lança pontiaguda. Curioso me aproximei e foi então que num gesto audaz ele o apontou para o meu dorso e cravou a lança.
Bah tchê! Que dor! Aquilo me deixou “mais nervoso que potro com mosca no ouvido”. Furioso com a sua atitude resolvi partir pra cima do sujeito e de sua nobre montaria.
Qual o quê, tchê! Quanto mais eu chifrava a barriga do animal, mais meus córneos colidiam numa espessa manta metálica, evitando qualquer ferimento no famigerado quadrúpede. E por mais que continuasse chifrá-lo, por mais que usasse da minha descomunal força, a única coisa que conseguia era recuá-lo um ou dois metros. Ainda sendo espetado pela lança no dorso, patinei com truculência as patas dianteiras, e isso pareceu surtir efeito, pois apesar dos ferimentos causados o homem não mais me tocou. Instantes de indecisão e eles pareciam desinteressados, portanto foi sem surpresa que notei que os par de desaforados se retirando do picadeiro. Pensei naquilo por momentos, e talvez devam ter pois percebido que poderiam entrar numa fria, já que não é aconselhável espezinhar touro brasileiro.
E assim fiquei por ali sem entender grande coisa, e triscava furiosamente as patas na terra quando surgiram alguns rapazes de roupas esquisitas, pois suas indumentárias justas e coloridas se faziam acompanhar de capas cor-de-rosa.
Subitamente se postaram cada qual num ponto da arena e ficaram por lá tremulando suas capas com o intuito de chamar a minha atenção; eu não era bobo!.
Contudo eram acintosos demais, e assim que me aproximava se escondiam atrás dum biombo dum madeiramento forte e grosso. E se ainda não bastasse, fiéis ao intuito de me deixarem mais furioso continuavam a me incitar por trás da robustez da madeira. Ora uma saia da proteção e ficava tremulando a capa, e tão logo eu chegava próximo ele voltava a se esconder. E assim ficaram algum tempo,e eu dava um carreirão num aqui, outro acolá, até que, também desinteressados acabaram se retirando do palco; Realmente aquela brincadeira estava bem chata. Entretanto, quando achei que tivessem desistido foi que surgiu na arena um par de sujeitos com roupas mais enfrescalhadas ainda. Achei-os curiosos e enigmáticos, pois cada um deles portava três bandeirolas coloridas. Achei-os corajosos quando os vi na louca desabalada em minha direção. E eram rápidos aqueles danados que com braços esticados para o alto empunhavam bandeirolas e depois as apontavam para mim com a intenção de fincá-las em meu dorso. Aliás, dando a impressão não! Realmente eles cravaram seis delas em meu lombo, deixando-me “mais enfeitado que bombacha de turco”. Depois, e talvez com a premonição de que as coisas poderiam ficar difíceis para eles, resolveram tais quais os outros a sumirem dali, E eu os via correrem e sumirem pelos biombos protetores, felizes como as puta em dia de pagamento no quartel. Claro, era bom que demonstrassem respeito por mim, apesar de ser chatíssimo estar ali sozinho e com cara idiota, assim como esses sujeitos “mais perdidos que cachorro em procissão”.
Foi quando ouvi urros, berros e uivos, pois era o povo saudando o seu herói. Lá estava ele em carne e osso, Murilo Badaró e seu traje reluzente, talvez até "mais faceiro que mosca em rolha de xarope” A sua capa diferia dos demais, um vermelho cor de sangue, e obviamente isso me excitou. Entretanto Murilo me parecia estranho, e eu olhava os seus trejeitos e o achei afeminado á bordo daqueles gestos milimetricamente estudados, algo mais apropriado para um bailarino de classe como Mikhail Baryshnikov. E ele parecia zombar de mim, e sorria e acenava galhardamente para a multidão que o aplaudia e jogava-lhe todo tipo de badulaques.
Sim! Tive que sorrir ironicamente para ele e para a turbe; Eram todos uns espalhafatosos farsantes!
Ao iniciar a “corrida” ficamos nos estudando mutuamente, pois logo de cara percebi que queria o meu escalpo. E durante nossos estudos ele caminhou com passos comedidos, algo cênico até. Bem, uma coisa tenho que confessar; Badaró entendia daquele negócio de touradas. E digo isso porque era perfeita a nobreza dos seus gestos no perfeccionismo do apronto corporal. E aquele show refinado estava me deixando confuso e eu não conseguia enquadrar os meus chifres no centro de sua capa vermelha, embora sempre soube que a perfeição inexiste, e isso obrigava a me manter esperto, pois presenciei as cenas de um pouco antes.
Eu riscava os chão com as minhas patas tentando descobrir os pontos falhos e o seu calcanhar de Aquiles para meter-lhe os chifres e acabar com aquela farsa. E assim ficamos por quase vinte minutos quando ele me pôs a correr desembestado ao tremular com veemência a sua capa vermelha.
E eu corria na direção do descomunal lenço grená e ele rapidamente levantava a capa fazendo passar por debaixo dela. “Oléééé.....Oléééé” bradava a plateia em todas as vezes que meus chifres enfurecidos não acertavam a sua capa, apesar de senti-los por duas ou três vezes resvalando em seu corpo; O diabo é que ele e sua capa eram mais lisos que sapo ensaboado.
E foi desta forma que aos poucos e se aproveitando do meu extenuamento que ele cismou zombar de mim ao tourear-me de joelhos. Confesso; nunca me sentira tão humilhado.
E sua atitude me era inacreditável, e não compreendia o fato de não conseguir acerta o homem mesmo estando ele de joelhos. Pensei naquilo e talvez aquele homem mantivesse algum pacto com o diabo, não sei. A platéia era unicamente delírio, e Badaró naquele instante era mais importante que o Rei da Espanha. E ele agradecia com reverências, ele, a espada e sua capa vermelha. Eu estava exausto e prestes a pedir um bom suco de capim quando soou uma espécie de corneta. Pela reação do público percebi que se tratava de algo muito importante, pois não mais se ouvia qualquer sussurro. Agora, Badaró, “mais sério que guri borrado”, aponta-me a espada, e ela está em riste, com selar o sinal da cruz em minha cabeça. Então entendi o instante ao reviver as cenas com a amigo da tourada precedente. Não havia dúvida, Badaró queria o meu couro, pois os seus olhos destilavam a sentença de minha morte..
“Eia toro!...Eia!” Ele bradava ao olhar fixamente para mim.
Eu procurava não olhar nos seus olhos, mas apenas me concentrar na espada e nos movimentos da sua capa.
“Eia toro! Eia toro!!” - Ele desafiava-me chegando cada vez mais perto. No resto das minhas reservas sabia que para mim poderia a contagem regressiva, a hora fatal. Por instantes roguei pragas em Ignácio, afinal, o que eu fazia ali?
“Eia toro!...Eia!” – Ele persistia na altivez –
Então me atacou e o instinto me fez desviar o corpo do florete que se fincaria no ponto mortal em meu pescoço. Eu ainda pude sentir no ouvido direito o assobio provocado pelo lâmina. Foi o momento que Badaró perdeu ligeiramente o equilíbrio, e eu, virando decididamente a cabeça para o lado direito o estoquei com força com o chifre, diga-se, com o mais pontiagudo deles.
“Aiiiiiiiiii” - Eu ouvi, o seu grito de dor.
Pelo fato de eu estar tão desgastado o golpe não se cravou em seu bucho, como pretendia, mas na região do seu baixo ventre, exatamente no saco escrotal. Badaró provavelmente olhava para mim com horror enquanto o sangue tingia a parte frontal do traje afrescalhado. Sim, não houve qualquer trabalho para retirar o chifre daquilo que um dia foi a prova de sua possível masculinidade. Assim que se viu livre do chifre Badaró gemeu de dor e se misturou ao pó da terra à “rolar mais que pau de enchente”. Ele estava completamente vencido, entregue, pronto para ser por mim liquidado. A minha mente queria matá-lo, porém algo perturbava, pois mesmo antes de lhe enfiar o chifre alguma coisa sussurrava dentro de mim como gentil ordem divina; “ Vamos lá Gaudêncio! Largue de ser durão! Fite o pobre, olhe bem nos olhos do sujeito"
E eu o olhei..............................................................................................................................
Bom...devem estar se perguntando; mas qual foi o problema?
Bem...então vou lhes dizer; O problema foi não seguir as recomendações de vovô:
“Meu filho, nunca mire os olhos dum toureiro” – Foi o que havia alertado semanas antes de me empreender na viagem desafiadora.
E foi assim, desprezando a sapiência e não seguindo os conselhos do velho foi que olhei para aquele sujeito que queria me tostar no espeto.
Ai meu Deus! Que homem mais lindo! Agora eu podia notar a maciez da tez e sua pele amorenada pelo sol. Como não me render ao contorno suaves daquele corpo sarado? Ai Jesus! As pernas eram fantasticamente torneadas, tudo de bom; compridas e musculosas. Isso sem comentar os cabelos negros com mechas platinadas, E então?
Belo! ele era belo, belo, belo! .
Porém, desgraça pouca é bobagem, assim me lasquei nos seus malditos olhos de lince.
___________________________________________________________
Hoje eu e Badaró vivemos felizes aqui no Rio Grande do Sul, e ainda me preocupo com ele, afinal, toureiro que se preze jamais perde a mania de pelejar.
Debilitado fisicamente e na surdina ele é achincalhado anonimamente pelos empregados da fazenda, os quais conheço por nomes, cabendo-me vez ou outra dar um carreirão naqueles metidos à besta. Sim, sou cuidadoso à ponto de tornar-me temeroso, pois o vejo treinar à exaustão no improviso duma arena colada ao pasto maior. Claro, percebo o seu andar manquitola diante daqueles peões sem refino, toureando rezes menores, sem expressão, todos uns grandes covardes, pois aposto que jamais pelejariam com um touro de verdade. Evidente, eu sou esse touro, mas não tenho mais idade ou saúde para bater-me com peões, pois sei que devem ter dor-de-cotovelo, já que todos eles, juntos com seus chapéus, sacos e pares de bolas jamais seriam donos dum olhar matador como o de Badá.
Quanto à mim continuo minha vida como um rei aposentado, mas que ainda atemoriza muita gente.
Sim, sim! Mesmo fora das corridas ainda persisto irado, nervoso, coisas que apenas são sentidas num legítimo touro dos pampas.
E claro, bah! Macho! Muito macho, gaúcho e de Pelotas, tchê!
O senhor Okamura
Naquela fria manha de outubro um céu povoado por densas
névoas negras o entristeceu como nunca – “O que estará havendo?” – Perguntou a
si o octogenário Sr. Okamura.
Fiel as tradições, assim como são os autênticos "velha
guarda" olhou pela vidraça do apartamento de primeiro andar e descansou a
vista em alguns jovens que, na calçada e próximos da portaria do edifício
tagarelavam entusiasmados. O Sr.
Okamura, como se mantivesse as tropas sob revista concentrou-se nas roupas que
usavam, inclusive nas calças absurdamente coloridas enquanto os seus cabelos
desgrenhados e multicores forneciam um visual inusitado, algo quase surreal. Ainda
que distante conseguia ver-lhes os penduricalhos atravessando narinas
e outras partes visíveis do corpo. Sim, ele os achava estranhos, afinal, como suportavam espetar tantas peças de metal na própria carne? Olhou para a fragilidade do seu corpo e
sorriu ao imaginar-se fisgado por uma daquelas. Entretanto não era unicamente
esse o estranhamento; O que falar de
suas músicas, então? Delas queria distância, exceto uma, especial, pois apreciava os momentos suaves de “Stairway
To Heaven.” e tanto a apreciava que, era comum contra-lo dedilhando a canção do Led Zeppelin nos orifícios de sua flauta. Quanto as outras músicas
de rock ouvidas por aqueles garotos, ele as odiava. Irritavam-no os sons das
guitarras distorcidas e sujeitos com vozes guturais que berravam coisas de forma animalescas, falas que por mais que se esforçasse, jamais conseguiria decifrar.
E assim ele ficou a namorar os jovens, tentando compreender um
pouco daquele mundo insano, ocidental, sem atinar o fato que levara seu neto fazer parte daquele bando de meninos cabeludos.
"Onde estarão as nossas tradições... Nossa
história?" – questionou-se enquanto os flertava.
Não! Definitivamente o Japão daqueles cabeludos estava há milênios do Japão dos seus sonhos, do seu ideal – Concluiu enfastiado -
Continuou a olhá-los e eles gesticulam e riam, e brincavam
de chutar uns aos outros numa atitude sem graça e fora de hora.
“ Será minha a ociosidade de aposentado que me torna tão
severo e crítico com esta nova geração?” – Perguntou-se.
Momentaneamente um sorriso nostálgico invade suas feições e
então ele se recordou que fora jovem. Sim, ele mesmo: Nagato Okamura fora um
deles, destemido, um kamikaze à serviço da realeza, o sujeito poupado da morte ante
o término repentino da guerra contra o estado norte americano. E lembrando do
fato foi impossível esquecer de um Japão prostrado, rendido ao impacto do
devastador arsenal contido no ventre do "Enola Gay” o avião ceifador de
vidas.
Então, como se fosse cravada na memória uma outra e gélida manhã de 1945 reviveu a
dizimação causada pelo cogumelo atômico e o pavor do seu povo ao se confrontar
com o adversário impiedoso.
Claro, quis o destino mantê-lo distante de Hiroshima e depois
Nagasaki, mas as vísceras de um Japão impotente e tão perplexo quanto a
comunidade internacional ficaram estampadas em fotos e nas manchetes dos
jornais que comprovaram a pulverização a que foram submetidos. “ah! Quantas
mortes desnecessárias, inocentes” – gemeu para si.
E assim, revestido de amargas lembranças recostou a fronte
na frieza vítrea da janela e munido da resignação que se oferta aos vencidos.
-B29... B29. Por que daquilo? – Murmurou trêmulo ao se
referir às siglas da destruição.
Seu neto, vindo da portaria do edifício e entrando pela
porta da sala, flagrou-o naquele estado de apatia, silabando um número
qualquer, e assim, diante do tom de lamento interpelou-o, como sempre,
irreverente:
-Ih vô! Será que faltou esse tal de "bevintenove"
pro senhor preencher a cartela e ganhar uma torradeira elétrica? – Perguntou
num riso debochado, claro, ele gozava o avô e o fato do velho na noite
anterior ter jogar bingo no clube dos oficiais da reserva.
O senhor Okamura olhou ternamente para o garoto enquanto deslizava os punhos do pulôver sobre os olhos com o efeito de disfarçar as gotículas que brotaram ali, afinal, um bravo jamais chora. E ainda assim, diante daquele jovem com idade entre os 18 ou 19 anos sorriu para o rapaz de olhos castanhos e puxados assim como os seus.
E aos poucos a sua expressão se quebrou sombria num rosto
vincado e retraído nas condolência de cicatrizes que se estampam na alma. E o seu
olhar não abandonou o garoto de cabelos aloirados e moicanos enquanto jazia
inerte a imensa águia tatuada num braço afeito à musculação. – Impressionado
com a feição assustadora da ave pousou o olhar naquelas asas e olhos por mais
algum tempo, pois havia tanta realidade no desenho grafado e nas cores empregadas
que seria capaz de jurar que ela poderia empreender voo se assim o quisesse –
Permaneceu nela por mais alguns momentos e, abandonando-a
concentrou-se novamente no neto que não desistiu:
-Fala vô, foi isso que faltou?
A resposta veio
curta, seca e aquém de qualquer compreensão daquele jovem à bordo duma camiseta
negra e regata onde no peitoral sobressaia a estampa do Ramones:
-Foi sim Hiroshi! Foi o que nos faltou. E foi pouco, tão
pouco, provavelmente, quase nada!
Assinar:
Postagens (Atom)