I – FOGO CRUZADO; AMOR E PRECONCEITO -
- Manoel! É sábado e preciso que me empreste algum dinheiro para tingir meus cabelos -
-Dinheiro pros cabelos? Tu pensa que sou banco? Quantas unhas e pés fez nesta semana?
-Seu desalmado, não te interessa! Por que não me falava isso quando eu ainda tinha curvas e um belo bumbum empinado? – Choramingou Glória, manhosa.
-Mulher, cada coisa no seu tempo. Naquela época eu era capaz de dar tudo por você, até assaltaria um banco se fosse preciso.
Glória o olhou surpresa - Ele, num ar de zombaria a fitava pelos cantos dos olhos. Os olhos cansados de um carregador de mudanças numa média empresa transportadora.
-Hum... Ainda bem que você não vai levar! – Resmungou travando o bolso com a mão diante a brincadeira dela em assaltar o seu bolso.
-Ah amor! Cinquenta reais ao menos. Olha como meu cabelo está feio –
Glória tentava espichar os cabelos descoloridos, um tom quase avermelhado na parte de cima juntando com o negro da raiz que, também não escondia alguns fios brancos.
-Jesus Cristo! Já percebi que não será neste ano que vou comprar os malditos sapatos italianos –
Brincou Manoel Pereira ao tirar da carteira uma nota de cinquenta e deixar guardada outra nota do mesmo valor. Não, não havia brincadeira nisso e um dos seus desejos nessa vida era um dia ter dinheiro suficiente para comprar um belo par de mocassins italianos.
-Sonhos e fantasias. Somos unicamente isso! – Exclamou ao ver a mulher lhe dar as costas para ir ao salão da Justina, a cabeleira mais barateira do lugar.
Antes que saísse, ranzinza como sempre o marido lhe perguntou:
-Cadê o safado do seu filho?
-O Pedro?
-Uai, larga de ser besta mulher... E nós temos outro?
-Ah, o Pedro Augusto ta por aí batendo perna. Esse moleque não faz outra coisa que não sair do rabo de saia da mulherada. Deve estar enfurnado na casa duma “dessazinha” por aí – Replicou.
Assim que ela se foi, Manoel sentou-se na cadeira da cozinha e diante de um café morno fincou os cotovelos na mesa e se pôs a pensar no que se transformara a vida. Quarenta e dois anos incompletos, pais falecidos e um filho que agora aos dezessete não se animava a bucar trabalho. E revivendo esse emaranhado de coisas viu-se tomado num desalento, um desencanto com a existência. Novamente abriu a garrafa térmica e engoliu mais um gole de café morno e rememorou parte de sua vida. Era como se ela fosse fragmentada, assim como peças de teatro. Relembrou os tempos do namoro. – Nisso ela tinha a razão – Glória fora um pedaço de mulher, dessa capaz de deixar qualquer homem excitado quando transitava naquela justa calças jeans, deixando sob o brim as marquinhas da sua diminuta calcinha.
Recorda também que o tempo, indelével, deixou marcas em ambos. Ele, à época morava com os pais e bem distante de onde se encontram agora. Recém calouro, freqüentava o seu primeiro semestre nos bancos duma faculdade de direito: seria advogado. Glória, manicure das boas, trabalhava num salão próximo ao cortiço onde morava. E o interesse por aquela mulher não tardou – Ansioso, ficava à espreita aguardando o momento que chegasse para o trabalho, tendo para isso que passar à frente de sua resid~encia. E ela toda faceira e percebendo que Manoel a fitava devolvia o galnteio um excitante sorriso que expunha uma dentição alva e perfeita. - “Bom dia”- Ele a cumprimentava – “Bom dia” ela retribuía. E isso era mais que suficiente para que ele ficasse feliz e fosse pra faculdade cantarolando “Estúpido Cupido”. Do interesse sensual para um estreitamento afetivo foi questão de pouco tempo. Apaixonado pediu-a em namoro, no que foi aceito de imediato – Foi o ponto de partida para os problemas se iniciarem. Para os seus velhos a união se traduzia num tormento inigualável: Conservadores e preconceituosos jamais consentiriam que o filho se relacionasse com uma pessoa humilde, favelada e sem família, já que seus pais residiam nos sertões de Alagoas,
E foi desse jeito abrupto que os sonhos de Manoel Alberto começaram ruir. Os mocassins italianos ficavam distantes, inclusive uma cama para dormir.
-Ou tu largas a moreninha queimada ou vais viver às tuas custas! – O pai de origem portuguesa sentenciou, como sempre arrogante.
E Manoel, talvez pelo mesmo orgulho adquirido em berço jamais admitiu que qualquer pessoa apontasse os seus caminhos ou que escolhessem o que ou quem servisse para ele. Não ele, um futuro advogado que tinha ótimas noções sobre os direitos dos cidadãos. Claro, ao optar por sair de casa suas prioridades mudaram drasticamente, relegando os estudos para um segundo plano, afinal, teria que prover seu sustento.
Inicialmente, mas ainda animado alugou um quartinho no mesmo cortiço onde Glória o apresentou. Logo cedo rumava para o centro a procura de empregos que pareciam desistir dele, afinal, sem jamais ter enfrentado o batente não adquirira qualquer qualificação, muito menos experiências. Diante das dificuldades e estando próximo ao fim o valor que economizara ao sair de casa foi obrigado a engolir o orgulho e aceitar a proposta de Glória para que fossem morar juntos no quarto dela, economizando assim o dinheiro do outro aluguel. Sim, era amor, o amor de Glória que propunha bancá-lo até que encontrasse alguma ocupação. E assim foi. Vivendo com menos que o necessário ela o sustentou por quase um ano até o dia que ele encontrou emprego Nesse meio tempo ele se penalizava ao vê-la sair para o trabalho arrastando o corpo, afinal era mais que comum voltar do trabalho às 21 horas. Portanto um complexo da culpa o atormentava até o dia que conseguiu um serviço. Retornou para co um sorriso estampado nos lábios e até comprou um garrafão de vinho ordinário para comemorem o progresso.
-Ao nosso futuro! – Brindou manoel num copo americano.
-Ao nosso futuro ! – Retribuiu Gloria na colisão dos copos
Mas o emprego de “catalisador de negócios” não perdurou mais que dois meses. Ele apenas desperdiçara tempo e sola de sapatos com aquela placa nas costas onde se podia ler “Compra-se ouro. Paga-se bem”. Foram dois meses de agonia. Os passes dos ônibus continuavam financiados por Glória e sem que ela ou ele vissem a cor de algum dinheiro. “As vendas não vão bem” disseram-lhe os donos do tal negócio, dois sujeitos corpulentos e mau encarados. Sentiu-se enganado, pensou em procurar a justiça do trabalho, mas como se nem o registraram? Metera-se numa arapuca e parecendo os sujeitos um tanto perigosos achou melhor cair fora sem mais complicações.
Depois da demissão a sua vida continuou incerta, pulando de emprego em emprego até se firmar nesse que está até hoje, há quase 20 anos.
-Nossa! Mas isso foi há tanto tempo! – Murmurou – Ah meus mocassins italianos – Disse num tom conformado –
II – O FILHO SE CANDIDATA AO SUBMUNDO -
-E aí garoto? O que tu queres por aqui no cafofo do Turco?
“Bira, o Turco” era o bom da boca, traficante maior da favela e da região. Nada acontecia naquele lugar que não fosse do seu conhecimento.
-É o seguinte seu Turco, to precisando trabalhar, faturar uma grana pra ajudar em casa. Sabe, o maior sonho do meu velho é ter um par de mocassins italianos...
-Garoto! – Cortou o traficante - Tu ta querendo se meter em coisa perigosa? Se os meganhas ou meus concorrentes botarem as mãos em você, vai estar frito e não vou poder te ajudar. É paletó de madeira e sem botões! Entende isso?
-Claro que sim seu Turco. Mas, aposte suas fichas em mim. Sou um sujeito inteligente – Disse autoconfiante e num sorriso de quem sabia o que dizia.
O traficante fitou-o por alguns segundos. Havia algo naquele garoto de pernas tortas que o fascinava. Era como se visse refletido nos seus 17 anos.
-Bom. Vamos fazer uma experiência. Se der certo, te efetivo no cargo. Se não, tu desce a ladeira e volta pras tuas negas.
Seu nome é Pedro, filho do seu Mané e da dona Glória, isso?
-Sim, é isso – Respondeu Pedro. - De fato, o Turco sabia de tudo que se passava debaixo do seu nariz. Não seria de se duvidar que Pedro nascera após os seis primeiros anos do casamento dos pais.
-Combinado então! Primeiro vamos te dar um nome apropriado. Pedro é muito surfista pro ramo – Turco olhava pras pernas tortas do garoto – É isso! Em homenagem às suas pernas te chamaremos de “Garrinchinha”.
Selado o vínculo de trabalho Turco sorriu, deu tapinhas em suas costas e abraçou o seu novo funcionário. Ainda sorria quando procurou nos bolsos de notas graúdas e escorregaram três notas de cem reais nas mãos de Garrinchinha. – Era o seu primeiro adiantamento de salário –
-Você começa agora! – Disse ao garoto ao enfiar na sua cabeça um gorro enorme com o brasão do Corinthians. Sim, Turco era corintiano fanático. Dentro dispôs algumas pedras de crack e muitos pacotinhos do pó branco, todos devidamente embalados e lacrados.
-Seguinte Garrincha, tu vai levar isso na Rua dos Tucanos 420 – Lá um sujeito chamado Louro Zé vai receber a muamba. São duas mil pilas. Se o malandro disser que paga depois tu não aceita e volta com o bagulho. Entendido?
-Entendido! - O garoto concordou. Ainda incomodava o gorro corintiano, justo ele, um fanático palmeirense! Antes que saísse ouviu do traficante:
-Hum... o sonho do teu velho é um par de sapatos? Hum.. é justo ter sonhos. Garoto, te prometo, haja o que houver seu pai ainda terá um par de mocassins italianos – O garoto apenas sorriu. Ele sabia, todos sabiam; Turco jamais faltava com a palavra nas suas promessas
III – O PRÓSPERO MUNDO DOS NEGÓCIOS –
Os negócios iam bem, muito bem. Garrinchinha ganhara a confiança do chefe. Eficiente, tornara-se o melhor pombo correio de Turco, e jamais voltava para o reduto com as mãos abanando ou tapeado ou alguém – E além do mais o garoto se acostumara com o gorro do “timão” e nem ligava pro sarro que a molecada tirava quando descia apressadamente pelas vielas.
-Ah, porquinho fajuto! – Gritavam para ele. Pedro parara e ameaçava correr ao encalço deles que saiam num desabalada correria pelas vielas miseráveis.
O Turco, reconhecendo sua eficiência passou a gratificá-lo melhor. Garrinchinha queria sempre mais: dera de cabular aulas para traficar à noite: O serviço rendia melhor, pois a polícia estava mais longe. Ainda mais que fora na noite que conhecera os caras mais maneiros e as putas mais sacanas, todos e sem exceção lhe ensinaram-lhe coisas. Porém ao retornar para casa sentia-se um estranho no ninho, pois a convivência com os pais se atritava ais que nunca. “Será que meu emprego me afasta deles? ’ – Geralmente se perguntava. E outra, se incomodava com as perguntas da mãe que sempre queria saber por onde esteve e com quem andou. Além do mais eles ainda não sabiam que o filho trabalhava para o Turco. Sobre o pai, o Manoel, parecia que o velho não se importava com ele e nem com a falta de proximidade – Do velho só sabia que voltava tão exausto do trabalho e que o muito que fazia era papear um pouco com a mãe, engolir rapidamente o arroz, feijão e o pedaço de lingüiça e dormir para se restabelecer para outro dia penoso. Com dona Glória não era diferente: diariamente, após atender dezenas de pés e mãos não tinha ânimo para nada que não fossem aquelas perguntas fora do alcance do pai, como se já soubesse que o garoto andava aprontando das suas Fora o fato sentava á mesa e jantava com marido para depois se ajeitarem cada qual no seu canto favorito da cama e dormirem. Com ele não, com ele era ao inverso, gostava das madrugas, pipocas e dos filmes das TVs e só tombava corpo após o último deles.
Contudo sua vida não era só o tráfico ou filmes, era família, mas sentia falta dela e duma boa convers, ms não das perguntas insistentes ou dos pais roncando cada qual eu seu lado da cama. Porém não havia família ou com quem dialogar, pensou em pedir conselhos pro Turco, mas deduziu que seria difícil tratar de emotividades com um chefão de tráfico. Lembra da primeira vez que fumou maconha, obvio oferecida por ele – “Traga e prenda no peito, vai gostar” – Ele dissera. E assim ele o fez, e a sensação de paz entorpeceu o seu corpo. Depois veio a vontade de rir, um riso que nunca foi comum em seu rosto. “Ei rapazinho, vá com calma!” – Foi o que o Turco lhe disse ao pedir naquela mesma noite um segundo cigarro. Porém o mal já estava feito e a partir desse momento passou a curtir o baseado regularmente, comum até encontrá-lo zanzando pelas vielas com um cigarrinho de maconha preso entre os lábios. Todavia o escancarado acesso às drogas o estimulava às experiências novas e com drogas mais pesadas – Primeiro optou pela cocaína – A sensação foi terrível; o coração disparava como bateria de escola de samba, para depois vir àquela sensação de euforia e dum poder absoluto. Porém o dinheiro não dava para sustentar essa droga, mesmo por um preço especial. Daí não houve outra saída a não ser viciar no crack, forma menos pura da cocaína e com um poder infinitamente maior de gerar dependência. O efeito do crack era mais rápido, instantâneo, pois a fumaça chegava ao cérebro com velocidade e potência extrema. Desde a primeira fumada sentiu um prazer intenso e efêmero, urgente de repetição. Aquele sim acabou se tornando o seu vício favorito e talvez gastasse mis com o crack que cocaína, visto a alarmante rapidez que se consumia a pedra.
-Menino, menino, você está se enterrando de cabeça, deixando a coisa ir longe! – Turco o alertava. Ele percebia a olhos nus o quanto o garoto estava se tornando dependente da droga – Geralmente o abastecia para depois admoestá-lo:
-Garrincha, malandro que é malandro não se droga, trafica!
Enfim, mesmo que desse ouvido agora já era tarde, e Garrinchinha não conseguia parar, afinal, seguira por um caminho sem volta, estrada de mão única sem direito a retorno.
Com o tempo os seus pais vieram, a saber, porém Pedro, alias Garrinchinha causava mais o sentimento da apreensão que propriamente da comiseração. Passaram-se quase três anos, e ele, agora com 20 se via transformado num homem frio e calculista. O garoto esperto cedera lugar para um indivíduo que crescera consideravelmente em músculos e envergadura. Quem o visse diria que aquela aparência cansada e de olheiras profundas se escondia um homem de mais de 30 anos. Convém salientar que a transformação no plano físico veio acompanhada pela quebra da fidelidade ao patrão, agora o chefe de um trapaceiro que lentamente se tornaria pedra no sapato. E isso porque Turco fora avisado por um dos policiais de sua lista de propinas que Pedro comprava drogas mais em conta de outro fornecedor, passando a traficar essa droga por conta própria - O Turco percebera algo estranho e começava desconfiar já que as pedras não vendidas retornavam para o cafôfo. Será que o garoto estará aprontando alguma? - Ele se perguntou – Ainda mais pelo carinho que nutria por Garrincha que por duas ocasiões retornou com as mãos abanando alegando que não recebera dos clientes. Na primeira, Turco aceitou sua alegação mesmo sabendo que poderia não ser totalmente verdadeira. Com a premonição aguçada, Turco ainda tentou alertar Garrincha que no mundo das drogas credibilidade e a lealdade são primordiais para o funcionamento dos negócios, e que permitir exceções poderia abalar a sua reputação diante da comunidade.
Porém a gota d’água foi o zum de que suas drogas estavam sendo batizadas e que não mais causavam o efeito de antes. Claro, Garrincha não contente de revender muamba de outro fornecedor dera de misturar substâncias á própria cocaína do Turco, aumentando o volume e embolsando diferença. Ainda alertado pelo policial corrupto e em conluio com um dos seus usuários fez o teste na muamba que Garrincha havia entregado. Com tudo em mãos Turco comprovou a adulteração. – Agora com a certeza de que estava sendo passado para trás passou a acompanhar os passos de Garrinchinha até descobrir que esse havia montado um pequeno laboratório num dos cômodos da casa de uma prostituta.
E eles o descobriram numa noite em que Pedro e a prostituta foram jantar numa churrascaria. Daí ficou fácil de entrar num quarto mal conservado de uma casa no centro velho da cidade. E era ali na casa da meretriz que ele rebatizava toda a droga que Turco lhe confiava, adicionando bicarbonato de sódio e talco inodoro, o que não modifica a sua textura e aparência.
IV – O MOCASSIM ITALIANO –
Não tardou e naquela mesma semana o seu Manoel e dona Glória caíram em si ao testemunharem a degradação física e moral do filho ao flagrarem-no consumindo cocaína dentro da própria casa. E o sentimento de culpa por tantos desencontros e distâncias os desesperou, e ele tudo fizeram, até levaram-no para uma igreja evangélica que frequentavam – Era obra de satanás – Diziam-se – Foi tudo em vão. Agora sabiam de tudo, mas viver ali e sob a tutela de Turco significava silenciar-se. E eles pretendiam sobreviver, pois permanecer na comunidade significava não quebrar regras, não ter olhos, não ter boca. E o pior; para os dedos- duros um terno de madeira –
Como era de se esperar, os boatos que Garrincha traía Turco começaram a espocar. Ora! Se muitos sabiam, era mais que certeza que Turco soubesse. Preocupados rogaram ao filho que abandonasse aquilo, afinal estava se metendo com assassinos. Nem precisariam alertá-lo – Pedro já o sabia, e melhor que seus pais – Porém, obcecado pelo dinheiro fácil e pelo raro e equipado Mustang 78 que acabara de adquirir, preferiu nem tomar conhecimento dos pressentimentos dos seus velhos. E sua impetuosa teimosia fez seus velhos aguardarem pelo pior. E o pior veio numa gélida madrugada de outubro - Pesadas batidas na porta sobressaltavam o sono do casal -
-Seu Manoel hoje é o dia do seu aniversário, certo? – Disse Turco ao ser atendido por este.
Seu Manoel, apreensivo e sonolento concordou.
Sob a precária claridade vinda do alto do poste Turco lhe fez a entrega de uma caixa embrulhada por um colorido papel presente. Os dizeres impressos no cartão pareciam de ser de um idioma que ele desconhecia.
-Por favor, abra seu Manoel! – Pediu-lhe gentilmente Turco.
Os dedos nervosos do seu Manoel abriram a caixa. Dentro descansava um reluzente par de sapatos importados.
Antes que pudesse compreender e empreender qualquer reação, Turco se antecipou:
-É um presente nosso para o senhor. Cuidamos bem dos nossos vizinhos!
O senhor Manoel o olhava surpreso. Turco continuou:
-Quanto ao seu filho, ele me pediu para dizer que partiu para uma longa viagem e não mais retornará. Apenas disse isso e também que os ama muito.
Após o comunicado e antes de despedir-se do casal solicitou à Dona Glória que fosse buscar as chaves e os documentos do Mustang.
Ao recebê-los meneou a cabeça em agradecimento e apressadamente seguiu pela viela, acompanhado de outros membros da quadrilha.
O casal se olhou angustiado. Arcados um sobre o outro se abraçaram emocionados ao lamentarem a triste sina do filho. Lágrimas pesadas escorriam por suas faces - Eles sabiam o que havia ocorrido. Trôpegos, agarrados um ao outro ao retornaram para a cama ainda quente. Exaustos, choraram até não haver mais lágrimas e nem o fato para se lamentar. Com os espíritos dilacerados adormeceram -
O dia logo amanheceu e antes dele o seu Manoel já estava de pé. Lá fora os tímidos raios de um sol ainda morno davam-lhe a certeza que ainda estava vivo. Esse mesmo sol que acabaria por arder nos seus braços de carregador de carroceria de caminhão, dura rotina na labuta que arranca nos suores do rosto ensopando camisetas. No apito do meio dia e para a sua fome haveria a marmita aquecida num equipamento de banho-maria.
Depois dum refrescante copo de água gelada o serviço voltaria exigir a sua presença e ele olharia para os móveis inertes sobre a caçamba do caminhão e compreenderia que aquele dia teria que ser tão normal quanto todos os outros da sua vida. Sabia que não haveria cerimônia fúnebre e nem as despedidas num velório com meia dúzia de gatos pingados. Lá não estaria o pastor José, a única amiga de Glória, e nem mesmo seus companheiros de suores. Anônimos, ele e a esposa continuariam chorando a perda do filho. De um filho que eles nem sabiam onde se encontrava, ou se no fundo de uma vala dum local ermo ouse carbonizado num porta-malas de um abandonado Corcel 73.
Como lembrança de um dia tão especial apenas a presença daqueles reluzentes sapatos, um puro par de mocassins italianos.
Certamente ele olharia para a razão de todos os seus devaneios assim como o olha agora, insensível.
Copirraiti19jan2013
Véio China©
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