sábado, 27 de agosto de 2011

100% Virtual

Conversávamos eu e meu amigo num bar. Ele parecia preocupado comigo e eu nem sabia extamento o por que. Era-me estranho sentir aquele cuidado todo. Enfim, talvez o avanço de minha idade preocupasse o garoto. Talvez ele tivesse receio que duma hora pra outra eu batesse as botas espumando bebida entre os lábios, desabando e lambendo o chão como o mais vadio dos cachorros. Eu esvaia um gole dos grandes do meu terceiro Bloody enquanto ele há um bom tempo sorvia suas  doses conhaque, rebatendo na outra, misturando à cervejas e cu de burro (suco de limão e sal). Sua voz soava pastosa, ébria, macilenta:

- Veio, está na hora de parar com isso.

-Com isso o que, AVG, com a bebida? – Indaguei.

-Claro que não, porra! To falando dessa tua virtualidade exacerbada.

- O que? Minha virtualidade exgerada? De que Wikipédia você ta falando, cacete?

-Uai! Só não vê quem não quer. Você não se tornou incólume a ela, não se safou ileso dela – Ele se achega curvando o corpo sobre a mesa e sussurrando como se segredasse algo.

Claro, o meu amigo era um desses garotos chegados num português cheio dos tre-le-les. Aquilo até que não me aborrecia. Eu gostava dele e o achava engraçado, principalmente quando se embebedava.

-Ué, não sei por que Mozilla você cismou com isso, Maicon!  

Ele me olha por alguns instantes e pensa. Os seus olhos apesar de bêbados mantem ainda o brilho de alguma esperança, coisa,diga-se de passagem, há muito não visto nos meus.

-Bem... o que eu quero dizer, Veio, é que acho que você está carente de realidade. Sabia que seios e uma vagina bem lavada e depilada fazem um bem danado prum homo sapiens de pênis?

Eu achei divertida a sua colocação. Dito, retorna para a posição de origem na cadeira. Ah sim! Sobre Maicon nunca seria demais dizer que além daquele seu palavreado cheio das nove horas, era ele um sujeito chegado numa assepsia absurda, quase intolerante até.
Claro, naquele estado ele jamais poderia se lembrari que um ano anos antes, numa noite de inverno em que nos afundávamos num louco porre de vodka e cervejas, ele, com o dedo em riste e o corpo desgovernado levantára-se da cadeira e do nada discursou:

-Não existe um único bucéfalo neste recinto que me verá desfilando com uma dona em fase excreta de  fluxo sanguíneo mensal! 

A princípio o silêncio. Mané, o dono do bar,  permanece estático, dinheiro do troco cravado entre os dedos ante o cliente que aguardava em frente ao caixa registrador. O constrangimento só foi vencido por algumas garotas duma mesa próxima. Inicialmente elas sorriram, depois gargalharam.
Também pudera! Por Deus! Bucéfalo? O que o pobre equídeo de Alexandre tinha a ver com aquilo? E além do mais  ele poderia ter simplificado tudo  e dito que jamais sairia com alguma garota em fase de período menstrual.
Em todo o caso aquilo não me era importante naquele dia e nem no dia de hoje, mas sim,  o motivo de ter chegado a conclusão que eu me tornara 100% virtual. Permaneci calado por algum tempo. Olhei para o meu bloody, girei as pedras de gelo no copo e  me manifestei:

-Maicon, Emessene à parte, acredito que que você esteja exagerando? –

Evidente, era exagero, absurdo. Era simples de perceber que o cara com problemas era ele e não eu. Podáimos nota isso a olho nu. Ele me fulminou com aqueles olhos  ébrios e  meneando a cabeça num gesto de reprovação, me questiona:

-Ah é? - Então me diga. O que está fazendo nesse instante? –

-Sim, sim! Estou com o laptop Winamp aberto. Mas... e daí? – Respondi sem perder-me da tela do meu note.

-E daí o cacete? Agora me diga... Com quantas donas está teclando aí no seu "mesene" seu,  seu, Don Juan webmaníaco?

-Bem. estou com... três amigas! Ops,... quatro!  - Naquele exato momento acabara de entrar uma quarta Youtube amiga. Era a Rutinha. Uma loira plastificada, talvez uns 42 anos, mas ainda de seios fenomenais, em que pese as suas proteses de silicone.

-Está vendo, Véio? Você não é capaz nem de dar-me atenção. Tu que não percebes a inexorável contradição que te tornaste - Inexorável? Puta que pariu! Maicon estava com a corda toda. Quanto ao "tu"era compreensível, afinal, Maicon  adorava falar para a 2ª pessoa verbal. – “É a pessoa vebal da poesia” – Ele costuma dizer.

-Ô Maicon... não é bem Yahoo assim! Eu presto atenção em você, mas sem deixar de conversar com as minhas amigas. É uma questão de cavalheirismo. - Defendi-me

-Amigas, que amigas seu velho cabeça dura? Amigo é coisa de carne e de osso. Amigo é aquele que te leva para casa no segmento mais alto do membro superior  se por acaso você necessitar (O filho da mãe me pegara de jeito. Eu sabia o que ele pretendia dizer)

-Sim, Google, sei disso Maicon! Apesar de eternamente grato por aquela noite e ainda mais por ter feito aquilo por mim! Mas...não poderia simplesmente ter dito assim: Amigo é aquele que a gente carrega no ombro quando está bêbado?

Claro, ele queria que me fazer sentir culpado. Maicon era bom em chantagens emocionais.

- Seu Xucro! - Ele responde -  Eu sei você que gostaria que eu declinasse da frase para simplesmente  ter falado com a rudez com que falou.

Maicon se entusiasmara.

- Amigo é aquele de quem sentimos o caloroso abraço. Esses sim são os nossos eternos amigos, e não essas pragas cibernéticas surgidas duma cartola virtual. - Os seus olhos ganham maior brilho, algo insano, louco, um lobo bêbado e desvairado que continuou com seu discurso:

- Toda essa manifestação afetiva virtual me parece tão falsa quanto o ilusionismo de David Copperfield!  Lembra-se dele, Véio?  Aquele sujeito que fazia desaparecer avião diante nossos olhos...

Eu olhava para a sua boca e ela não cessava os movimentos. Possivelmente os seus problemas fossem maiores do que aqueles que imaginara.

-Maicon, Maicon, Facebook, pare! Acredito que você esteje delirando... – Tento em vão despertá-lo tocando fortemente no ombro.

-Ah, maldita rede mundial de computadores! - Ele continua - Essa coisa absurda que vocês tratam por....por.... – Maicon parecia em transe. Ele simplesmente nao se recordava da palavrinha pequena e mágica.

-Internet, Maicon! É a Internet, Badoo, o que você está se referindo! – Tento auxiliá-lo. Sua mente quedava-se á embriaguês.

-Que seja essa porra de Internet! – Ele dá de ombros. Nele, além da embriaguês eu notava o tom de decepção.

Eu olhei para Maicon e entendendi que aquilo jamais aquilo que fiz jamais poderia ter dado certo.
Sem que ele soubesse eu fizera para ele um perfil fake no Orkut. Gostaria de não vê-lo  tão só, com o pé na modernidade, fazendo novas amizades, vendo pessoas, interagindo, se mostrando em webcam, falando por microfone, enfim....

Mas... Maicon...Bem....Maicon era complexo demais e jamais entenderia a virtualidade, e nós... os meros virtuais.


Copirraiti 26Ago2011
Véio China©

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

24 Horas


Eu estava com sérios problemas de sono. Aliás, acredito que não fosse propriamente o sono, mas sim a virtualidade. Notívago crônico e numa fase não tão promissora apenas conseguia dormir quando os ponteiros marcassem cinco ou seis da manhã. Tão problemático quanto o sono era a confusão mental que em mim progredia assustadoramente, pois em algumas vezes o que supus ser dia, de fato era noite.
E por mais que tentasse, a  incoerência e os pensamentos não me deixavam distinguir se me tornava virtual pela falta do sono ou se, notívago pelo excesso de virtualidade. Talvez eu fizesse parte duma legião de Condes Dráculas espalhada pelo planeta, vampiros virtuais que tinham na tela do computador a origem dos seus males. Porém as rotas dos meus subterrâneos começaram mudar a partir de uma certa madrugada de muita conturbação. Recordo que passava pouco das  02:00 da manhã e eu conversava com alguém, uma prosa pródiga em atritos e desencontros.

-Pois bem Sr. Bates, pela quinta vez nesta semana; qual é o problema agora? – Perguntou-me ele no MSN. A voz era agrave, severa, e sem qualquer simpatia.

Ah sim! Aquele era o Dr. Dil, um psicanalista virtual que me fora indicado por uma colega que dissera que obteve ótimos resultados. As consultas eram virtuais, mas o pagamento não, e eu quitava seus honorários através transferências online em sua conta bancária. Claro, não havia riscos, não para ele, pois os serviços eram pagos com antecedência para que eu pudesse fazer uso do meu tempo.

-Bem... Dr. Dil, sinto que as coisas não podem continuar do jeito que estão –  Reclamei fazendo que não notei o tom contrariado em sua pergunta.

-Ora sr. Bates, como já disse antes,  me aborreceu, pois estou cansado de lhe dizer que ao pé que as coisas andam o melhor seria o senhor se consultar com um profissional da neurologia  – Respondeu-me  como sempre, repetitivo e o mesmo enfado.

Talvez o Dr. Dil tivesse razão. Recordo-me inclusive que em uma das suas últimas consultas ele tentou se desvencilhar de mim propondo-me um medicamento ultra conhecido, o Diazepan. – "Tenho um colega que pode emitir o receituário em seu nome, e em pouco tempo e o senhor pagando o  motoboy o terá em mãos rapidamente” - Ele disse. Claro, recusei, pois sempre fui presa fácil as drogas ansiolíticas que, em outras épocas em nada me ajudaram. Portanto não era o momento de tornar-me refém delas, inclusive porque  não queria acordar com o gosto da morte na boca.

-Doutor, tem certeza que essa falta de sono  não se motiva por algum fator ocorrido na infância?  – Insisti como se não tivesse percebido que pretendesse cair fora -

-Não, não é não Sr. Bates. A sua infância nada tem a ver com os fatos! É que o senhor não vive sem as madrugadas - Sentenciou

Talvez o Dr. Dil não gostasse do fato que eu indicasse algum caminho naqueles meus insistentes"não serão coisas da infância?" - E talvez não compreendesse que a minha intenção era ajudar, abreviar a rota, afinal, comumente os analistas imputam à infância o período dos desajustes e dos distúrbios da personalidade. Porém, comigo ele jamais se permitiu usar ou que eu usasse do artifício. Talvez o receio fosse que me tornasse mais chato do que propriamente era ou que me julgasse.

E assim continuávamos a lengalenga naquela noite de calor intenso onde eu intercalava o uso das mãos para amassar uma dessas pequenas bolas de borracha que fortalecem a musculatura. E eu a pressionava algumas vezes e depois a atirava para o alto e tornava  pegá-la  sem deixar que tocasse ao chão.
O Dr. Dil olhava meus movimentos e agia tal qual um espectador de uma partida de tênis,  e sua cabeça seguia a trajetória da bolinha, ora subindo, ora descendo. Na última vez que a atirei para o alto ele se irritou:

- Sr. Bates, desculpe, mas não é para isso que me paga e muito menos são esses os serviços a que me presto! - Olhei-o surpreso através da webcam. Talvez a repetição dos movimentos o incomodasse.

-Ta bom doutor, não mais se incomode com bola! – Exclamei compreensivo.

Ele olhou-me impaciente. Eu via cada músculo do seu rosto se contrair ante a perfeita resolução duma webcam que me custara o olho da cara.

-Bem... Na verdade Sr. Bates, isso nada tem a ver com a sua maldita bolinha - Devolveu irritado. Depois continuou -  É constrangedor tocar no assunto, mas... o senhor não me deixa alternativa.

-Como assim? Seja mais específico, doutor! – Eu não o compreendia.

-Ora, ora Sr. Bates! Assim... Assim... assim como o senhor está,  com o pênis ereto sob a cueca. E o senhor há de convir, é uma situação assaz  desagradável! - Reclamou equilibrando os óculos no nariz curvo.

Olhei para mim e confirmei que algo se avolumara debaixo da minha  cueca samba-canção. Algo que se mantinha ereto como se fosse um dos braços de  Adolf na saudação nazista.

-Ah, nem ligue pra ele, doutor! É apenas vontade de dar uma mijadinha! - Justifiquei procurando não dar  grande importância ao fato, pois estava adiando a minha ida ao banheiro por conta daquela nossa conversa. E também  pouco entendia o motivo daquilo acontecer, pois se não fosse algum problema orgânico, talvez fosse oriundo de algum fator da minha meninice.

-Dar uma mijadinha? Que frase horrível, Sr. Bates!  O senhor não me deixa outro caminho... O senhor é um homem profundamente  desagradável! Passar bem! –  Fulminou-me  com um tom grave e depois dobrou o corpo com intuito de pegar os óculos que desequilibraram da curvatura do seu nariz desabando ao chão. 

Refeito, olhou-me com aquela sua feição de almofadinha e disse que estaria devolvendo em minha conta o valor daquele mês que eu antecipara. E depois nada mais disse, fechou a webcam e o seu nome sumiu dos meus contatos online.
Era melhor assim. Só um cego não veria que era passada a hora de se desfazer do Dr. Dil Page Brin e das suas insanas sessões de análise por vídeo conferência. Tudo era tão nítido. Andávamos à passos de tartaruga e o pouco percorrido trouxe resultados desanimadores já continuava insone. Em todo o caso eu tinha que reconhecer nele o faro comercial ao estabelecer um consultório com atendimento virtual à custo bem em conta. E outra. A culpa fora toda minha, pois comodista e acreditando na indicação de uma antiga  colega de faculdade  eu me livrava dos malditos consultórios, divãs freudianos, distante das filas dos elevadores e  dos abarrotados estacionamentos da caótica cidade de São Paulo.

Olho novamente para o relógio do Windows e agora ele aponta para quase 02:30 da manhã.
Repentinamente  um "Plim" –  O sinal sonoro dava conta que alguém surgia online. Olho pro boneco verde e  a pessoa  me  é visceralmente  familiar. Penso por alguns instantes e recoloco os fones de ouvido  e abro outra vez a webcam.

-Filho, boa noite! - Ela se antecipa e me cumprimenta com voz trêmula. Era normal, um fator de idade.

-Boa noite mamãe! O que foi? - respondo impaciente. Era estranho, mas mamãe sempre me causava certa impaciência.

-Ah filho... a mamãe ta preocupada com você. Olha pras tuas olheiras. Aposto que não anda comendo  direitinho, não é?  -  A sua fisionomia era crítica. Bem, nem sabia a finalidade das considerações; mamãe pesava 47 quilos e também tinha olheiras profundas. Olheiras, amor e críticas,

-Ah mãe, me alimento sim. Ao meu jeito, mas me alimento – Eu me tento me defender.

Eu olhava para mamãe e o ridículo de estarmos naquele papo e numa hora daquelas. Jesus Cristo!  Talvez a minha insônia fosse herança da própria árvore própria genealógica. – Concluí ao observar seus olhinhos notívagos. E ela, por sua vez jamais se aperceberia  do constrangimento que ma causava, ainda mais para um sujeito na minha idade. Certamente não tinha consciência que me tratava como um garotinho que se leva à escola municipal com a lancheira à tiracolo.

-Ah filho, você ta muito magrinho! Veja no espelho as tuas profundas olheiras? - Ela suspira preocupada. Ah meu Pai! Íamos começar tudo de novo.

-Mamãe, Eu já te falei. To muito bem! E a senhora sabe que quando finalmente pego no sono nem Boeing me acorda! Nem que entre pela janela e deite ao meu lado na cama!

-Ah, isso é! - Ela rechaça -  Também roncando do jeito que ronca jamais ouviria a turbina do tal avião! –  Mamãe ri da própria galhofa. Sim, mamãe era assim, mais sarcástica e irônica que propriamente autoritária, ao contrário de outras épocas em que me fazia tremer e esconder debaixo da cama.

- Está bem mamãe! Um beijão e fica com Deus! – Despeço-me imprevistamente. E  antes que viesse com novas recomendações a bloqueio sem tremer ou me esconder na casinha do cachorro.

Pronto aquele assunto estava resolvido. Porém o que não se resolvia era a minha fome. Ela precisava ter me lembrado?  Espreguicei-me e rumei para a cozinha onde na geladeira encontrei apenas os restos dum frango assado de três dias - Blargh! Olhei pras  peles tostadas, pras coxas esbranquiçadas e senti náuseas.
Sem nada de bom que pudesse comer preparo a terceira caipira de vodca e volto para o computador  e percebo que a Cantina e Pizzaria Cosa Nostra está online. Desbloqueio e escrevo em letras garrafais:

-XANG  LEE,  POR FAVOR,  AINDA  ESTÃO  ATENDENDO  PEDIDOS? – Óbvio, era necessária a caixa alta; Xang Lee era portador de avantajada miopia.

Interessante é lembrar-se de como aquele chinês  herdou a Cosa Nostra  e o tino comercial de sua família. O local onde hoje funciona a cantina foi uma pastelaria. Todavia o passar do tempo e a pouca rentabilidade fez Xang esquecer os engordurados pastéis e optar por outro ramo gastronômico. Soube do fato através da conversa que tivéramos  numa das  vezes que estive na pizzaria; Eu me dizia surpreso por ver um chinês tornar-se dono de cantina, negócio tipicamente dos oriundos italianos, e ele, por sua vez  argumentou que igualmente os italianos invadiram em muito os negócios chineses, sobretudo no ramo das lavanderias. Sim, pensei ao que dissera e ele estava correto, ainda mais diante dum mundo globalizado onde o que conta é a eficiência e na qual deixa de prevalecer as predominâncias étnicas ou tradições.

Foi o que recordei quando  Xang respondeu pelo MSN que ainda estavam em funcionamento. Mediante a sua confirmação e não querendo confiar apenas na solicitação das letras  abro a webcam e peço ao vivo no microfone:

-Xang, pode me mandar ½ aliche, ½ mussarela?  - Ele sorri, e depois prestativo responde:

-Xim sinhôro Bates! Vinte minutos a pizza tai em xua casa! - Xang me confirmou trajando um novo e surpreendente uniforme, uma túnica  em amarelo-canário onde um enorme bordado no bolso superior esquerdo escancarava em vermelho uma inexplicável Torre Eiffel. Procurei naquele bordado a relatividade entre Itália e a França e não a encontrei. Ainda pensava naquilo quando ele finaliza:

– Plontinho! O pleço é "qualenta leais e tlinta centavos" E vai junto biscoitinho da sorte e Gualaná Dolly di glátis!

Eu sorri da forma que falou, pois  Xang era esperto e sabia como conquistar a sua clientela, apesar da marca do guaraná. Com 45 minutos de atraso eu recebia a pizza. O rapaz me entregou a caixa quadrada e o refrigerante. Dei-lhe o dinheiro e alguma gorjeta e ele se foi. Ao abrir, a surpresa: Era de camarão. Camarões enormes, bem assados, apetitosos, apesar de a pizza parecer  um tanto morna.
Bem... Eu não tinha nada a ver com a incompetência dos chineses que se metiam em negócios italianos, já que algum clinete daria a falta daqueles maravilhosos camarões; Ele que se acertasse com Xang - pensei -  Degusto quatro dos oito pedaços e me sinto fartado.

Aí veio a preguiça. O que fazer? Um filme na TV?
Não! Filme em TV é um saco, geralmente reprise. Além disso, o que aborrece são aqueles comerciais enfadonhos que interrompem a trama  a cada 10 ou 15 minutos. Passo os olhos pelos DVDs na prateleira e eles também não me atraem; assisti cada um daqueles filmes uma dezena  de vezes.
Vou à janela, retiro um cigarro do maço e fumo. No prédio de frente,  à coisa de 40 metros um casal se beija próximo à janela do apartamento deles. Eles se bolinam e as mãos dele parecem tão rápidas quanto seus desejos. Não decorre um minuto e a mulher ao tentar fugir das carícias, e o homem ao girar o corpo para alcançá-la dá pela minha presença, mesmo que distante do meu prédio. Sou um indesejável, intruso, portanto ela cerra  a cortina e eu me amaldiçoo por ter deixado as minhas luzes acesas, pois uma boa sacanagem talvez quebrasse o desencanto e a monotonia.

Deus, que ócio! Minha vida era nada mais que tédio. Bem... Eu poderia jogar xadrez, afinal, o Windows Sete tinha um ótimo jogo; Não, não! Vivia sendo surrado pelo maldito programa– Concluí enfadado.
Sem saber o que fazer com a insônia que me aflora os nervos retorno para o computador e revejo a lista dos contatos do MSN e  mais de 90% daqueles 100 nomes são de mulheres.  Mulheres com as quais tivera algum contato pelas andanças virtuais, e diga-se, gente que nem mais me recordava. Felizmente para mim e para elas e a fim de evitar  constrangimentos do tipo – “Oi. conhecemo-nos onde, em que sala, que comunidade?” eu sempre as mantinha bloqueadas.
Antes, todos os nomes eram liberados e paguei muito mico pela decisão. Lembro-me que numa ocasião e que certo que a pessoa da foto com quem eu conversava era a Marta, uma professora de cursinho que conheci numa comunidade literária de Orkut, mantive o seguinte diálogo que, ao fim acabou me constrangendo:

-Oi Marta, tudo bem? Como estão marido e filhos? O menorzinho melhorou da caxumba? - Ela demorava para responder. De repente.

-Cara, você é maluco? Meu nome é Eunice, sou lésbica e odeio crianças! - Respondeu, e pelo jeito, irritada. Fiquei na minha e não  passou mais de um minuto e Eunice fechou o MSN em minha cara. Provavelmente eu conhecera aquele figura em alguma sala de sexo da Uol.

Ria daquelas lembranças quando novamente segui os nomes dos contatos; Bingo! Estava lá e ainda online! – CASA DE MASSAGENS LEONORA – Lembrava-me bem de Leonora. Talvez uns 45 ou 46 anos, conservada, coxas grossas e seios volumosos. Eu estivera em seu respeitável estabelecimento por cinco ou seis ocasiões. Era uma casa enorme e de muitos quartos com banheiras de hidromassagem. Aliás, á bem da verdade é bom que se diga que  esse segmento que pretende abocanhar executivos com a indicação de "massagens" é uma grande farsa. Mentira porque as meninas fazem barbaridades com nossos corpos, exceto ao que se propõem; massagens. Rememoro então a terceira vez que ali estive e Leonora me chamou discretamente e me entregou seu cartãozinho. Olhei; além do seu número de celular constava também o MSN. O cartão eu perdi, mas ja havia cadastrado o seu MNS. Lembro o que falou no ato de me entregar o cartão:

-Assim é mais fácil, rápido, prático! Esquema Delivery, sacou? - Disse à queima roupa e a bordo dum sorriso canalha impregnado em seus lábios vermelhos.

-Claro, claro, saquei! – Confirmei à época ao piscar-lhe o olho.

Sem me perder das lembranças continuo com os olhos fixos naquele nome quando me pergunto; Cara, você está realmente a fim de alguma mulher? Eu não sabia. Não era a falta de mulher que me matava, era o tédio. Tiro no "cara ou coroa"?  - Penso comigo -  "Cara" - Decido - Tiro uma moeda do bolso e jogo para o alto e ela bate em meu polegar e rola ao chão.  Mesmo sem me cientificar do lado que a moeda caiu decido e desbloqueio Leonora, e outra peço a solicitação de webcam:

-Oi meu querido! – Ela exclama. Evidente, minha fisionomia e a grana deixada em seu estabelecimento da última vez talvez selassem em meu rosto a expressão: VIP

-Leonora, boa noite! Como estamos de garotas? – Pergunto num sorriso forçado.

Leonora está vestida numa negra blusa de tule, transparente, e que deixava à mostra o formato dos apetitosos seios. Eles parecem estar em plena forma e se adornam num sutiã  branco talvez, menor dois números ao que deveria ser. Olhando atentamente para o seu par tive a impressão que ansiava mais que a liberdade condicional, parecia louco pra se ver livre de vez do tecido que o entrincheirava No rosto, Leonora carregava uma maquiagem pesada,  azul, lilás e verde, assim como se estivesse pronta para um baile de máscaras.

-Xi, meu caro Bates! Numa hora dessas não sobra  grande coisa, todas já se foram! Pra te falar a verdade está aqui unicamente a Sheylinha. Lembra-se dela?

-Sheylinha... Sheylinha. Ah sim, lembro... Aquela magrelinha de bumbum atrofiado –  Digo num tom de decepção.

-Sim, essa mesma!

-Bem, se não há outro jeito... quanto ta a morte? – Perguntei

-Hum... pra você, fim de noite... faço 150 pratas. Ta bom assim?

-Cem pilas e nenhum centavo a mais! – Propus. Certamente Sheylinha não valia nem a metade daquilo.

-Fechado! – Ela responde num quase “ufa! nem tudo está perdido”

Menos de ½ hora e o porteiro me chama ao interfone.

-Seu Bates, tem aqui uma... uma - Ele está constrangido. Realmente sua simplicidade nordestina não sabia mexer com as questões tão complexas da prostituição.

-Já sei quem é Adrael! Peça que suba, por favor.

Sheylinha toca a campainha e eu abro a porta. Ela fede à bebida barata. Vinte e poucos anos, a calça jeans agarradíssima faz suas pernas magérrimas darem a impressão que se livrarão do pano e acertarão bolas de bilhar. Ela nem pede licença e vai entrando e se desfazendo de algumas das roupas. Primeiro se despe da camiseta branca que traz no meio do peito um letreiro descascado na cor prata, mas onde ainda se é possível  ler: - Eu sou, mas quem não é? – Em seguida retira as calças ficando apenas de calcinha e sutiã.
Definitivamente Sheylinha não me causava qualquer tesão:

-Ô seu Bates, bora andar logo por que daqui a pouco  eu tenho que pegar o buzão no Parque Don Pedro. É o "negreiro" -  Ela comunica. Aquilo me aborreceu, pois não há nada pior que prostituta apressada, ainda mais para um último ônibus.

-Calma filha! Não quero trepar, não. Vamos apenas conversar! –

-O senhor não vai brincar de pif-paf comigo? – Ela exclama e gargalha numa feição à-toa.

-Isso mesmo! Sem pif-paf hoje - Confirmo

Ela se aquieta e conversamos por um tempo e eu soube de todas as desgraças que cercam a vida das prostitutas. Uma história triste como tantas de outras de garotas vindas dos confins para um grande centro à procura do lugar ao sol. Porém o bom senso sempre indicou cautela e ceticismo com as histórias de meretrizes  Antes de ir  embora ela ainda se oferece.

-Seu Bates, tem certeza que não quer pelo menos uma bronha ou um boquete?

-Não, Sheylinha. Hoje não quero nada! – Garanto-lhe com um piscar codial.

Com a resposta ela se veste à minha frente e eu sinto comiseração pela criatura.  Há nela um olhar de criança inocente, de quem está doída, machucada. Provavelmente existam nela muitas cicatrizes e sinais duma dura existência e  daquilo que convencionamos alcunhar de "mundo cão".
São 05:35 da manhã quando Sheyla deixa o apartamento com o dinheiro dentro do bojo direito do sutiã. Ela me acena e dá o último sorriso vagabundo.
Assim que se foi tudo se tornou escuro,  quase negro.
Volto ao computador e há apenas três pessoas que se mantém acordadas naquela hora. Pessoas quais também não me recordo. Desligo o aparelho e vejo a tela do monitor definhar comigo, morrer comigo, e agora não há mais vidas ali, há apenas um monitor de cristal líquido que finalmente se livrou dos malditos anúncios multicores. Deito a mão nele e ele está quente, cansado, portanto também merece descanso.

Lembro também que saindo da sala fui ao banheiro e dei uma bela mijada. Depois escovei os dentes,  lavei o rosto e a feição que vi refletida no espelho me assusta. Eu parecia estar com mais de 50 e não os 41 que de fato tinha. Dirijo-me ao quarto e visto o meu pijama de flanela. Olho para ele e sorrio de mim e da  lembrança duma certa vez, onde ébrio e numa roda de amigos confessei que usava um daqueles. Foi o suficiente para me tornar o alvo das suas gozações– “Isso é coisa de boiola, de gay!” - Eles gritavam e riam e anunciavam o meu pijama para os outros clientes que bebiam e comiam petiscos. E eu apenas ali, sem graça, rubro, até que a vergonha aliou-se á minha raiva e mandei todo mundo se foder, inclusive o garçom metido à gozador; Que fosse  à merda toda  aquela cambada de recalcado, pois  jamais  me separaria dos meus pijamas de flanela, quisessem ou não. Ainda com a feição contrariada pela lembrança ajoelhei à cabeceira da cama.

-Pai, faça que meu dia hoje seja diferente ao de ontem!  - Pela primeira vez em anos eu rezava. Pela primeira vez em muito tempo eu pedia algo para Deus. E pedia com devoção.

Em seguida rezei três padres nossos e fiz o sinal da cruz. Algo necessitava ser mudado dentro de mim, por isso pedi com fé. Terminado, enfiei-me debaixo do cobertor.
Pela janela a claridade ainda amena me fazia ter certeza que um novo dia estava à caminho. Sim!  Sempre haverá um novo dia que poderá me reservar sol, chuva, gente que ama, gente odeia, coisas boas, coisas más. E nesse mesmo e renovável dia o mundo persistirá girando sobre o seu próprio eixo e nós não o sentiremos, aliás, jamais sentimos.  O planeta terra será notícia, sempre. Notícias que espocarão em frações de segundos na rede, nas rádios e nas TVs. Notícias que darão conta de tragédias e atrocidade num mundo que agoniza. Notícias que eu só terei ciência quando acordar lá pelo meio da tarde, mau- humor, boca amarga, ainda ébrio de sono por mais uma ordinária madrugada.
Algo andava muito mal dentro de mim, e pela primeira vez em anos eu queria mudar as rotas do meu subterrâneo, eu queria amor que não naufragasse. Eu precisava de voz aveludada, de sorrisos generosos. Necessitava de alguém que me abraçasse pela cintura e que desligando a TV depois da sessão da novela das oito e me convidasse para uma grande noite de amor. Esse mesmo amor sempre me foi estupidamente complexo e incompreensível e dum mesmo tom da virtualidade que me tornara.
Fiquei pensando naquilo por alguns bons minutos e quando  outra vez olhei para a janela percebi que cortina não mais atenuava a claridade da manhã. E aquilo me impressionava, de como a luminosidade em fração de minutos se apoderava de tudo. Talvez a claridade me fosse a esperança, o salvo conduto para que algo se acendesse dentro de mim.
Remexi-me na cama por mais alguns instantes até me sentir aquecido pela flanela do pijama e do cobertor

-Que se fodam, aqueles babacas! - Praguejei-lhes uma última vez.

Era a hora do subterrâneo dormir.


Copirraiti 23Ago2011
Véio China©

sábado, 20 de agosto de 2011

Entregues & Possuídos

Ao lado da cama a janela entreaberta. Nela, um pequeno e ansioso rouxinol gorjeia  sua curiosidade por aqueles inexplicáveis afagos e beijos.
Acima dos lençóis o homem misturado ao cheiro de cidade e um odor do Paco Rabanne apenas sorria para a mulher. Para eles parecia que há muito nada houvera de tão significativo. Tomavam-se de um sentimento quente, suas veias em erupção pelo movimento frenético do sangue, embevecido por algo para o qual não há antídoto, a não ser o próprio veneno adocicado que ora experimentavam.
Pela mesma fresta penetravam alguns poucos e envergonhados raios de sol, tão gélidos ante o verão que se presenciava naquele quarto.
O gosto das bocas se tornava o mesmo, os perfumes já não eram discernidos e o gorjeio do rouxinol se misturava ao leve ranger do madeiramento da cama.
Cama que abrigava muito mais que corpos à procura de prazer. Cama que guardava os segredos daqueles seres que se tocavam cálidos. Era certo; Ali não havia só a carne e os delírios que nela se enseja. Ali havia mais, muito mais; era a doçura, a cumplicidade além do desejo.
Ofegavam quando os sussurros abandonaram seus lábios e se misturaram vagantes, escoando pelas paredes do quarto. Agora, dois seres a mercê das sensações, resvalando suas bocas, sentindo sabores antes distantes, faiscando olhares, reféns absolutos dum estado de luxúria e paixão. E assim foi que se possuíram; Um inferno misturado ao infinito, rebuscando cores, deuses e diabos sucumbidos ao imensurável prazer.
La fora a vida seguia seus passos, indiferentes, sem cheiros, sem murmúrios, sem nexos, tampouco sem o líquido e o gosto daqueles que se tornam unos.
Depois disso, extasiados apenas sorriram e se beijaram; Eles sabiam que o mundo não fazia noção das chamas que aquelas paredes invejaram. Paredes que se impregnaram de um olor saído das profundezas dos seus espíritos, escoando pela tez, manifestando-se na emoção que rouba a própria razão.
Mais que isso, tinham toda a certeza que por algum tempo houve ali o fascínio e a entrega de suas almas. Almas que abraçaram corpos que se adentraram, mãos que devassas se perderam e reencontraram caminhos cúmplices que margeiam pessoas dotadas de emoção.

Copirraiti 20Ago2011
Véio China©

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Um dia de fúria - By Véio China


Definitivamente aquele não foi o meu dia de sorte.
Novamente subia ao apartamento, só que dessa vez para trocar a calça e por um fato absurdo. Lembro-me que pouco antes ao descer do 13º, meu andar, o elevador estacionou no 5º onde entraram a dona Isolada e seu cachorrinho, um chihuahua enegrecido e com manchas claras no peito. Mesmo para os que escassamente conhecessem a o histórico dos moradores do condomínio nunca foi surpresa que, tanto eu quanto o cão não morríamos de amores um pelo outro,  num antagonismo declarado . E o pior nele era a  expressão sádica, além, óbvio, dum aparente retardo mental. Claro, bem que poderíamos isentar dona Isolada de idênticos predicados, mas não, pois às vezes sua natureza indomada sugeria ser tão ou mais esquizofrênica que a do próprio cão, pois é  provável que o chihuahua tenha herdado algumas manias em tão estreita convivência.
Ah sim! Sobre sobre  ela só posso dizer que era a mulher do síndico, criatura obsessivamente gorda e de peitos 58, se é que a numeração possa existir. Entretanto as suas dimensões e grandezas não estacionavam unicamente por ali e o que me faz ser mais insensível na análise do seu perfil psicológico, afinal, mesmo não sendo a síndica por direito a era de "fato" tal a facilidade de ingerência no vida do edifício, toando decisões, dominando e manipulando o marido síndico, seu Virgílio. Bem, e em se tratando deles (síndicos) boa parte me atemoriza  mais que os próprios batedores de carteiras que se postam nas esquinas de grande movimento. E por que isso? Simples... com os ladrões sabemos que estamos sendo roubado por ladrões...

Esquecendo essas questões que envolvem os síndicos e mulheres dominadoras retornemos ao Paquito (era esse nome do chihuahua) e àquele infeliz  dia onde o coisa sádica  houve por bem confundir a minha calça cinza com um poste de rua ( ao que achei intencional) maculando-a  com uma urinada espetacular. Recordo que momentos antes havia algo que me perturbava ao descer pelo elevador, talvez fosse um sexto sentido, não sei. E a premonição foi desvendada no se  abrir a porta no 5o andar  e ao vê-los entrar no elevador. Assim que enfiaram seus pés na cabine me percorreu no corpo uma sensação desconfortável, ruim,  tanto que afrouxei a gola da camisa social. Lembro de ter cumprimentado a dona Isolda com um desinteressado "oi" e  fixado meus olhos na placa luminária presa ao teto para fugir á presença da dupla. E eu olhava para as luminárias por não mais dez segundos quando senti algo quente  transpassando as as barra das minha calça, umedecendo a meia e o calcanhar.
Instintivamente dirigi meu olhar para para a direção dos sapatos e flagrei o Paquito com uma das pernas levantadas e o volume líquido era tanto que a sua urina escorria pelo peito do meu mocassim e  seguia criando um veio no  piso cerâmico.
Aquilo me irritou profundamente, pois me sentia agredido com a displicência descarada de dona Isolda ao reprimir o seu problemático animal:

-Paquito! Tenha modos e não faça pipi na calça do cavalheiro! - Ela dizia para o cão que a olhava com feição demente e sem qualquer receio ou medo. Óbvio, diante o blefe de sua dona persistiu urinando em minha calça..

Puta que pariu! Eu tive vontade de chutar o rabo dos dois. Chegando ao térreo, apesar da raiva me foi impossível não maldizê-los ao vê-los andar à minha frente, lado a lado, e tudo neles contrastava, até os ridículos e desengonçados rebolados.
Sem alternativas subi  ao meu apartamento, tomei uma rápida ducha  e desci com as calça trocada. Chegando ao térreo bato as mãos no bolso e não encontro minha carteira. - “Porra seu cabeça de asno” Xingo-me, pois esquecera de tirá-la da calça trocada. Retorno ao apartamento e localizo a carteira e desço com o elevador que para dessa vez no 7º andar. Um calafrio me percorre o corpo, pois aquele não era mesmo o meu dia de sorte. Ali, à minha frente dona Sara e sua famigerada cria, Brigite, uma garotinha loira dos seus sete anos entram. Definitivamente ela sempre pareceu ter problemas comigo; não, a mãe não, a garotinha.  Acho que estava com tanto azar que só me faltava também dar de cara com o nazista. Enfim, era tarde para recuar, e quem sabe se a sorte me ajudasse. Cumprimento dona Sara, e olho para a garotinha e tento sorrir um sorriso de simpatia. Não adiantou.

-Mãe, olha... é o moço com nariz de... – Prontamente interrompo Brigite,  a chatinha,  e completo.

-Já sei! O homem com nariz de palhaço, não é? Não era isso que ia dizer? - Pergunto com um sorriso amarelo.

-Era! E que também tem o nariz vermelho! -  Ela devolve prontamente e sem pestanejar.

Olho para ela com um outro sorriso, desses que adoram estrangular crianças malcriadas, pois provavelmente era a 15ª vez só naquele ano (e ainda estávamos no início do 2º semestre) que eu a ouvia de sua boca petulante a afirmação que meu nariz era enorme e vermelho. Bem, talvez até fosse um pouco, mas aí deveríamos creditar aos fatores genéticos e hereditários, já que eu era oriundo da mais alva raça germânica. Dona Sara que à tudo assistia achou que é era a hora de intervir

-Filhinha, mamãe já te pediu diversas vezes! Não deve se referir assim às pessoas, mesmo que você tenha razão ou que haja um motivo verdadeiro! – Se havia coisa que admirava em dona Sara era o seu espírito conciliador, apesar de que naquele momento não me foi de grande valia.

O resto do percurso foi feito sem grandes atropelos e a menina esquecendo-se do meu nariz  apertou os botões de todos os andares sob a intrigante complacência da mãe. “Ah, Noêmia, aí vou eu!” Eu sussurrei comigo ao chegarmos ao térreo. Um pouco mais saia pelo portão e me encaminhava para o meu veículo que deixara estacionado em frente ao prédio e bato as mãos no passante da calça jeans á procura do chaveiro  do carro, e... - "Puts, é foda! Você esqueceu as chaves do carro, asno!" - Agrido-me. Mais uma vez retorno para o interior do edifício e no saguão dou de cara com a mãe e a filha, já que dona Sara parecia reclamar algo com o zelador. Definitivamente eu estava encrencado...

-Mãeee! Olha... o moço com nariz de palhaço voltou! – Brigite exclamou numa  surpresa infantil, porém insuficiente para aplacar o aborrecimento de Dona Sara que a reprimiu com alguma severidade. Bem, quanto ao resto nós já sabemos:

-Filha, eu já te falei e não vou mais repetir... NÃO SE INCOMODE COM O TAMANHO DO NARIZ DO MOÇO - Ela a admoesta num tom exagerado

A reprimenda seria ótima se não houvesse tantas pessoas  que transitavam por ali naquele instante e que  a ouviram  perfeitamente. E digo com certo aborrecimento, pois agora sim o meu nariz faria parte do folclore condominial, exposto e devassado ao domínio público. E o fato era tão notório que dona Amélia do 18o, e duns 80 anos transitando pela portaria na companhia de sua filha e com rumo ao hall dos elevadores não me isentou da sua honesta observação:

-Nossa! Olha só Roseli... e não é que o moço tem uma napa e tanto?- A filha, uma discreta quarentona otimamente apessoada sorriu-me desajeitada e continuou conduzindo a matriarca pelo pelo braço. Não tinham se afastado demasiadamente quando ouço a gentil advertência de Roseli

-Pelo amor de Deus, mamãe, que coisa feia! Deixa o nariz do moço em paz! Eu já vi bem maiores que o dele!

Jesus Cristo, eu não merecia aquilo. Encabulado, continuei batendo as mãos nos bolsos, disfarçando, esperando que subam para depois ir para lá. Novamente vou ao apartaemnto e procuro as chaves do carro e as encontro em cima da estante da sala. Estou de saída quando o telefone toca. - “Deve ser a Noêmia e provavelmente aborrecida” – digo comigo mesmo, afinal, eu já deveria estar em sua casa há mais de 10 minutos.

-Alo, quem fala? A pessoa se antecipa e me pergunta – Não. Não era a Noêmia. Era sim uma voz aguda e que me parecia ser de homem apesar da excessiva afetação.

-Pois não, com quem quer falar? – Devolvo

-É o Kaká? –  A pessoa insiste. Bem, meu nome era Carlos. Carlos Brickmann, pra ser mais exato. Porém não me recordava de ser chamado de Kaká por qualquer pessoa conhecida.

-Sim, é o Car - los  Brickmann que está falando! – Retribuo separando sílabas como  incentivando a pessoa a me tratar num tom mais formal.

-Ai Kaká, aqui é a Rogéria! Sabia que você é delicioso? Já estou sentindo falta desse teu corpinho ao lado esquerdo da minha cama – Disse num tom espalhafatoso. Claro, eu não era um gênio ou um fonoaudiólogo, mas tinha a experiência suficiente para reconhecer as nuanças de um travesti.

-Escuta aqui seu Rogério não sei das quantas! Você ligou pro número errado, pro cara errado. E a porra do meu nome não é Kaká. É Carlos! – E bati o telefone.

Já estava fechando a porta quando o telefone toca novamente – “Agora é a Noêmia” – Exclamei -  Retiro o telefone do gancho e coloco no ouvido e ouço plano de fundo uma daquelas canções   de Gloria Gaynor com identidade no universo homossexual

-Kaká, você é um grosso! – Outra vez alguém bate o telefone, mas desta feita não fui eu. E além do mais o sujeito estava com muita sorte “Ah se naquele momento eu tivesse um identificador de chamadas” – Lamentei.

Novamente estou no hall quando o elevador chega. Entro e aperto o “T” Outra vez ele para na descida,  agora no 8º andar. Nele entra um o sujeito mais temidos da região e justamente a quele que eu não  queria encontrar - O nazista  Wolf Hocken - Wolf era um careca de quase dois metros de estatura e uns vinte e cinco anos. Ele é simplesmente um monstro, algo como uma ilha  que tem corpo cercado de banhas por todos os lugares e  distribuídas nos seus mais de 160 quilos de peso. A sua negra camiseta  EEXGG é imensa e estampa uma suástica em vermelho e que lhe confere uma aparência atemorizadora.
Sim, eu tinha informações de fonte limpa que Wolf era um desses Skinheads da pesada, inclusive a polícia já estivera em nosso prédio umas duas ou três vezes à sua procura para esclarecimentos.

-Sieg Heil! Camarada Brickmann! – Ele me saúda cerimoniosamente com o braço  em riste tocando os calcanhares dos coturnos que produzem som duma batida seca.

Traduzindo, era saudação com um “Salve a Vitória” como se eu participasse das suas ideologias. Porém ele me irritava com  aquela sua mistura de Vladimir Lênin e Adolf Hitler. Eu o olhava e me perguntava qual o miserável que fornecera minhas passado informações pessoais ao babaca, inclusive  o meu sobre nome de descendência germânica. Sim! Morar em condomínio era uma merda!
Não pretendendo contrariá-lo ergo meu braço e devolvo a saudação e saímos juntamente do elevador e ele segue apressado pelo saguão e à minha frente. Olhando-o pelas costas era temerária e agressiva a sua compleição, ainda mais porque soubemos que ele esteve metido em agressões às minorias sociais,  discriminações que geraram violência e que podem fundamentar mortes. Deixei-o se distanciar e Wolf seguiu cada vez mais rápido até desaparecer das minhas vistas. - "Ah Noêmia, aí vou eu! Agora ninguém nos segura!”–  Sorrio.

Entro no meu Tipo 96 e sigo em frente. Eu estava louco pra mostrar o meu novo carro pra Noêmia, adquirido por suados 7.500 reais. Ansioso, vencia as ruas deixando para trás alguns carros e faróis vermelhos, já que era deficiente a fiscalização do trânsito nos dias de sábados. Em exatos 20 minutos estou em frente ao prédio dela num bairro Judeu; um edifício relativamente simples que abrigava garagens coletivas. O porteiro ao perceber que era eu que estava atrás do volante e acostumado com a minha presença abre-me o portão automático da garage e eu entro com o veículo - “Ah Noêmia! Estou chegando, mais alguns andares!” -

E a minha carência era enorme. Carência dos seus carinhos, dos seus beijos melados, dos seu cabelos curtos e negros e de cada curva daquele moreno corpo de judia.  E a carência tinha motivos; há mais de 20 dias não fazíamos sexo, geralmente por minhas ausências à serviço da empresa em que trabalhava. – E quando juntos ela tinha o hábito religioso de dormir extremamente cedo. Não raras vezes me expulsou do seu apartamento ou tive que levá-la apressadamente do meu – “Amor, preciso dormir, descansar. Entenda, por favor,” – Noêmia costumava me comunicar antes mesmo de começar a novela das oito, que ironicamente nunca começou antes das nove. Bem, fora esse insignificante detalhe, eu e ela nos dávamos muito bem, ao ponto de pensarmos num compromisso sério, fato lógico para quem está junto há mais de um ano. - “Ah, Noêmia, Noêmia, estou a poucos metros de você! - Aguarde-me!” – Disse-me na subida do elevador

Chegando ao seu andar segui para a porta e toquei a campainha  Nada. Apertei o botão e outra vez ninguém atendeu. Mantive os ouvidos grudados ao madeiramento da porta e não ouvi qualquer ruído no seu interior. - “Talvez esteja no toalete”! – Pensei – Aguardei mais 5 minutos e toco novamente a campainha. Insatisfeito, pressiono o botão sem dar folga ao dedo. Talvez a sirene tenha sido tão irritante que a vizinha saiu à porta.

-Ei moço! Quer parar de tocar campainha? Noêmia não está aí. Ela saiu há coisa de ½ hora, mais ou menos – Me comunicou laconicamente.

Dito isso fechou a sua porta sem esperar qualquer pergunta minha. - “Caraca! Acho que ela deve estar muito puta comigo!” – Deduzo. Enfim, Noêmia, depois de tanto esperar deve ter cansado e saiu para dar umas voltas, provavelmente para me irritar.

-Ah meu Deus! Que saudades daquele rabo, do  par de coxas fenomenal, dos peitos EG! – Reclamo comigo em alto e bom som ao sair do elevador, já no saguão.

-Como assim... que quer dizer isso de peitos EG  seu Carlos? – Pelo jeito eu não estava sozinho, e o porteiro estava atrás da coluna próxima à saída dos elevadores e sem que eu percebesse.

-Foi nada não Expedito! Esqueça! – Finalizei. Provavelmente só ouviu parte final da frase, e mesmo assim não seria eu a lhe explicar o significado.

Despedi do porteiro com um aceno de mão e desci ao estacionamento. Quase seis da tarde e a noite se precipitava  bela e calorenta lá fora. Provavelmente nas ruas e àquela hora as pessoas zanzavam de um lado pra outro, esperançosas e no aguardo que coisas boas acontecessem.  Chegando ao carro eu tentava enfiar as chaves na porta do veículo quando sinto algo chocando dolorosamente em minhas costelas.

- Ei tio! É um assalto! Quietinho! Tu num vai querer uma pancada na cabeça como a mulher do carro ao lado, né? –  O sujeito disse num tom ameaçador enquanto um outro comparsa me cerca pela lateral.

Provavelmente os marginais entraram enrustidos com alguma moradora. Apesar do tom enérgico noto que se trata de um jovem, o que me fazia ter medo dos seus dedos ansiosos e talvez sem muita experiência.  Deus do céu, esses caras não perdoavam nada?  Nem prédios residenciais? Vejo nas costas do outro garoto uma enorme mochila e ela está abarrotada com coisas que não sei precisar. Com os cantos dos olhos inspeciono à nossa volta e percebo que os vidros de alguns carros estão estilhaçados, o que me leva a crer que eles entraram para furtar aparelhos DVDs e toca CDs do interior do veículos, pois dificilmente deixam  alarmes ligados nos estacionamentos. Presto atenção e cerro as vistas e olho no carro ao lado e  consigo agora consigo ver a moça desmaiada no seu banco do motorista, apesar do vidro fechado e da escura película de insulfilm e provavelmente era ela a pessoa com a qual os garotos entraram. Olho e ela continua desfalecida, certamente ao receber uma coronhada na nuca. Então eu penso na situação e recordo que o automóvel  se ladeava ao meu ao quando adentrei no garage, e isso indicava que eles já deviam estar  espalhados por entre os carros praticando os furtos.

- Não, não! Tudo bem! Eu não vou reagir - Respondo ansioso e temerário que algo de ruim possa me acontecer - Depois ofereço: - Podem levar a minha grana e o meu carro, mas, por favor, não me façam nada de mal! –  Era evidente o meu medo, ainda mais que por qualquer bobagem um fedelho daquele poderia estourar os meus miolos. - "Quem tem cu tem medo!" - Costumava dizer a minha avó, portanto sei que esses garotos são inconsequentes e rápidos tanto  para roubar, assim como matar.

Decorrem segundos que parecem a eternidade e apenas sentia o cano do seu revolver nas minhas costas. Ele nada respondeu, parecia estar perdido em alguma questão, até que se pronunciou:

-Não... não! O seu Tipo é ano 96, né tio?

-Sim! Tipo 96 modelo 97! - Respondo gaguejando. - Ele pensa por mais alguns segundos e me diz:

-É o seguinte, tio, o Tipo 96 não interessa então ele fica com o senhor e a grana vai com a gente. Tira a grana do bolso, rapidinho, anda! – E estocou a arma  outra vez em minha costela. Suava frio quando enfiei a mão no bolso e retirei a carteira  e os 300 reais em notas de 50 e outras de menor valor

-Olha aí tio! Fica com esses cinquentão! Prum pneu furado deve dar! Boa sorte com o tua caranga 96, ta? Agora tira a gente daqui! E quietinho, não se esqueça que vamos estar deitados no banco traseiro e com a arma apontada pras tuas costas.  O tio não vai uma de mané e ganhar um tiro... vai? – Naquele instante percebi que se alguma coisa desse errado eu poderia dar adeus ás minhas intenções e vontades com Noêmia.

Eles vão para trás e o sujeito da arma fica estocando o meu banco com o revolver enquanto abandono o edifício do bairro Judeu. Não ando mais que 50 metros e ele me manda parar. Paro e os marginais saem do meu carro e não demora nem 15 segundos e surgem duas motos que freiam ao lado da minha janela. Evidente, eram os comparsas. Os dois ladrões enfiam rapidamente os capacetes oferecidos e sobem à garupa e saem em disparada.  Ainda o vi o rapaz que me ameaçava acenar para mim assim quando a sua moto partiu
Trêmulo, aspiro e inspiro um bom bocado de ar e parto para a Delegacia de Polícia mais próxima: Não! Não seria o Carlos Brickmann  que colaboraria com a impunidade no Brasil e nem fazer parte das estatísticas dos crimes não comunicados, principalmente os mais violentos. Porém, participar e fazer parte das estatísticas em nosso país custa um certo preço, e caro; Saio de lá quase às 22hrs envolto em descasos e respeito da máquina pública. E é dentro duma delegacia de polícia que você  percebe o quanto  a vida pode ser dura, pois la eu vi de tudo; Vi bandidos algemados, pessoas baleadas, ferimentos, sangue escorrendo, gritos de horror e tantas outras barbaridades. Enfim, foi deprimente.

O meu dia fora um fracasso absoluto. Eu ficara sem Noêmia e suas coxas grossas. Ficará sem uns bons trocados, mas, ainda com sorte ao continuar com meu Tipo 96, aquele mesmo relegado com respeito pelo jovem criminoso. “Ah Noêmia! Eu queria tanto te mostrar o meu carro novo!”
Está certo que não era um modelo moderno, mas o carro estava em excelente estado de conservação e possuía  até um toca-discos Pioneer, antigo, mas em bom funcionamento.

Ao sair da delegacia me senti tão frustrado por não encontrar a minha garota que, algo nostálgico me seduziu e tive saudade de  tempo atrás e da Rua Augusta. Pensei por alguns instantes - " E por que não?" - Como nada contrario foi questionado e numa tentativa de reeditar-me numa parte da década de 80, me dirigi para la. Ah, como eu lembrava das casas de shows eróticos e das prostitutas que se apinhavam nas esquinas e que conferiam à noite um tom melancólico e desesperançado. Recordo também que àquela época costumava percorrer os quarteirões pecaminosos a bordo de uma Brasília amarela, e não seria necessário confessar que apenas gastava gasolina e pneus indo de um lado para outro. Sim,  era só despesa, já que por mais que pretendesse transar com uma daquelas mulheres, nunca consegui. Talvez eu apenas gostasse do clima noir e dum sentimento triste ao vê-las prostituindo seus corpos semi desnudos e vestidos em por calcinhas de todas as cores,  vermelhas, verdes, brancas, negras, e algumas até com certo vestígio de sangue menstrual. E relembrando o tempo não há como esquecer das suas maquiagens pesadas,  pródigas nos tons rosados e azuis, negros e que as deixavam com feições de mortas-vivas. Porém, naquela noite a nostalgia do roubo  se fazia necessário retroceder no tempo. Lembro que fiz os mesmos percursos de antes e nada parecia ter mudado, nem suas bundas, seus peitos e maquiagens coloridas, e elas todas ainda continuavam em vitrines de aberrações.

E assim eu percorria as ruas e todas tinham as mesmas caras e pernas e peitos, e já estava desistindo quando vi uma delas escorada na grade dum estacionamento em local de parca iluminação. Olhei para ela e seus longos cabelos loiros e ela e eles pareciam diferentes e combinavam com um conjunto de saia e blusa negra. Olhei para a saia acima do joelho e ela era mais comportada que das das outras garotas. Dei o farol alto na tentativa de vê-la melhor, já que donde  estava ela me pareceu linda, mesmo que carregando  maquiagem em seu rosto. A princípio ela se sentiu incomodada com farol que a cegou instantes, e então desliguei as luzes e o motor do carro. Ainda sob o efeito dos potente faróis resvalando suavemente as mãos junto dos olhos veio na direção do meu carro e depois para a minha porta. Ao estar praticamente ao meu lado pude lhe ver o corpo e excitei-me sobremaneira, pois as curvas da prostituta eram simplesmente divinas, e me surpreendia o fato de naquela hora  não estar gemendo em alguma cama dos pútridos hotéis da região.

Ainda na penumbra da pouca iluminação ela se debruçou à janela do carro para oferecer seus serviços;

-E aí garotão! O que vai ser pra hoje? Um boquete ou uma transa completa? Eu reconhecia aquela voz no mesmo momento em que vi o seu rosto. Sim, eu a conhecia apesar da peruca loira.

-Noêeeeeeeeeeeemia!- Foi o meu gemido, foi a dor, enfim,  era o meu dia de fúria, não com ela, mas comigo. Como pudera estar com Noêmia há tanto tempo e não perceber?

Por um bom tempo foi aquela a última vez que nos vemos. Passado quase um ano e meio  voltei à Augusta e reencontrei Noêmia. Dessa vez não houve exclamação e nem surpresa. Houve sim uma mulher com traços de algum envelhecimento precoce e ávida em ter alguém para conversar - "Apenas quero alguém para me ouvir" - Disse-me ela. Penalizado fui com ela para um daqueles pardieiros e ela fez de tudo para que transássemos. Recusei, obvio, não senti o menor tesão. Depois,  um pouco mais centrada me contou da sua vida, aliás, me contou tudo.  Sim, o subterfúgio de sempre dormir cedo era pretexto para ir  à prostituição. Contou-me também que após a noite da descoberta o seu maior erro foi o não saber abrandar a curiosidade à primeira fumada do crack oferecido por um cliente de classe média. Agora estava viciada e não havia como retornar. Falei que existiam clínicas, até algumas com a iniciativa do estado, mas ela disse que se parasse de prostituir teria problemas com o seu cafetão.
A conversa já me incomodava quando fiz menção de ir embora e ela me pediu mais alguns minutos e novamente tentou fazer com que trepássemos.
Evidente, eu não transei com ela, apenas continuei ouvindo os relatos da sua desgraça e o quanto chorou naquele dia que tudo foi desvendado

Enfim... encarei suas confissões sem qualquer pretensão e fui embora. Lembro de ter  voltado à Rua Augusta algumas vezes e testemunhado que ela se definhava cada vez mais. Nunca mais frequentei aqueles quartos fedorentos e sempre lhe deixava algum dinheiro que ajudasse nas despesas. Recordo-me da última vez  que estive la e não a encontrei. Preocupado perguntei pelo seu paradeiro para uma de suas colegas. A resposta foi objetiva, dura e a óbvia:

- A Noêmia? A Noêmia já era moço!

Lembro que saí de lá um tanto desorientado. Doía saber que uma mulher de pouco mais de 30  sucumbira às drogas. E assim foi para ela e assim é  e será para outros milhões de dependentes  e sem que possamos fazer grandes coisas. Dilacerado desci a Augusta no seu lado mais central e estacionei o Tipo diante dum boteco fuleiro. Ali alguns bêbados de meia idade e de bocas-moles cantavam canções de Roberto Carlos que desfilavam num Jukebox caindo aos pedaços. Sentei numa das mesinhas vagas e pedi um rabo-de-galo e  cerveja. Tomei o primeiro numa única talagada. Solicitei outros e os demais sorvi com maior persistência. Embebedar-me era inevitável e mera questão de tempo.

Talvez estivesse pelo quarto drink quando me juntei aos bêbados; Entre a meninice e a  adolescência eu ouvira as canções de Roberto Carlos, pois minha mãe nutria adoração por elas. Portanto, de tanto ouvi-la cantar acabei por decorar algumas, ou parte delas. Mesmo que não mais façam o meu gênero  existe todo saudosismo por suas letras românticas e ritmos apaixonados. Claro, jamais seria presunçoso em não admitir que jamais houve alguém que cantou o amor tanto quanto ele, amores que transbordando em suas composições me foram incompreensíveis, pois nunca os tive, portanto, não tendo,  jamais ofertei.
Passava das três da manha quando abandonei o boteco e ao voltar para casa fiz diversos ziguezagues  com o Tipo pela Radial. Leste. Por sorte na via expressa quase não havia trânsito e isso talvez tenha evitado que me envolvesse em acidente de proporção talvez até fatal.
Chegando em casa (há um bom tempo não mais residia em apartamento) bêbado e sendo o portão demasiadamente estreito, fatalmente havia o risco de amassar a lataria do carro. Sendo assim  achei melhor abandoná-lo em cima da calçada e bem defronte ao portão. Com alguma dificuldade consegui trancar o carro e entrar trôpego para dentro de casa. Provavelmente devo ter assassinado algumas formigas pelo caminho enquanto a morte sorria sarcasticamente para mim e num num sorriso que somente eu podia ver. Era como ela me dissesse: Irmãozinho vá devagar e nunca, mas nunca mesmo te esqueça que sempre estarei de olhos abertos para você.
Eu ri do meu pensamento; Ela e eu sabíamos que para mim era apenas necessária uma ótima noite de sono.


Copirraiti 17Jan2013
Véio China©