quinta-feira, 20 de maio de 2010

Hamlet

-Pai, você é meu herói! Eu te amo mais que tudo!
A mãe é bacana, sabe. Mas, o senhor é muito mais legal!
Pai, to indo para o colégio, mas na volta deixarei seu carango reluzindo que nem ouro!

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Era assim esse garoto de 16 e com rosto de 20. Ele e o seu mais de metro e oitenta  eram pura avalanche de puxa-saquismo.
Poderia ser a forma mais sensível de um filho demosntrar amor ao seu pai? - Sim claro! - Confirmaria quem o ouvisse.
Porém, não o era, longe disso. O menino era a pura arte de representar, o exacerbamento oportunista em pessoa.
Contudo o pai gostava daquilo e apreciava sentir o ego massageado. Gostava de ver as pessoas dobrando, asfixiadas por sua autoridade e autoritarismo. Ele não era assim só em casa, não! Era assim também na sua indústria e no alto de sua poltrona-presidente de mais de 2.000 dólares; pelica legítima, diziam. Ai do funcionário que não lhe babasse o ovo ou não demonstrasse pavor à sua passagem.
Porém, o nosso garoto era suficientemente esperto, sabia dos atalhos e tirava proveito da situação.

-Pai, cadê aquela revista de sacanagem dinamarquesa? Eu a vi ontem á noite dentro do seu jornal quando chegou do trabalho.

O velho bem sabia que era chegada a hora de afrouxar as rédeas, incentivar o garoto, único herdeiro espada da família. Calmamente apontou o dedo na direção da porta ao fim do corredor, não queria que a esposa ouvisse, então sussurrou:

-Ta numa parte falsa do móvel da biblioteca. No último compartimento  de cima, desloque lateralmente para a esquerda e a frente se abrirá num passe de mágica – Orientou.

-Uauuuuuuuuu Pai! É uma dessas gavetas que podemos dizer... À prova de esposa? – Perguntou com cara de maroto.  Ante o olhar de soberba do velho,  concluiu - Pai! Tu és um gênio!

-Ta bom, ta bom, eu sei que sou! Ah! E aproveite também e pegue “Os Insaciáveis” Um DVD pra la de bom e com as melhores surubas e bundas holandesas.

-É pai? Ta no mesmo lugar? 
-Não! Esse é do lado oposto e um pouco abaixo do local secreto da tua mãe. Ela pensa que não sei. Eu sei de tudo, afinal, quem paga o marceneiro sou eu! Esse outro fica abaixo próximo ao rodapé. Force com o pé direito e ele abrirá. – Terminou murmurando, batendo rapidamente o indicador nos próprios lábios.


-Puta merda pai! Tu és fera! Tu serias melhor que um Sherlock Holmes!

-É? Bem... Hum, pode ser ...Mas...acha mesmo?

-Claro pai, Claro que acho!

-Hum... apesar que nossa família merece um cara esperto, daqueles que ninguém passa a perna! Não acha que sou esse sujeito, Hamlet? – Perguntou o pai com a costumeira arrogância

-Acho sim pai! O senhor é inteligente demais!

-Sim! E eu sei! Vem cá, menino. – Chamou-o suavizando a voz –

Hamlet estranhou; não era comum o velho suavizar. Precavido viu o velho enfiar a mão em um dos bolsos e de lá sair com algumas notas de 100.

-Vou te dar 400 mangos pra você ligar nesse celular - Orientou-o ao entregar um pequeno e perfumado cartão de visitas. – Depois completou:

- É da Bruna Surfistinha. Ela ta liquidando por 300 pratas. Vamos lá! Deixemos de perder tempo! Já se passou a hora da sua iniciação.

Dito, voltou a mão ao bolso e guardou o restante das notas graúdas e manteve as quatro notas de 100 por entre os dedos. Seu ar de superioridade era intolerável. Contudo, o que o pobre velho não sabia era que o seu moleque já tinha comido Deus e todo mundo, inclusive, à surdina, dera de cantar a sua secretária.

-Ah! E com o que irá te sobrar vá num Mcdonalds – Finalizou dando tapinhas nas costas do garoto como se o estivesse mandando para alguma missão.

-Puxa pai! Obrigado! – Ah, paizão! Além de tudo o senhor é um ótimo comerciante, viu?

Ótimo comerciante? Como assim? - O velho parecia não entender aquela afirmativa. E nem comerciante era, mas sim um industrial.

- Não entendi! Que conversa é essa, garoto? –

-Bem, assim pai; Pra essas coisas de sacanagem a mamãe costuma gastar quase o dobro do senhor! – Afirmou em alto e bom som.

O velho permaneceu estático, estarrecido com o que ouvira. O que o ele jamais poderia supor era que o fedelho conseguira a senha-internet da conta bancária da mãe, inclusive tendo acesso irrestrito aos saldos, extratos e até a copia dos cheques emitidos.

O velho se manteve perplexo diante de um filho que lhe sorria com aquele mesmo ar de superioridade. O sorriso permaneceu nos lábios ao retirar-lhe as quatro notas da mão e dar  as costas assobiando desajeitamente a “New York New York”  canção favorita do seu pai - Ele conhecia-lhe o  temperamento, sabia que tinha em suas mãos informações valiosas e que custariam diversas vezes o valor pelo qual fora comprado. Claro, estava acostumado ao jogo de ambos, pai e mãe. E também porque aquilo jamais desembocaria numa separação, mas na necessidade mesquinha de cada qual saber dos passos do outro, uma partida de xadrez de dois jogadores sem jogo de cintura e que jamais chegariam num xeque-mate, apesar do avanço da idade Enfim, cada um ao seu jeito, infeliz.


E quanto a ele, Hamlet, tinha no pai um adversário, um concorrente para as espertezas e a necessidade de se levar vantagem em tudo. Tinha pela mãe um sentimento de mágoa e a lástima de com ela aprender no dia-a-dia muitas jogadas e blefes sacanas. Não que ela o ensinara, não, porém, astucioso, nada lhe passava despercebido. Ainda chegaria a hora dela, era questão de tempo, assim como o tempo lhe dizia que o ideal era ir ao pote, um de cada vez.

Já na calçada, Hamlet riu; era coisa de trouxa pagar trezentinhos por uma trepada meia boca com Bruna Surfistinha. Tinha planos melhores para a grana; Será que a secretária topava um motelzinho? Ele lhe percebera os olhares e não poderia estar tão enganado; a balzaquiana tinha o jeito de quem engolia vivo garotos novinhos e de carnes tenras.
Atravessando a rua a caminho do colégio, riu mais uma vez.

Talvez, a única diferença entre todos eles era que o filho da puta do moleque soubesse viver.


Copirraiti mai/2010
Véio China©

Morrendo em Machu Picchu


Fazia muito tempo que eu não o via, e ele ainda era um garoto na última vez.

Talvez o estilo de vida montanhês, rústico, barba e cabelos brancos, compridos, aliados a esse isolar-me do mundo num separar-me há muito dos elásticos dos sutiãs e das  calcinhas de rendas deixaram-me com a feição carnal envelhecida e bem distante do homem de negócios e da bolsa de valores que certa vez fui.

No aeroporto e no saguão de desembarque, Pedro, o meu neto, filho do meu filho olhava-me como se visse o mais rude Búfalo Bill. Talvez o fedelho estivesse lá pelos 42 ou 43 anos, três filhos e a caminho de ser avô pela primeira vez, mas mesmo assim parecia não haver nele a experiência ou a compreensão para o fato do seu avô ter trocado o mundo das ganâncias e das falsidades para se manter isolado e ao relento das montanhas andinas da Cidade Perdida, Machu Picchu.
Recordo-me que no início, nos primeiros 15 anos de solidão os livros com feições cansadas ainda me fizeram alguma companhia, mas, tanto Fante, Hem, Miller e Celine e outros dos bons não resistiram, à ação do tempo, diferentes de mim que ainda persistia a desafiar Deus ao tentar me manter vivo aos 81 anos, quando na verdade eles pareciam sugerir bem mais que os 90. Claro, analisando os prós e os contras eu tivera mais sorte que as obras desgastadas dos meus autores mortos. E outra, à época e ainda entre os civilizados fui tido por louco  entre os homens de negócios, pois jamais compreenderiam como alguém com talento para gerar dinheiro pôde abrir mão de um futuro brilhante e meter-se a escrever bobagens e depois desaparecer no mundo.

Sim, sumi das vistas do mundo e me cravei no cativeiro a que me impus  sem esquecer a língua mãe que ainda reverberava em minha mente, afinal, não me desaprendera das frases e nem dos seus significados.
Entretanto era mais fácil para mim compreender o espírito arredio das Lhamas que propriamente dos seres humanos.  Enfim, foi necessário e inevitável descer a montanha, pois morrer entre os meus se fez questão de ordem, talvez até por meus princípios religiosos. E me foi difícil ter chegado a esse entendimento e o meu espírito perdido e aliado às fortes dores no abdome fizeram-me entender que não seria tão imortal o quanto pretendia ser, e que talvez a morte apontava-me para um prazo de validade vencido, a existência prestes a expirar. Afinal, quem seria eu para subverter a ordem natural das coisas e os desígnios de Deus?
E daí não me foi difícil e me desloquei como um condor de asas abertas e um olhar cravado em  carros, pedindo caronas, aceitando esmolas até chegar à Lima e de lá para o Consulado Brasileiro onde apresentei um quase indecifrável documento de identidade. Do próprio Consulado  fizeram contato com a minha família, afinal eu era um sobrenome importante. Feito, acertaram alguma transferência de valor e me enfiaram num hotel de luxo onde tomei um bom banho quente, e depois me enfiaram em roupas dignas.  Claro, queriam cortar meus cabelos e a barba, porém não permiti e dois dias após eu aterrizava em solo brasileiro. E outra, e o mais importante da minha decisão: Era o mais justo para eles, enfim, já haviam enterrado meu filho e minha ex-mulher, e mesmo que não soubéssemos da gravidade do meu estado, desta vez haveria toda a certeza que seria o meu copo a descansar abaixo das camadas de concreto, e  não apenas a minha memória como fora até então pelo meu desaparecimento.

De mim e do meu passado o meu neto pouco sabia, e apenas do meu trabalho junto ao mercado de capitais e que eu fora afeito a alguma literatura, porém o que desconhecia é que o meu mundo de literatices jamais extrapolara os porões dos escritos “malditos” inclusive à época abandonei deixando para o resto da humanidade a tarefa de venerar as cansativas obras de Nietzsche  Freud, Voltaire e Shakespeare entre outros. Em verdade e depois de um casamento desfeito e problemático, deprimido me enfiei em suas obras, mas com pouco tempo percebi que nunca precisaria deles, e daquilo que li quase nada aproveitei – E isso só fui compreender os valores humanos com os outras escritores espúrios, conflitantes, porém legítimos.
À época do meu sumiço o que eu necessitava era viver e resistir a algo mais que à felicidade de um matrimônio e a obrigação de ganhar dinheiro. Para mim não existia saída, ou era continuar do jeito que estava, afogando as minhas mágoas em bebidas e nos lábios vermelhos das prostitutas, ou me esconder para sempre no meu anseio pelo solo sagrado Inca.

Lembro-me que um pouco antes do fim as dores no estômago formaram o processo dum câncer terminal, adiando a minha morte por pouco mais de trinta dias após ter descido as montanhas e retornado para o Brasil. Lembro-me também que momentos antes de ir dessa pra uma outra vida ouvi coisas em um dos dez quartos da ensolarada mansão de Pedro, no Morumbi. Aliás,  foi propriamente um monólogo, e meu neto fitava-me atentamente no aguardo dum  manifesto meu, mas não havia em mim qualquer condição ou vontade de  dialogar, apesar do meu raciocínio persistir intacto. Eu estava cansado daquele vai-e-vem dos hospitais e as aplicações de quimioterapia, e apenas o olhava e me mantinha fixo aos seus lábios e à sua voz irritantemente anasalada. Recordo-me das suas últimas falas:

-Então vô, o senhor viu a nossa casa, os carros, as empresas. Foi assim, simplesmente fizemos fortuna – Disse-me e depois desviou o olhar para uma figura austera no imenso quadro pintado a óleo e á parede lateral ao meu leito – Era o retrato do seu pai –

-Papai investiu pesado no mercado de capitais tudo que o senhor nos deixou. E a nossa fortuna é soberba e hoje estamos aqui e nesse patamar – Disse cerimonioso levando os braços para todos os cantos do imenso quarto mobiliado num caríssimo estilo Luis XV.

Eu bem podia ver aonde e como chegaram até ali – O impecável terno do meu neto denunciava a grife de um desses renomados estilistas europeus, e em seu dedo esquerdo sobressaia um estupendo anel em ouro maciço e acima dele uma enorme brilhante esculpido com tanto esmero, mas que denunciava a quantidade de suores miseráveis e necessários para que eles se mantivessem naquela posição. Pedro, como uma boa cria de um ótimo cão de caça persistiu falando do pai, discorrendo o quanto Raul fora um realizador:

-Papai nos levou à fortuna logo após o seu desaparecimento. Eu era pequeno e me lembro da movimentação em nossa casa e dos telefonemas intermináveis às autoridades a fim de sabermos do seu desaparecimento - Ele me informou num tom austero.

Talvez Pedro me julgasse devedor de algo, talvez me achasse um covarde, talvez até o oposto àquele a quem olhava no quadro e com tanta adoração como se fosse alguém divino.

-Enfim...Papai foi um excepcional homem! – Terminou  fitando o retrato do pai que se mantinha numa feição austera, até mais que a de Pedro –

Claro, por instantes eu pensei e gostaria de ter falado, porém o momento, a fraqueza e as dores disseram não ser o instante apropriado, mas me permitiu concluir com meus botões; “Teu papai jamais foi um grande homem! Teu papai foi um grande filho da puta, isso sim!” –  Poderia ter-lhe dito que o pai tanto quanto nós jamais produziu um litro de leite ou abriu valas em estradas. Sim, poderia ter dito e não seria mentira, pois apenas ganhamos dinheiro com especulação e fizemos fortuna sem uma única gota de suor escorrida da testa. Entretanto foi bom não ter dito, afinal, mortos devem evitar mágoas entre as flores do caixão. Repentinamente ele muda de tom e abandona o ar sisudo e professoral

-Ah, vô! Ouvi dizer que o senhor foi um ótimo escritor. Qualquer dia desses gostaria de ler algo que senhor escreveu. Sabia que amo literatura,  filosofia, os românticos? - Sussurrou-me como se percebesse que incomodava um velho prestes a bater as botas. Eu apenas o olhei surpreso e ele continuou: - Sempre li Sócrates, Platão, Shakespeare, Nitt, Voltaire, Freud, esse pessoal! – Exclamou ao esquecer a minha morte e com tanta propriedade que qualquer reles mortal o jugaria o sujeito mais culto desse mundo –

Continuei olhando para ele, mas, apenas ao fita-lo a denúncia se escancarava. Eu sabia; Pedro além de outro filho da puta sempre foi um desses reacionários de plantão. – E também porque aquele executivo das especulações jamais soube quem eu fora – Eu nunca tivera livros publicados, e, se tivesse, passaria ao largo desse "pessoal todo"– Claro, eu não tinha nada contra, mas achava pura perda de tempo, apenas matéria para atormentar ainda mais os sentimentos e convicções da raça humana. E eu simplesmente os achava desnecessários, amargurados, confusos e austeros como se fossem tanques invadindo o inverno de Praga.
E assim apenas continuei a olhá-lo, desfalecendo junto das derradeiras forças e com a respiração já comprometida.

Não demorou muito e meu momento chegou e contornei a sua fisionomia e cerrei os olhos ao absorver a minha última cota de oxigênio – Eu me sentia triste e deprimido com a morte que não merecia. Antes tivesse morrido ao lado do meu Lhama – Seria bem provável que consternado o animal lambesse o meu rosto ao me ver partir. Mas não era lá que eu estava morrendo, mas sim ali num quarto de 80 m2, b em distante do ar gélido e do cheiro da montanha. Sim, sentiria falta das situações inusitadas que por vezes me aconteciam, como aquela vez que uns garotos pirados descobriram a minha toca e gargalhavam à troco de qualquer asneira que falavam. Beth e Dante, talvez beirassem os 22, 23 anos, e recordo-me bem e eles beberam todo o álcool que levaram, e ficamos pelados na primeira noite de excesso de vodca,  lenha na fogueira,  reféns dum jogo cretino proposto por ela  - "quem erra a resposta se livra duma peça de roupa" - Foi o  que Beth disse antes daquela loucura começar. No fim os seus corpos nus tilintavam e eles fora dormir embriagados e eu os cobri com mantas de pelos de animais.

E assim ficaram dois dias por lá, e quando a bebida acabou tudo se tornou tão sem graça que eles partiram e me deixaram uma boa porção de excelente erva - "Bróder, você é um velhinho da hora e gosta de Celine" - Foram suas palavras e gargalharam pela última vez ao enfiarem entre minhas mãos a cannabis sativa prensada num diminuto bloco. E eles me abraçaram e desceram a montanha enquanto eu acariciava o pacote que consumi num espaço de 10 dias e que me serviu para a completude da paz que me nutria, aliás, foi mais, foi além, a maconha me fez sentir mais próximo a Deus. Sim, sentiria saudades dessa  e de muitas outras passagens que agora de nada me serviam. Enfim, o meu destino foi eu que decidi e era o de morrer entre aquilo que ajudei a criar, dar vida, e não lá na montanha onde após a morte eu seria apenas a gelidez, carne apodrecida e ossos dados como oferenda ao tempo e ao lado dos meus livros de capas carcomidas. E por fim e se la estivesse eu morreria ao relento e a mercê dos vermes e o Lhama como um cão fiel persistiria ao meu lado até um último cheiro do corpo, um fim no pranto da alma.
- "Jamais deveria ter abandonado Machu Picchu" - Murmurei a derradeira prece de arrependimento.
Na parede e no quadro o meu filho Raul parecia sorrir.


Copirraiti07Jan2013
Véio China©