terça-feira, 6 de março de 2007
Hank - Um cão no divã do analista -
Hank, pra quem não sabe é meu cão e de idade avançada, talvez 8 ou 9 anos, não sei ao certo. Lembro que ele veio morar comigo há uns sete anos atrás, época que perdi a minha mulher para uma doença cancerígena e terminal. Naquele tempo me dividi entre sair zanzando por aí à procura dum rabo de saia que aceitasse as minhas manias, torcendo para que me adaptasse às dela ou a possibilidade de adotar um cão ou gato.
A bem da verdade eu nunca fora chegado à criação, principalmente aos animais domésticos, todavia as paredes da casa não miavam, não latiam e apenas silenciavam brancas como a cor do latex das paredes. Minha análise e decisão foi fria, calculista, primeiro descartei as mulheres, pois as além das minhas manias tinham as delas, afora darem mais trabalho que cães e gatos juntos, depois vieram propriamente os felídeos, apesar de serem dotados duma natureza independente que julgo essencial, mas que mesmo assim não preencheriam os requisitos para uma convivência pacífica e tranquila.
E sobre eles só me foi imaginar situações cruciais para chegar à conclusão que não queria gatos e nem gatas aprisionadas no meu telhado desfilando um linguajar de cio, luxúrias à brisa de madrugadas mal dormidas.
Sei que os aficionados por gatos poderiam sugerir que abrindo mão da discriminação providenciasse a castração, entretanto jamais aceitarei tal aberração, para mim seria o mesmo que me extirpassem os bagos ou fizessem-me a postectomia, enfim, um ato cruel e desumano.
Portanto mesmo sabendo que cães dão muito mais trabalho que gatos e menos que as mulheres me dirigi ao Canil Municipal e me interessei por um Tosa-Ken, um cachorro oriundo do Japão e de instinto guerreiro. Olhei para ele e o cão me pareceu ser maltratado pela vida, e me olhava tão inofensivo e carente que mais se assemelhava a uma cria indefesa. Talvez o animal estivesse com um pouco mais de um ano e trazia consigo marcas que testemunhavam os maus tratos que sofrera. Perguntei sobre ele e o funcionário respondeu que após denúncias ele fora resgatado, inclusive trazia cicatrizes nas patas, cabeça e no centro do peito. Resumindo, me foi impossível deixá-lo ali, pois ele me olhava com tanta abnegação mesmo existindo outras pessoas com interesse na sua adoção. Como decidi primeiro e com toda papelada acertada saímos de lá e nos dirigimos para o estacionamento. Ele caminhou calmo e dócil e se deixou conduzir por uma correia de couro que se prendia à coleira. Antes me deram uma espécie de carteirinha de vacinas com futuras datas de aplicação.
Postados junto à porta do passageiro eu lhe pergunto:
-Ei cão! Qual é o teu nome? . Ele me olha com a mesma atenção de antes e depois continuou impassível, como se esperando alguma decisão minha.
-Bem..é que estou pensando em chamá-lo de Kerouac ou Hank. O que acha de... Kerouac? - Ele novamente me olhou e permaneceu em silêncio. Sim, pretendia homenageá-lo com o que dizia a respeito do meu mundo literário. Ele persistiu olhando e depois elevou o corpo e cravou as patas dianteiras no vidro da porta.
-E que tal, Hank? - Perguntei ao abri-la e o mimei com um carinho na cabeça. Surpreendentemente ele latiu duas vezes e abanou o rabo. Era o sinal que gostara do último. E assim aos quase dois anos de idade nascia Hank. Então ele subiu para o banco ao meu lado e estamos juntos até hoje.
Claro, Hank é um animal inteligentíssimo, porém cheio das nove horas. Entretanto justiça se faça; é um cão imponente e amigável, principalmente com as crianças. Por vezes, me deparo perdido no tempo como se não houvesse nada de interessante para se viver que não analisar o temperamento do safado. E não sei se é pelo acaso de nossa longa convivência e ele nada viver que não seja sua ração e os falsoa ossos do Pet Shop da esquina é que me faz crer que ele tenha assimilado parte dos meus vícios, e eu, alguns dos dele.
Além de amigável, Hank é um cão altruísta e que não se prende em coleiras, apesar do porte, pois gosta de estar liberto e valoriza a independência, mesmo que para isso tenha que refutar as regras dos homens.
E não que ele seja unicamente manso, não, definitivamente não o é, principalmente com outros cães que se metem á valentões, mas é um cão que sabe respeitar o espaço que não lhe pertence.
Esperto e lúcido lembra das suas duras experiências e sabe que a mesma mão que afaga pode fazê-lo sofrer. Porém nos dias de hoje e com certo aguçamento Hank pressente o perigo e procura evitar situações indesejadas, nem que para isso seja necessário bater em retirada. Sim, confesso que também é um tanto temperamental, pois é comum flagrá-lo desinteressado àquilo que satisfaz a maioria dos cachorros. Todavia se pretendermos vê-lo feliz é só darmos a ele a liberdade para passear e farejar por todos os cantos. E ao tê-lo de rabo abanado é o indicador que está feliz e se interessa por algo.
As domingos ele se torna ansioso e adora adora relaxar as tensões na padaria da esquina. Assim, semanalmente nós vamos à panificadora do Joaquim. Lá chegando ele se posta à porta do estabelecimento e à frente de uma dessas máquinas de assar frangos e se torna atento aos movimentos dos espetos, num comportamento que faz divertir as pessoas que estão ali para adquirir os seus galetos. Sem tirar os olhos máquina e das portas de vidro temperado alguns que por ali transitam o conhecem e fazem carinhos em sua cabeça, mas ele não dá por suas presenças, fascinado pelos movimentos dos espetos e da carne que se doura. E desta forma, sentado no próprio rabo ele permanece por mais de hora assistindo o seu filme favorito - "Os frangos assados do primo Josué" - E ao fim o Jô lhe dá uma boa porção de pequenos pedaços que se desprendem ao corte da tesoura, e ele a abana o rabo e come seus tira-gostos avidamente. Sim, sei que deveria ao máximo evitar alimentos que não sejam a sua ração, mas é que o vejo tão alegre que não gostaria de me tornar um desmancha prazer. Lanche ingerido é hora de sairmos dali e irmos para o passeio que mais o incita; O Parque Municipal.
E sabendo que tomara contato com outros cães segue á minha frente pulando e cheirando por todos os cantos, e do seu faro não escapam nem as flores ou os sorvetes descuidadamente derrubados ao chão pela gurizada. E como ali é uma área pública e aberta é comum encontrarmos muitas cadelas passeando pelas alamedas arborizadas, e quando Hank as vê o seu peculiar jogo de sedução se inicia. Frio e calculista ao tratar com o sexo oposto, sabe que o contato com alguma delas o deixará tenso a ponto de notarmos a contração dos músculos do seu corpo. E, nessas horas e mesmo que se encante por alguma tem por hábito não mostrar excessivo deslumbre, assim como estupidamente fazemos quando expostos à situações que nos deixam de cabeça para baixo.
E o Hank aguarda a ansiedade ir embora e mais relaxado age com absoluta naturalidade ao inspecionar as candidatas com o seu exigente faro. Como um perito ele domina perfeitamente a técnica do cheirar, do sentir, e isso sim para elas o torna indecifrável e excitante.
Insinuante e calmo ele vai fazendo o seu trabalho ao se posicionar paralelamente à escolhida e roçar-lhe os pelos, tomando a precaução de nunca fixar-se demasiadamente aos olhos da parceira.. E ela, talvez desacostumadas com supostos descasos percebe nele um semelhante de estirpe e isso a a faz apegar-se mais e mais.. Enfim, na arte da sedução o Hank é praticamente imbatível, e ele persiste nesse fascínio até a certeza do melhor momento para penetrá-la. Ato concluso, agora sim explicita a supremacia num estilo "babe por mim garota" do mal agradecido que cuspiu no prato que comeu. E a sua atitude de certa forma abala a auto-estima da companheira e então ela procura se enroscar numa tentativa desesperada de continuar chamando a sua atenção. Sim, já vi algumas cadelas agirem dessa forma com ele, porém nessas ocasiões Hank se irrita e torna-se hostil. Óbvio, isso obriga a companheira a ceder o terreno e deixar-lhe o caminho livre. E esse é o momento que sorrio encabulado, pois não gostaria que ele fosse assim, mas há de se respeitar a natureza de cada animal. E a cadela se afasta como se fosse carta fora do baralho, e la se vai o paradoxal velho e jovem Hank se acompanhando dos seus macetes e à procura de novas conquistas.
E essas questões me fazem pensar, pois mesmo que eu admita a sua suposta indiferença ou dificuldade ao corresponder à afeição das fêmeas, se não seria o seu desinteresse a forma de se proteger de futuras dores ou dissabores. Talvez e mesmo sem ter sabido de minha história ele me tenha por exemplo e pressinta que apegar-se demasiadamente à fêmea e essa relação ruir, sabe que poderá sofrer. Evidente, minhas teorias poderão ser ridicularizadas por pessoas que não sejam leigas no assunto, mas mesmo assim eu não o culpo por Hank manter essa distâncias, afinal, ele é apenas um cão e que só tem a mim e à ninguém mais.
E é aí que reside a minha eterna preocupação, pois sendo um animal não há em nele o discernimento de que o seu dono não será eterno, talvez nem mesmo perceba que não estou com essa bola toda. Se há coisa que a vida me ensinou foi a última e dolorida lição, e também porque alguém na minha idade jamais deva se imaginar favorito numa corrida contra o tempo. E é isso que Hank não percebe e não sabe que pessoas com alguma idade estão sujeitas a passarem dessa vida para outra a qualquer instante, seja pela banalidade duma gripe mal curada, um caroço surgido inesperadamente, ou uma artéria importante e que jamais se supôs entupida.
Se isso me é desconfortável? Evidente que sim. Então me questiono;. E se ele partir ele antes de mim?
Bem..se ele morrer primeiro certamente sentirei a sua falta e sempre vou olhar para o seu cantinho e sentir saudades do seu rabo abanando. Vou relembrar suas doçuras, o focinho repousado no piso e os seus olhos quase humanos me fitando de baixo pra cima.
Porém... e se eu for antes, de imprevisto, fulminado por coisa qualquer e na solidão de minha própria casa,,quem cuidará dele? Quem se habilitaria?
Por via das dúvidas sempre deixo sacos da sua ração favorita nas portas dos armários inferiores da cozinha. A princípio e neste eventual e fatídico dia ele estranhará e sentirá minha falta pois não ouvira a minha voz o chamando. Então Hank olhará desconfiado e me procurará pela casa. E em me achando ficará comigo por umas boas horas num lamento solitário, afinal, eu sou seu pai e sua mãe. Entretanto ninguém é de aço e nem vive de brisa e a fome há de apertar e ele procurá por alimento.
Sim, eu o conheço bem e sei que seu faro dará em alguma das portas dos armários com propositais fechos frouxos, e que, com alguns dos seus toques de pata se abrirá facilmente. Inteligente, não será a embalagem da ração que impedirá o seu apetite, pois Hank tem dentes poderosos e sacolejará parte dela até que se rompa, e então espalhará os pequenos petiscos pelo chão. E como Hank é cheio das nove horas, talvez se lembre de mim naquele instante, já que sempre estou ao lado quando come. Pra ele é um momento difícil e crucial e se dividirá entre voltar para onde estou ou comer a sua ração. Porém, de estúpido e tolo ele nada tem e saberá que essas frescuras não o levarão a lugar algum e nem encherão a sua barriga.
Então o cão-gente, triste e resignado balançará timidamente o rabo e num olhar órfão comerá a sua comida.
Copirraiti19Jan2013
Véio China©
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