quinta-feira, 1 de janeiro de 2009
A Marquise - Homenagem ao Véio China
Ele todo dia passava por isso, abria a loja de ferragens as oito em ponto escorraçando dois bêbados sonolentos, que viam ali, talvez pela pequena marquise que avançava sobre a calçada, um lugar aprazível para embalar seus sonhos.
-Xô seus preguiçosos! Vão dormir debaixo da ponte!
-Calma homi tamo indo, tenha dó.
-Dó de dois marmanjos? Vão trabalhar cacete, olha o cheiro que vocês deixam aqui!
E entrava bufando repetindo os xingamentos dentro da mente.Pensava que isso tinha que parar, mas como? “Porquê escolheram minha loja, têm tantas na rua... Mas marquise, marquise só a minha tem... É isso vou tirar essa marquise, só arranjar dois peões e mandar ver umas estocadas com picareta, é isso!”.
-Alô, Natanael? Pode vir aqui na loja do domingo arrancar essa marquise? Isso traz o Frajola, quanto? 200 paus, que absurdo!150! E com tudo limpo depois! Tá às sete, tá bom te espero, tchau.
Desligou o telefone com a alma lavada, era sexta, os ébrios teriam somente mais duas noites tranqüilas, ele teria o resto da vida. “Que maravilha”.
No dia seguinte com a raiva cortejando sua alma, foi capaz de acordar os dois com chutes e safanões.
-Ah seus vagabundos! Seus dias tão contados!
Sentiu-se aliviado, “Só mais um dia”. Não conseguia parar de pensar na cara dos mendigos quando vissem que estavam sem teto...E ria sozinho aquela risadinha sádica.
Sábado, tal qual diretor de presídio poupou os condenados, afinal, teriam apenas mais uma única noite de marquise. Acordou-os com gestos brandos e até sorriu. Entrou sentindo-se inatingível.
Chegou no domingo um pouco depois das sete, Natanael e Frajola já tinham feito o serviço, a marquise azulzinha inteirinha do chão...
-Mas nem me esperaram?-sentiu-se ultrajado.
-Ué, mas o serviço tá feito, e bem feitinho.
-E os dois bêbados que dormem aqui?
-Tinha ninguém aqui não!
Sentiu-se zonzo, algo não combinava, não identificou num primeiro momento o vazio que consumia suas entranhas; sem marquise, sem mendigos. Viu-se órfão nesse mundo de Deus. Não havia mais os bêbados e o prazer de xingar, blasfemar e expulsa-los dali.
* E ele, mais que ninguém, sabia que aquilo se transformara num marcado jogo de cena, um faz de conta do "é assim que há de ser". Desolado e nostálgico lhe doía ver o local imune dos rastros costumeiros que deixavam. Passou os olhos, procurou por copos plásticos, por nacos de pão amanhecido, até por pedaços de papelão e folhas de jornais com manchetes vencidas. - Nada – Haviam-no descartado como se ele fosse uma dessas bolas de baseball, gasta e desbotada.
-Ô Natanael, seu filho duma cadela! Amanhã sem falta quero a marquise de volta ao seu lugar. Agora vá procurar aqueles dois nem que seja nos infernos! – Vociferou.
-Mas, mas, mas.. – O boquiaberto Natanael, nada compreendia.
-Não tem mas mas mas porra nenhuma! Eu não sei como me deixei fazer uma besteira dessas – Lamentou olhando para os céus, braços e cotovelos flexionados em direção ao peito como se interrogasse a providências divina.
-Pois é Sr. China. – Suspirou o conformado Natanael
-Pois é, é o cacete! Vá, procure, ache-os. Amanhã ao chegar quero vê-los aqui, como de hábito. E também quero essa marquise refeita até o final da manhã!
-Ok, entendi Sr. China..- Replicou o extenuado Natanael, ciente da máxima que o cliente sempre tinha razão - Poderia me pagar agora Sr. China ? – Solicitou um tanto tímido, ajeitando o cinto da grossa calça de brim e passando as vistas nos materiais para acomodá-los em sua caixa de ferramentas.
-De jeito algum! Só depois do serviço concluído - Respondeu o Sr. China, de mau humor, descendo a porta de aço da loja travando-a com tres imensos cadeados.
Porta fechada voltou o olhar para o prestativo Natanael e percebeu que ele o fitava desconsertado. Firmou as vistas por sobre os ombros do serralheiro e vislumbrou o Frajola olhando para nuvens, como se dissesse - isso não é comigo –
Inquieto, foi até a calçada e por lá ficou pensou por minutos. Fez o caminho de volta e ateve-se outra vez com o serralheiro:
-Tá certo Natanael. Tá certo! Entrem aí! Vamos procurá-los juntos. Tres sempre é melhor que um.
E assim abriu a porta pros dois sujeitos, entrou e deu a partida. Essa era a única atitude que estava ao seu alcance - faria qualquer coisa para revê-los novamente -
Chegando na esquina o carro dobrou à esquerda - ele pensava na vida e nas mil peças que ela lhe pregara - Sorriu um sorriso cinza, quase negro, enquanto um vento gélido penetrava pela janela e acariciava suas faces como se fazendo parte do grupo de busca.
E a cada metro de asfalto percorrido ele se perguntava sobre questões que lhe pareciam fundamentais. Sabia que geralmente os homens se fazem duros na queda. Ah! e como sabia. Mas sabia também que se tocados por um mínimo de compaixão de si e por outros permitem-se que o sangue percorra o trajeto das veias e na direção daquilo que nos mantém vivos. E assim inavadido dessa sensação, pulsa de sangue e de vida o Sr. China concluiu que jamais se permitiria desistir dessa merda toda e a qual ele chamava de existência. E eram esses intensos sentimentos que o sufocavam e cobravam de si uma certa dose de sensatez. Portanto, a necessidade da paz interior o fazia dobrar esquinas após esquinas à procura de penitência. Era isso e ele o sabia muito bem. Então pela primeira vez no dia o seu rosto descontraiu e ele abriu um sorriso amplo e fincou firmemente os antebraços no volante numa expressão de satisfação. Ele sentía-se alegre e convicto que acabaria por encontrar a dupla de bebuns.
Tudo, absolutamente tudo lhe pareceia estar bem. A vida, acima do bem e do mal, do bom ou do ruim se exercitava através das escolhas que deveriam ser levadas à cabo e ao custo que fosse.
E ele tinha feito as suas ao engatar a primeira marcha e deixar para trás um sorridente sinal de luz verde.
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Uma deliciosa homenagem escrito pela amiga Heloisa Galve que autorizou ao Véio China completar o texto ao seu modo e a partir do (*) Evidente, o Véio, malandro que é, jamais gostaria de ter ficado mal na fita. - Claro, foi parcial! - hehehe
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