segunda-feira, 15 de junho de 2009
O trem - Uma estória de amor -
Eu acabava de ler uma poesia no trem em que viajava. As frases escritas na porta do toalete davam conta de uma feitura em caneta esferográfica, linhas inclusive que jamais acabariam por abandonar minhas lembranças. Lembro-me de ter ficado impressionado já que se tratava de uma poesia que parecia pretender me cortar aos pedaços ou dilacerar aquilo que eu tinha por sentimentos. Impactado a transcrevi numa pequena agenda que trazia num dos bolsos do paletó. Talvez a repentina fixação pelo texto expusesse o inferno e as mazelas do pobre diabo que eu era. Aliás, um inferno que não me fora imposto - eu me impus - afinal, as coisas pareciam estar nos lugares errados e distantes donde gostaria que estivessem. Saindo do toalete rumei para uma direção oposta a que estava e segui pelo corredor estreito e mal iluminado. Talvez na oitava ou nona carreira de poltronas me deparei com uma moça descansando num dos solitários bancos da composição.
Encolhida rente à janela ela mantinha os olhos fechados e o pescoço envolto por um grosso e lilás cachecol de lã, afinal um frio cortante fustigava a sutileza de nossas almas num inverno vigoroso que há muito não se sentia – Ela ainda não se tinha dado conta da minha presença, e a sua solidão me lembrava a nostalgia dos filmes em P & B de Humprey Bogart e Lauren Bacall e os seus amores conturbados. De certa forma achei tão bela a cena que me mantive fixado nela por alguns instantes como se admirando uma obra de arte. Porém o seu ressonar foi bruscamente interrompido pelo destempero da minha perna estabanada que ao mudar o passo chocou-se contra o banco. Desperta e assustada olhou-me como quem pedisse para ser poupada de um mal maior.
Seu olhar, além de aflito me parecia-me triste, desses que abrem mão de alguma esperança –
-Perdão senhorita – Desculpei-me sem graça.
Ela continuou me olhando sem nada dizer. Educadamente perguntei se poderia sentar-me do seu lado. Sem responder, ela apenas ajustou o corpo ao banco e meneou a cabeça num consentimento. Ajeitei minha bagagem ao maleiro e me sentei à poltrona onde um suave odor dum perfume adocicado desprendia da de mulher. Enquanto me ajeitava, de soslaio percebi que insistia o olhar em mim. Repentinamente virei e penetrei os meus olhos em suas pupilas. Constrangida ela desviou o olhar e fitou o chão sob seus pés – Talvez se sentisse perturbada tanto quanto eu – supus-
- A senhorita está indo para onde? – Perguntei a fim de quebrar o silêncio desconfortante.
Ela apenas me fitou embaraçada e com o indicador apontando na direção dos lábios fez um sinal, para logo após sinalizar a negação. Continuei sem compreender a exatidão dos seus gestos até que se levantando e vasculhou por algo na valise acomodada na sua parte do bagageiro acima do banco. Parecendo encontrar o que procurava sentou-se e então foi que percebi o caderno e uma caneta em suas mãos. Delicadamente ela abriu o volume espiral e escreveu algo no seu interior. Depois me mostrou a folha como se pedindo para que eu lesse Apesar de suas bonitas e diminutas letras a parca luminosidade do corredor criava-me alguma dificuldade. Ajustando o foco da visão consegui ler suas frases.
“Muito prazer! Meu nome é Ana Laura. Desculpe-me não responder. Sou deficiente e não falo - E continuou– Estou indo para Nova Esperança, para casa de alguns parentes à procura de uma vida nova e melhor. E o senhor para aonde vai?” -
Assim que li procurei por seus olhos e eles continuavam a me fitar. Dessa vez sorria, gentilmente. Eu fiz gestos como se pedisse o caderno para que pudesse responder ao que ela negou. Novamente escreveu algo e o devolveu para mim.
“Se o senhor falar calmamente poderei ler seus lábios. Sou boa nisso!” – Olhei para ela e sorri. Alguma coisa naquela mulher dos seus 28 ou 29 anos me incomodava.
Ana Laura se manteve atenta aos meus lábios e expressões quando respondi estava indo para um lagar mais além do seu. Expliquei que igual a ela eu estava indo para um novo emprego e uma vida melhor, algo que não me concederam até então. Ela permaneceu sorrindo até estacionar em algum ponto sombrio de sua vida, o que fez sua expressão tornar-se séria. Depois virou o rosto na direção da janela e se manteve atenta à transparência do vidro – Eu podia sentir a sua melancolia ao retornar seu olhar para o caderno ao colo e começar a escrever pausadamente – Terminado, entregou-me para ler.
“Deixo São Paulo por não ter condições de permanecer na mesmo cidade do meu ex-noivo. Há muita mágoa em meu peito e não quero ser o motivo de chacota para as pessoas que souberam da sua traição com uma garota que talvez nem tenha completado a maioridade. Foram mais de nove anos de um relacionamento que julguei sólido e que, infelizmente terminou assim. Porém, mesmo com o acontecido ele não me deixa em paz”
Ao acabar de ler eu não sabia o que responder. Permaneci fixado nas letras bonitas e depois voltei o olhar para Ana Laura, saboreando a sua figura, atento às suas roupas e àquela delicada blusa azul que, apesar de modesta permanecia em perfeito alinho. Insistindo em sua estampa encontrei um lindo rosto e um par de fantásticos olhos negros. Novamente Laura sorriu sem se mostrar incomodada. Conforme fomos nos correspondendo já não constrangia o fato dela não poder interagir através da fala, aliás, não fazia a menor diferença. Ana Laura parecia ser sensível, e a delicadeza dos seus gestos denunciava a feminilidade acima de qualquer suspeita. Sim, claramente ali estava uma mulher que há muito eu não via.
Descontraídos e mais à vontade continuamos a corresponder pela madrugada afora – uma conversa agradável e insólita – Eu nunca me relacionara com uma mulher que se correspondia pela escrita – Li as suas tantas anotações quando surgiu a parte mais dolorosa – A sua mudez – Ana Laura perdera as cordas vocais aos 11 anos, e numa infecção que não cedeu aos antibióticos e aos poucos recursos da sua família. Inclusive a infecção disseminou por alguns órgãos e quase lhe retirou a vida. Incansável, Laura escrevia folhas inteiras. Relatou fatos curiosos e engraçados que me fizeram rir – E era tão gostoso ver sua expressão sorridente a cada comentário que eu fazia. Óbvio, isso me instigava. E conforme escrevia eu me fixava em seus olhos e eles, escuros e expressivos pareciam ter a própria voz- Era como se Laura pudesse escrever e decifrar a minha alma apenas com a força do olhar.
Passavam das quatro da manhã quando os seus olhos me pareceram exaustos – O cansaço a derrotava – Lentamente e sem que quisesse ou se esforçasse o seu olhar foi se fechando lentamente, e pouco depois eu ouvia a suavidade da sua respiração nos instante que antecede ao sono. Cuidadosamente retirei a sua caneta do vão dos dedos e a voltei para o bagageiro juntamente com o caderno – Acordada pelo meu movimento apenas sorriu agradecida e cerrou os olhos - No chão e em cima da sua pequena valise repousava uma manta de lã numa tonalidade vermelha e negra – Sem denotar gestos que a retirasse do pré-sono, cuidadosamente peguei a manta e a cobri do pescoço até aos calcanhares – Talvez ao sentir a maciez das fibras, infantilmente se aninhou para dentro dela comprimindo o corpo na intenção de aquecer-se o mais rapidamente.
Aquecida, delicadamente inclinou a cabeça para o onde eu estava e a abandonou em meu ombro, num repouso. Por Deus! Que sensação prazerosa o seu ato me ofertou, ainda mais porque o perfume parecia desprender dos seus cabelos acastanhados. Suavemente encostei a minha face em sua cabeça enquanto trem tenazmente perseguia seu destino. Ah, que sensação maravilhosa e reconfortante estar ali e ao seu lado. Sutilmente reclinei o meu banco e meneando discretamente os ombros fiz seu rosto deslizar para o meu peito. Mesmo sonolenta Ana Laura percebeu e se aconchegou nele. Eu senti a sua respiração descompassada ao seu toque do dedo que penetrou um dos vãos da minha camisa, acariciando-me.
Em seguida e com a respiração mais acelerada desabotoou três dos meus botões, penetrando a sua mão num ato repleto de sensualidade e carinho.
O trem persistia varando a imensidão da madrugada, deixando para trás campos, vales e planícies e um cheiro de mato e flores. O incessante ranger das rodas sobre os trilhos preenchia com sons os meus ouvidos como se fosse sangue bombeado e levado até ao coração. Eu não me compreendia.
O que poderia estar se passando com o sujeito que jamais demonstrava afeição ou sentimentos por quem quer que fosse? - Eu não sabia - Apenas me sentia perplexo ante àquela onda de “não sei o que” me invadindo num ato de carinho extremo ao roçar o rosto naqueles cabelos das mil fragrâncias. Apenas isso e simples assim. Ressalvadas as devidas proporções, Ana Laura me fazia sentir quase um ser medieval, uma especie de Dom Quixote de La Mancha, um bravo, um herói a duelar por sua donzela contra a magia de bruxos e feiticeiras e a força dos moinhos de ventos.
A mão de Laura permanecia aninhada em meu peito quando cuidadosamente procurei no bolso do paletó e dele retirei a pequena agenda onde escrevera a poesia do toalete. Centrei o pequeno caderno diante dos olhos para melhor poder ler.
Sou eu
Que te ouço
Açoitar a alma
Sou eu
As chibatadas
Destes devaneios
Sou eu
A lúdica sanidade
Das tuas novas verdades
Sou tudo o que te restou
Alguém por quem, saberás
Valerá a pena viver
Sussurrei o poema ao seu ouvido. Laura, acordada por meu murmúrio e com a sensibilidade à flor da pele, num misto entre o sonho e a realidade irrompeu num discreto soluço. O sensível lamento não foi capaz de debelar um cristalino par de lágrimas que desceu por suas faces, deslizou até queixo, desaguando nas cores da manta xadrez. Comovida, a suavidade dos seus dedos comprimia-me o peito com maior vigor e carinho. Porém, e como era de se esperar, decorridos alguns minutos, exausta, os dedos afrouxaram e se ampararam no tecido entre o vão dos botões. Um ou dois minutos o inevitável – Ana Laura adormeceu pesadamente – Uma feição serena e feliz emoldurava aquele rosto de doçura indescritível, enquanto eu, como um cão fiel, permaneci ali zelando o descanso do dono.
Jesus! Havia magia no ar, e eu era como um menino saboreando o perfume dos cabelos da primeira namorada, rogando à divindade que não nos abandonasse numa hora daquela. A maior das minhas verdades sempre fora aquela que a intransigência jamais me permitiu aceitar; Eu jamais me curvara ao amor. Olhando na direção da janela e a transparência do vidro nada me ofertava, salvo a negritude e um cheiro de natureza. Um novo dia estava a caminho e sol brilharia forte e dissiparia as sonolentas gotículas de orvalhos que ingenuamente amanheceram impregnadas nelas.
E com os raios de sol o mundo se agitaria e se inundaria de seres latejando vida por todos os poros, sujeitos nervosos, calmos, com amores para serem resolvidos, uniões, separações, lágrimas e risos. Muitos de nós aguardaríamos apenas a oportunidade desumana ato de sobrevivermos somente a mais um dia, apenas um dia.
E eu queria ser essa pessoa, necessitava do amanhecer. Queria ter a oportunidade de abrir as janelas e impor o rosto para fora deixar o vento me açoitar e respirar o mais puro ar dos eucaliptais. Sim, não desconhecia que o insensível e frenético trem perseguiria o destino, interrompido apenas por breves paradas. Sabia que nessas vezes um silvo seria um claro sinal para que novas e velhas esperanças se estampassem nos rostos das pessoas. Pessoas que se chegando ao destino se desfariam de sua viagem enquanto outras ganhariam os degraus metálicos e tomariam os assentos deixados por aquelas.
Nada fora tão simples como agora parecia ser, e tudo se traduzia na crença do vencer ou deixar-se tombar qual um peixe na beira de barranco, anzol na boca e um canivete atolado nas tripas. Tudo era apenas uma questão de escolha.
A madrugada rapidamente cedia o espaço para o dia, e ele vinha a passos largos, avassalador, e sabia que outra vez me desafiaria. E era essa a minha a chance e eu tinha que aproveitar e cravar as garras como a dum gavião que mata para sobreviver. Era a minha chance, talvez a derradeira, e era esse o meu momento, pois sem que o dia percebesse estava me concedendo os segredos revelados na madrugada. Sim, uma vantagem e tanto e mais que nunca eu necessitava surpreender este desafio, já que me cansara de ser abatido como a vítima da ave de rapina que nem soube por que morreu. Não, agora era a minha vez, sem surpresas, sem ardis, sem enganos, a minha vez de apenas viver e tentar ser feliz e esperar que o futuro se mantivesse receptivo às tantas mudanças, fossem quais fossem.
“Sou eu o cara por quem valerá a pena ter vivido” Segredei novamente no ouvido de Ana Laura. Talvez o sussurro tenha ocasionado algum incômodo e ela se remexeu, abriu e fechou os olhos e depois voltou a dormir com um sorriso impregnado nos lábios. Por fração de segundos permaneci extasiado diante do incômodo que me permitiu descansar o olhar naquele sorriso e nos olhos maravilhosamente negros.
Eu apenas sorri para tudo– Eles eram mágicos -
Copirraiti15Jun2009
Véio China©
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