Espantava-me ver aquele velho deglutindo a sua refeição. E o curioso ficava por conta de achá-lo tão familiar por detrás da imensidão daqueles seus óculos escuros.
Vendo-o devastar a refeição me era impossível deixá-lo de comparar a uma retro-escavadeira, tal a voracidade que ele socava goela abaixo aquele mundo de pepinos, tomates, abobrinhas, rabanetes e os outros pratos à base de vegetais.. Eu também entrara nesse lance. A minha vida de churrascarias tinha chegado ao fim, já que meus níveis de colesterol e ácido úrico instalaram-se quase assassinos. Portanto, querendo viver e sem outras alternativas tive que dar um lamentado adeus às picanhas, contrafilés e aos dentes fincados em macios alcatras.
Voltando ao restaurante, o fato é que ele comia e eu não conseguia desgrudar da sua exausta fisionomia. Parecia que ele tinha carregado o mundo por milhões de anos.
E algo que nem sabia o que poderia ser mantinha-me atrelado ao sujeito ao ponto de engasgar-me com uma garfada da abobrinha recheada para não perder qualquer dos seus movimentos. Com o passar do tempo as pessoas foram terminando suas refeições e abandonando o estabelecimento até que ficamos só ele e eu.
Dona Jussara, a dona do restaurante, impaciente, batucava a sua esferográfica Bic no tampo do balcão de mármore numa clara alusão de estarmos atrasando a faxina diária. Com alguma dificuldade levantei-me, paguei minha conta e ganhei de bônus um par de pirulito Juquinha. Pareceu-me contraproducente incentivarem os pirulitos para a dentição dos clientes, mas como isso não me dizia respeito nada comentei.
Saindo, joguei os pirulitos na primeira lata de lixo que avistei e me dirigi ao estacionamento.
Abria a porta do carro quando ouvi passos atrás de mim. Curiosamente um odor de vodka vagabunda embebedava o ar. Desconfiado virei-me rapidamente.
-Olá, mister Frugell! - A pessoa me cumprimentou numa voz grave.
Permaneci estático e ele se postou à minha frente. Era o velhote do restaurante.
Assim, retirou os seus óculos e então eu vi os olhos de uma coloração vermelha, forte, como brasas em combustão. Aquilo me aterrorizou tanto quanto ao pequeno par de chifres que começava a despontae na extensão frontal da sua cabeça.
Foi então que não restou qualquer dúvida: Era ele, o demo.
Eu tentava me posicionar diante da fatalidade do encontro, aparvalhado e nauseado o suficiente pelo cheiro de vodka que desprendia daquele ser.
Que diabos aquele satanás vegetariano queria de mim?
-Sim, pois não, o que deseja? – Perguntei-lhe tentando manter a respiração sob controle, apesar do peito arfar em demasia.
- Ah sim, desculpe! O senhor ainda não me conhece. Sou Horácio Miró de Casatanáz, com “z” – Apresentou-se. Apesar de perplexo tive vontade de gargalhar. Afinal, que diferença faria aquele “Z” na pronúncia do seu nome? Mas, como com o diabo não se brinca preferi manter-me lacrado –
-Estás pronto? – Perguntou-me enquanto inspecionava as unhas de suas mãos e depois escarrarrou no chão.
-Pronto? Pronto pra que? – Questionei atônito -
-Óras! Não tenho tempo a perder com perguntas imbecis! Mesmo que mereçam respostas idiotas eu não tenho esse tempo! - Vociferou impaciente.
-Calma, calma! - Eu tentei mantê-lo tranquilo.
– Vamos com teu carro ou com o meu? - Inquiriu-me com uma tonalidade autoritária, dessas graves e de quem acabara de abandonar das catacumbas de Tutancamon.
Diante da imposição eu tive que posicionar. Afinal, se fosse pra morrer, que morresse nas coisas que me fossem familiar.
-Vamos no meu! - Disse convicto.
Assim que entramos, perguntou-me:
-Estavam ótimas aquelas abobrinhas com carne de soja, não?
-Sim. Estupendas – Respondi secamente, insistindo – Mas, senhor Casatanáz, voltando a sua presença no restaurante. Por que decidiu ver-me pessoalmente?
-Bom... não deves saber, mas faço isso todo santo di...Opa, desculpe a blasfêmia! Faço isso todos os dias, centenas de milhares de vezes, todos os dias e num único tempo - Concluiu erguendo os braços e depois deixando-os cair, cansados – Continuou - Pra te ser sincero, não é exatamente uma visita – Comunicou-me num bocejo para depois espremer uma enorme espinha próxima do seu nariz –
Era exatamenteo o que eu temia. Claro, o momento fizera perceber que a minha hora chegara; ele viera me buscar. A Morte? Mas ele não era a morte. Sempre que vislumbrara a morte, abstrata e sem rosto, eu a imaginava lugar comum, vestes negras, capuz sombrio e uma tocha em chamas. Porém vê-lo ali, à minha procura era quase impossível associá-lo a ela.
Talvez fosse algum tipo de terceirização? Uma ato de fusão corporativa como no mundo negócios?
Estranho! Além disso, qual o significado, a amplitude de ter falado que estava em milhões de locais ao mesmo tempo? Seria ele outra divindidade e de tantos mistérios como o seu oponente poderoso? - Eu devia estar delirando! Afinal, tudo o que me fora ensinado sobre Deus e o Diabo é que eles representavam o Bem e o Mal. Claro! Porém esqueceram-se que no meio de tudo ficávamos nós, pobres mortais, carregados de culpas e de tolos complexos.
-Vai me matar numa colisão? Batida frontal? Vai ser assim o meu fim? Vai levar outros tantos? – Confuso eu tentei pressioná-lo. Eu tinha o direito de saber a forma que ia morrer. Ou pelo menos achei que tinha.
-Não! Não há necessidade de tanta dramaticidade toda. Procuro evitar tragédias que mobilizem a opinião pública, quando possível – Respondeu-me simpaticamente dessa vez. O odor de vodka cada vez mais acentuado repugnáva-me. Repentinamente ele abriu o porta-luvas e retirou o porta CD e ficou repassando os pequenos discos, um a um.
-Gostei disso meu bom meu rapaz! Gosto de conviver com gente de estilo! – Exclamou demonstrando enorme satisfação ao ver meus Cds de rock- Estilo? Aquele cara só poderia ser doido! Qual a relação que poderia haver entre Cds progressivo e o estilo?
-Legais esse caras! - Exclamou ao se ater no "Quadrophênia" do Who.
-Você conhece esses caras? - Questionei-o perplexo
-Meu filho, você ficaria surpreso se eu lhe contasse tudo o que conheço. Inclusive esse aqui e alguns que faziam parte das grandes bandas estão comigo há um bom tempo. Fatalmente ele se referia a Keith Moon, Bonham, Entwistle, Wright, Mercury - Uh! Ainda fazem um barulho dos diabos ! - Disse com um sorriso malígno impregnado no rosto.
-Cê ta falando sério? – Perguntei surpreso.
-Claro! Por lá temos festas memoráveis! Mulheres das melhores estirpes, gostosas, sensuais, devassas. Temos farta distribuição de Ecstasy, haxixe, alucinógenos dos mais variados, além de muita cerva gelada que é pra aguentar aquele calor infernal! – Culminou com um olhar demente enquanto enfiava o injetava o disco do Who no Cd player, no centro do console.
A sua descrição me deixara estupefato! Que raios de inferno seria aquele?
-Bem..se o inferno é assim, como será o Paraíso? – Questionei. Me pareceu uma pergunta lógica.
-Não fale isso! jamais! Essa palavra me deixa com os pêlos ouriçados só de ouvi-la! – Vociferou exasperado. Depois um pouco mais calmo, continuou:
-Uma vez eu infiltrei agentes por lá.
-É? E o que deu? – A história parecia interessante.
-Sim! Mas eles foram descobertos. Eles não aguentaram aquela barra toda, as festas diárias, os salões imensos, alvos, floridos, orquestras, pianos, violinos. Enjoados das exaustivas reproduções das peças de Beethoven, Tchaiskowski, Strauss, Vivaldi, Verdi, Chopin, Wagner. Exasperados com os cantos líricos de Maria Callas e as óperas de Pavarotti.- Disse-me entendiado. Depois terminou; - Segundo eles o que havia de mais moderninho por lá eram Michael Jackson e Elvis Presley – Finalizou num suspiro ainda mais entediado.
-Mas, mas, mas, Elvis não morreu! - Exclamei numa alusão ao conceito mundial de que "Elvis jamais morre". Claro, uma tentativa aliviar a minha barra. Que mal faria em imaginar que toda aquela situação não passasse de uma de brincadeira de mau gosto?
- Morreu sim! De apnéa! - Respondeu mau humorado. Pelo jeito não deve ter gostado da brincadeira. Depois continuou:
-Agora...sobre Jackson, a verdade é que a imprensa sempre fantasiou aquele caso sobre as crianças. Ele apenas gostava de ter uma boa noite de sono na companhia delas.
Bem, eu não estava completamente de acordo com todas as suas conclusões, principalmente sobre a questão do Elvis e todos aqueles imortais. Contudo achei que não era uma boa hora para contestá-lo, afinal sempre foi sabido que Satanás é esquerda, contestador, provocante e sedutor. E como tal tem um excepcional poder de perssuação.
-Escute esse som animal! – Exclamou aos primeiro acordes de “Doctor Jimmy", acompanhando o rítimo batendo fortemente os pés no piso do carro
Diante daquilo tudo eu me perguntava se não estava sonhando ou tendo pesadêlos. Tudo me parecia tão insano. Talvez aquele demônio vegetariano e cheirado à vodka fosse meramente fruto de minha imaginação. Ainda mais um daqueles que era chegado nos dinossauros do rock. Não! aquilo era Impossível!
-Sr. Frugell, chegou a tua hora! – Ele me resgatou dos devaneios e gargalhou sarcasticamente ao girar o volante até fazê- voar através das grades protetoras da Ponte Eusébio Matoso. Já em pleno vôo uma sensação de um frio glacial me arrepiou os cabelos saco. Nós despencávamos por mais de 20 metros com direção às profundezas do lamacento do Rio Pinheiros.
Eu senti a violência do impacto ao penetrar embicado para dentro das águas.
Foi lá que o transe terminou. Eram exatamente três e quarenta da madrugada quando houve algum sentido para mim.. Olhei para o lado e não havia ninguem. Volteando a cabeça, o pescoço dolorido, inspecionei o veículo e no piso dei por alguns comprimidos espalhados; eram alucinógenos, aqueles mesmos que eu ingerira em demasia e mistura à vódka. Agora era fácil perceber que algumas coisas não existiram ali, aliás, existiram, mas somente dentro de mim. Olhei para o meu peito e para a camiseta alva empapada de sangue; Na queda o volante explodira no meu peito causando-me um ferimento profundo. O rosto e a cabeça também se feriraram e os braços permaneciam completamente dormentes. Continuei olhando em volta e tudo começava a ganhar uma coloração negra e opaca. Ainda tentava, dessesperado, abrir portas e os vidros, mas o mecanismo dos vidros e das portas não responderam e com braços anestesiados eu não conseguia destravá-los.
As águas pardacentas numa inequívoca demonstração de poder penetravam rapidamente pelos vãos do sistema de freio fazendo-me curvar ante o seu insaciável desejo de me levar da vida.
Talvez houvesse um pouco mais de 5 minutos para mim. Talvez não houvesse nem esse tempo e eu me afogasse. Malditos e inexoráveis 5 minutos eram tudo o que me restara, o acerto final de minhas contas com a vida, tempo insuficiente até para confessar meus pecados.
Inexplicavelmente o CD continuava tocando e o lendário Who ainda retumbava nos autofalantes como nos bons e velhos tempos. Rebeldia, vísceras e muito rock sempre fora o lema deles.
“Doctor Jimmy e Mister Jim/ Trata-se de mim? / Por um momento/. As estrelas estão caindo/O calor está aumentando/ O passado está chamando” - Dizia parte da canção na qual Daltrey gemia as tristezas de quem ceifou de ilusões.
Conformados, breu absoluto, eu e o demônio que habitava dentro de mim apenas ouvíamos e aguardávamos.
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