quarta-feira, 24 de junho de 2009
O Sindicato dos Mendigos
- E aí companheiro, como foi a féria de hoje?
-Xi..uma porcaria, 15 mangos no máximo.
-E a minha então? Hoje em dia os caras não estão nem aí pras nossas necessidades básicas!
-Iés mai best head! Nunca estão aí com a gente -
-Parceiro, a situação não pode continuar do jeito que está. Mais um mês e vamos quebrar – Concluiu o primeiro, afrouxando os ombros em desânimo.
Esses eram os inseparáveis Dallas e Betoven que, juntos há quase 20 anos faziam parte da história e do folclore local. Amigos fiéis reconheciam-se de olhos fechados, como de olhos cerrados identificariam quaisquer umas daquelas íngremes vielas percorridas de forma fatigante. Pedintes e sabedores que jamais sobreviveriam das esmolas nunca recusaram qualquer trabalho que surgisse, mesmo que carregando as pesadas sacolas de supermercados para madames e a custo duns poucos trocados.
Em fases que a falta de oportunidades desafiavam suas sobrevivências era comum vê-los aparando os jardins das casas mais imponentes, ou efetuando pequenos reparos em portões de madeira, cercas de arame farpado e até chuveiros elétricos. Figuras populares, os apelidos caiam-lhes na medida: Dallas, por jamais separar-se de um encardido e amassado chapéu de cowboy, além de sempre ter nos lábios alguma frase cuja pronúncia vagamente lembrava o inglês. Betoven, assim no bom português sustentava o cognome não por o terem pelo imortal predecessor pianista, mas pelo simples fato da sua cabeça descomunal dar a impressão de ser soldada ao corpo obeso e atarracado por um desses maçaricos de fundição.
Com efeitos, a observação do companheiro deixara Dallas reflexivo. Há bom tempo ele fazia não notar a velhice que agora chegara, denunciada no reflexo no espelho que apontava para sua pele cada vez mais enrugada e os cabelos quase que amplamente esbranquiçados. Porém não Dallas não se movia na mesquinhez e também se preocupava pelos outros mendigos que como eles vagavam a esmo pelas calçadas de cimento cru. Sim, Betoven estava coberto de razão – Eles afundariam se algo não acontecesse ou se permanecessem de braços cruzados, deixando-se enterrar vivos – Dallas ruminava todos esses pensamentos quando embaralhado pelas cinzas das reflexões a idéia tanto amalucada surgiu:
- Ôu mai gódi! E se nós fundássemos um sindicato, Betoven?- Perguntou Dallas após uns bons minutos de reflexão
-Como assim? Um sindicato? – Questionou o surpreso amigo.
-Sim, um sindicato! Por que não? Precisamos de algo que nos alimente mais que as ilusões – Concluiu Dallas, abandonando de vez a introspecção que se metera.
Por sorte ninguém presenciara a sua insólita propost que, se ouvida levaria o pessoal supor que se tratasse dum quadro de humor para um programa de televisão. Porém não se tratava de um humorístico e nem de piadas sem graça. Todavia Dallas se expandia, dando formas ao objeto de sua alucinação:
-Pensando aqui na a sigla...Hummm...SIMESP, o Sindicato dos Mendigos de São Paulo – Disse com o braço direito estirado enquanto sua mão acariciava suavemente o ar ao ir de um lado para outro como se apresentando ao amigo a fachada do prédio sindical.
-Poxa, o nome é imponente! SI MES PE – Confirmou Betoven ao saboreá-lo em sílabas. Depois completou: Bem, poderíamos, além de promover a primeira assembléia geral na frente à Paróquia do Bom Menino Jesus, pedir ao padre que abençoasse o nosso movimento. O que acha?
-Iés mai béste head! Você está coberto de razão. Nessas horas sempre é sempre bom ter Deus a favor – Consentiu Dallas ao ajustar no corpo um desgastado sobretudo de lã que lhe fora dado pelo padre, fruto de uma das campanhas do agasalho promovidas pela paróquia.
Ainda pensavam sobre aquilo enquanto retornavam para dentro da casa algumas tralhas que estavam largadas junto à entrada. Bem, na verdade aquilo não era propriamente uma casa: era mais um tipo de depósito fechado com madeiras compensadas, pregadas a alguns rufos de sustentação. Ali, debaixo do viaduto onde moravam não havia esgoto e nem água encanada, mas apenas enormes garrafões de plásticos que eram abastecidos nas torneiras dos quintais dos vizinhos próximos. E não havendo água, os banhos quando lembrados se tomavam num minúsculo banheiro externo junto à moradia do vigário, na igreja. Banhos que para a comodidade dos pobres pedintes eram tomados em água quente, pois até o chuveiro elétrico o padre providenciara. Porém por vezes de nada adiantava o pequeno luxo já que o pároco vivia ralhando para que mantivessem seus corpos limpos e asseados. Jamais se constituiria exagero afirmar que o padre Zezinho, mais que um servidor de Deus, representava para eles a família que há muito deixaram de ter.
Bem, com as tralhas acomodadas no barraco e numa noite extremamente fria eles friccionavam as mãos ininterruptamente à procura de algum aquecimento enquanto névoas se expeliam de suas narinas. Mas também não era somente o frio, havia a fome quando Betovem propôs:
-Dallas, vamos la na paróquia filar a bóia? – Peguntou ao amigo ao vestir um esgarçado blusão numa cor de um laranja queimado, onde um Homem-Aranha se estampava nas costas.
-Ah, não mai frend! To de saco cheio da sopa do Padre Zezinho – Rejeitou Dallas –
Na verdade Dallas estava enfastiado do caldo de legumes grosso e insosso que distribuíam aos pobres da comunidade. Porém, ele pensava e parecia ter outros planos praquela noite:
-Que tal uma comida chinesa, Betoven? – Perguntou ao companheiro circulando lentamente o estômago com a mão direita.
-Hum...boa pedida, heim! – Entusiasmou-se Betoven - No Ping Lee ou no Tai Wuan?
Dallas após pensar por instantes, decidiu:
-Vamos ao Ping Lee. No Tai Wuan ultimamente andam demasiadamente miseráveis. Parece comida pra quem está de regime.
Definido por um dos chinêses saiu à passos largos acompanhado com dificuldades por Betoven: geralmente no inverno a sua perna esquerda se acometia de artrose reumática. Dallas percebendo que o companheiro ficara para trás folgou o passo até ser alcançado pelo amigo. Caminhando com mais lentidão foram surpreendidos por fortes relâmpagos que riscavam os céus denunciando que a chuva não tardaria. O vento rajou forte ao atravessarem um descampado terreno da Prefeitura, justamente onde um dia se erguera um bonito e florido parque, mas que hoje em completo abandono só servia para abrigar lixos, bugigangas como a carroceria de um detonado Fusca 62 que se encontrava por lá. Atravessando a praça seguiram por alguas ruas até darem ao Ping Lee. Pararam diante do restaurante e olhando através das imensas janelas de vidros da fachada e perceberam que a casa estava lotada. Ficaram zanzando na frente de uma delas quando foram interropidos.
-Psiuuu! Caiam fora! – Bronqueou o manobristas do restaurante incomodado com a presença dos mendigos.
Dallas olhou-o com altivez, porém estava acostumado. Ao saírem dali para ganhar a rua sem saída ao lado e que servia para entrega de mercadorias, assim como de entrada de serviço, Betoven até então silencioso apontou o dedo médio para o alto e o mostrou ao guardador de carros. Sim, era uma ofensa, mas o rapaz, atabalhoado com o acúmulo de serviço fez que que não percebeu. Entrando pela viela caminharam alguns metros até se verem defronte a escada que acessava o restaurante. Subindo os cinco degraus e bateram suas mãos na pesada porta de ferro sem que fossem atendidos. Insatisfeitos, estocaram-na com mais vigor até que foi aberta por um senhor vestido numa túnica grená de botões dourados. Todos se olharam, pois se conheciam muito bem.
-Dallas, Dallas! Chang aposta vinte Manaus que Dallas veio filar bóia de chinês, né? – Disse num tom de ironia. O senhor era Chang, o proprietário do Ping Lee.
-Claro que viemos seu Pequim! Eu e meu sócio somos parte de sua publicidade. É como se fossemos outdoors ambulantes divulgando o seu estabelecimento pela redondeza. – Respondeu Dallas como se estivesse justificando o pedido do jantar. O chinês o olhou com um ar malandro do tipo "que conversa mais fiada". Dallas sabia que deveria ser mais convincente com aquele chinês parada dura.
- Sabe Chang... Sempre que nos perguntam onde se degusta a melhor comida chinesa da cidade... – Dallas foi bruscamente interrompido pelo chinês:
-Chang sabe! Cês falam pra freguês que é no Ping Lee, não é? – Presunçoso completou o chinês
-Certíssimo Mister Pequim! Inclusive orientamos não irem ao Tai Wuan, um restaurante que não zela pela boa qualidade da comida, higiene, essas coisas assim - Disse Dallas num tom de enfado
-Ah é? - Surpreedeu-se o dono do Ping Lee.
-É sim! Sempre temos a máximo prazer em indicar o seu estabelecimento porque aqui, além da ótima comida o atendimento é espetcular. Coisa de primeiro mundo – Dallas mudou o tom e respondeu no bom e charmoso estilo de outrora.
O malandro tentava impressionar o Sr. Chang, enquanto o Betoven meneava positivamente a imensa cabeça em confirmação às colocações do parceiro
-Ta bom, ta bom... convenceram Chang! Chang já volta – Comunicou o chinês ao dar meia volta e desaparecer juntamente com um estranho gorro para o interior do restaurante.
Passados não mais de 10 minutos, Chang voltava equilibrando duas refeições, uma em cada palma da mão. Chamou-os:
-Bom, aqui está comida do cara de pau do Dallas, e do puxa-saco Betoven. Hoje esses dois malandros vão comer melhor comida de Chang – Disse-lhes num ar de soberba, narrando os seus dotes culinários.
Claro, podíamos perceber os brilhos nos olhos dos esfomeados. Betoven mordiscava e lambia os próprios lábios enquanto Dallas acariciava a barriga. Porém teriam que esperar mais alguns minutos, afinal Chang ainda não terminara a apresentação dos seus pratos.
-Vejam, aqui temos aqui um maravilhoso arroz branco. Ao lado do ótimo arroz um encorpado yaksoba feito com pimentões de Mogi Mirim. Percebam agora esses dois camarões rosa empanados em farinha de rosca de Minas Gerais. Para completara bóia desses dois miseráveis essa suculenta e apetitosa porção de frango xadrez. Nunca falaria para ninguém que o segredo do espetacular frango de Chang é uma finíssima erva aromática de Caruaru– O chinês narrava pomposamente identificando cada item do cardápio.
Tudo seria ao nível da narrativa se não fosse a simplicidade dos pratos já desgastados e dos talheres plásticos que acompanhavam. Evidente, Dallas e Betoven não eram clientes preferenciais, desses que pagam suas próprias refeições. Assim que o chinês proferiu a última frase apenas um dos malandros se deu ao trabalho de inspecionar se cada uma das iguarias relatadas estava por lá. – Conferidas, estavam todas lá – Porém, Dallas de bobo nada tinha e um tanto observador por ter sido um exímio freqüentador de ótimos restaurantes notou que a comida servida pelo Sr. Chang nada mais era que as sobras das refeições dos seus clientes. Fato notório inclusive porque remexendo sua porção de arroz lá estavam misturados pequenos pedaços de tilápia à doré e de lombo frito.
Antes de Chang dar-lhes as costas e recomendar que tomassem cuidado com os pratos e que se desfizessem dos talheres plásticos ainda ouviu uma última solicitação de Betoven:
-Seu Tókio, não dá pra liberar uma cervejinha?
Chang nada respondeu afinal o pobre mendigo nem sabia onde ficava o Japão. Assim apenas virou as costas e sorriu sem que vissem. Um pouco adiante o chinês entrou porta de serviço e não mais voltou - Definitivamente aqueles dois eram os clientes mais sacanas que o dono dum restaurante chinês poderia desejar –
Assim que se viram sozinhos desceram os degraus da escada e sentaram no primeiro degrau.
-Dallas, esse nosso Sindicato será dos bons? – Perguntou Betoven enfiando abruptamente o garfo à boca onde se notava a misturas de parte de arroz, frango e macarrão.
-Claro Betoven! O Sindicato será o melhor deles! – Rpondeu servindo-se de um pedaço do camarão empanado, atacado na primeira garfada – E, olhando para frente e para o alto como se novamente vislumbrasse o edifício sindical, devaneou:
-O SEMESP terá a sede com seis andares. Lá no último andar estarão às salas da diretoria. Numa delas você cuidará da parte burocrática, das assembléias, assistência médica, e principalmente da manutenção da nossa sede de campo.
Na outra cuidarei das questões relacionadas à parte jurídica e dos direitos dos nossos associados. Sentarei á mesa de negociação e intermediarei junto com os representantes dos ricos sindicatos patronais os novos pisos salariais e a diminuição das contribuições sindicais. – Dallas sonhava não para si próprio, mas também para Betoven. Ele gostava das reações do amigo, daqueles seus olhos que brilharam ao vê-lo tratar dos seus tantos temas com afinco e entusiasmo. E assim continuou:
-Para os garotos dos semáforos e lavadores de pára-brisa talvez possamos estudar algo junto ao sindicato das montadoras de veículos, final, os carros são deles. Para os guardadores de carros quem sabe consigamos algo interessante com o sindicato das tecelagens; acho bacana qando colocam aqueles coletes sinalizadores. Porém teremos que propor para a categoria que deixe de roubar os toca CDS dos cientes. Agora, a classe que quero dedicar maior atenção é a dos mendigos – Dallas delirava para a felicidade de Betoven–
-Principalmente os da 3ª idade. Pra esses vamos lutar pra que nunca falte o prato comida e o remédio da pressão. Quem sabe possamos firmar algum tipo de convênio com o governo. Poderíamos propor ao pessoal da Receita Federal a isenção de parte dos impostos das indústrias desde que ajudassem a manter as casas de repouso. – Depois concluiu:
-Talvez Betoven, talvez hoje estejamos vislumbrando o projeto que ocasionará a maior revolução social já vista nesse país! - Exclamou com um estranho brilho no olhar.
O fato engraçado ficava por conta de Dallas se entusiasmar a tal ponto que repentinamente parecia acreditar no fato mais que o próprio parceiro, e se mantinha tão compenetrado na oratória que simplesmente se esquecera da comida - Até o frango xadrez parecia surpreso com a retórica–
E Dallas prosseguiu. Simplesmente ele se tornara uma máquina de calcular ao prever aposentadorias, reajustes, proporções de tempo de serviço, limites de idade, planos de assistência à saúde, incluindo-se neles as próteses dentárias e pontes de safena. Dallas falava da Previdência e o que poderia ser subsidiado pela União. E Dallas exprimia principalmente o projeto mor: a digna aposentadoria para todos velhos que, maltrapilhos ou não se tornarem mendigos.
Sim, Dallas sempre fora um sujeito extremamente arguto apesar de nunca ter cursado faculdade. A princípio um corretor da Bolsa, posteriormente sócio duma Corretora de Valores, a convite de um amigo que respondia pelo capital. Sim, e Dallas era habilíssimo nas negociações, e dono de um convencimento fácil tornou-se um sujeito de sucesso aos 30 e empobreceu aos 38, destroçado pela trama do mesmo sócio. Diante do rombo ardilosamente arquitetado pelo inescrupuloso sócio se viu desmoralizado perante o mercado de capitais. E assim com a sua corda puxada foi expelido para o esgoto como se fosse um fétido dejeto qualquer – Depois disso nunca mais conseguiu um emprego que valesse a pena, afinal era um sujeito marcado. E não foi apenas isso; Com o fato veio o abandono da mulher que amava, a bebida, a dependência alcoólica, e um longo internamento num manicômio, pois o supunham louco. A grande verdade sempre foi a que Dallas jamais conseguiu se reerguer -
Betoven, infinitamente limitado parou seus estudo à epoca no terceiro ano ginasial. Porém não havia prazer maior que ouvie com atenção a contagiante oratória do amigo. E Dallasfalava e ele, apenas embevecido não consegiu se conter:
-Dallas, você deveria ser o ministro da justiça! – Exclamou para o companheiro que naquele momento não mais se dava conta da sua existência
Dallas, fora de si persistia no discorrer os ideais de um louco. Sonhos, tão somente sonhos que eram blasfemados por seus lábios, frases na boca de um fracassado à procura de alguma redenção. Dallas era o delírio, era as fantasias que jamais se tornam realidade. Sim, Dallas sabia das utopias de uma nação longe de desgraças, misérias e tragédias. Porém Dallas era apenas delírios que se viam reféns duma serpente desumana que, enrolada à falta de senso esmagava gente miserável e desvalida. Dallas era isso, quimeras que se permitia sonhar, bastava apenas fechar os olhos e as visões estavam la, uma a uma.
E o extraordinário Dallas deixava-se perder em fantasias enquanto os restos reutilizados da boa comida de Chang esfriavam na solidão num daqueles ordinários pratos desgastados.
Copirraiti24Jun2009
Véio China©
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Um comentário:
Muito bom, Véio. Uma abordagem humanitária e divertida dos que vivem à margem da sociedade.
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