quinta-feira, 24 de maio de 2007

A última canção de uma "crooner"


Era um serviço filha da puta que quase me esfolava vivo e praticamente nada deixava para ninguém. Nessa época de raros empregos, eu me sujeitara a um serviço de amassador de papelão e foi o melhor que pudera encontrar ao ler os classficados. E circundando com a caneta o anúncio que oferecia a vaga de "compactador de celulose" eu me perguntava que merda poderia ser aquela. E era nisso que eu pensava a caminho da entrevista, já que as coisas estavam difíceis e eu não queria passar fome e nem ser despejado do quarto onde morava. E assim lá estava eu naquele serviço de 10 horas diárias, com 60 minutos de intervalo para o almoço e onde eu pegava às 8 da manhã e largava as 6 da tarde. Nos faz bem acreditar que a sorte não nos abandona e assim eu fora o grande "sortudo", o bam bam bam entre os mais de 30 candidatos que apareceram pra preencher a vaga daquele serviço. Eu eu imaginava que fora o escolhido por me mostrar profundamente desinteressado por aquilo tudo e, isso, de alguma forma, deve tê-los impressionado. E ainda mais por se levar em consideração que em alguns serviços, eles não se ligam em gente que possa parecer esperta demais, falante demais e então escolhem alguém que julgam ser mais fácil de manobrar. E foi assim que virei um amassador de papelões. Nesse setor, estávamos em 10 funcionários e ficávamos socando com os pés centenas de quilos de papelão e ao cabo disso revisávamos e amarrávamos os fardos que deveriam pesar exatamente 100 quilos cada. No fim do dia, nossas pernas e pés estavam dormentes e praticamente não sentíamos mais nada ao pisarmos naquele mundo de papelões. E cada vez que achávamos que não havia mais nada a ser pisado lá vinham eles e despejavam novas montanhas. Chegadas, desamarrávamos os fardos e procedíamos à vistoria em cada uma de suas folhas e retirávamos as partes que estavam com problemas, como manchas de óleo, ou o apodrecimento pela umidade e novamente fazíamos do peso dos nossos corpos e dos nossos pulos os agentes necessários para compactá-los, amarrá-los e pesá-los para serem reencaminhados à fábrica de celulose.
Às 6 da tarde, pontualmente, tocava a sirene que nos avisava que mais um dia de escravidão chegara ao fim e nós, os caras das pernas fodidas, rumávamos para o vestiário e nos livrávamos dos suados uniformes cinza-escuro. E, embaixo do chuveiro é que o corpo voltava à realidade e ao contato do jato de água as pernas reviviam e então vinha a dor que se iniciava logo abaixo da linha da cintura e se estendia até os dedos dos pés. E assim eram os nossos dias e, de interessante mesmo, só a voluptosa secretária do sr. Carlos. Janice era o nome. Uma garota de uns 25 anos, loira, linda e dona de um rabo sensacional e que adorava cruzar as pernas e nos deixar ver a forma perfeita na textura da sua pele rósea e suave. Ela sabia que nos excitava e parecia se divertir com isso e eu não sabia dizer o motivo mas tudo indicava que ela ia com a minha cara e era comum fragrá-la me observando na fila do relógio de ponto ou nos dias de pagamento. E, mesmo, achando que ela me dava uma certa bola nunca fomos além dos sorrisos que davamos toda vez que nossos caminhos se cruzavam. Havia também o seu noivo e o terno de ombros quadrados que pontualmente as 6 da tarde estavam por lá, acompanhados do seu sorriso falso e do Monza 86. Eu não podia me definir como um homem bonito e não o era. E, talvez, os lábios grossos, os olhos escuros e as pernas fortes e musculosas fossem os meus melhores e mais interessantes predicados. E assim, saindo da firma, lá ia eu para o ponto de ônibus e não foram poucas às vezes que dentro dele, amarrotado, acabei me excitando ao encostar no rabo daquelas meninas gostosas. Não que o fizesse deliberadamente e por sacanagem, mas era gente demais te espremendo que por vezes se tornava inevitável o contato, principalmente naquele horário, já que o ônibus ficava abarrotado por garotas que trabalhavam numa fábrica de confecções, próxima ao meu serviço. Ao descer, caminhava umas 7 quadras até em minha casa, se é que poderia ser chamado de casa um cômodo de quarto-cozinha, imundo, localizado numa fétida viela no bairro do Braz. Chegando, ainda com as pernas latejando, eu pouco tinha a fazer se não fosse beber a minha vodca barata, matar o tempo e esperar a Rita. E ela, ao chegar em casa, onvariavelmente me pegava meio alto e então as brigas começavam:
-Mas que merda! todo dia tem que ser assim? ela vociferava e ao qual eu contra atacava:
-Você pensa que eu não sei? Imaginava que eu não sei que você fica se esfregando naqueles “engomadinhos” pervertidos?-
Eu era mais contundente e então gritava e gesticulava mais puro exibicionismo de um ciúmes doentio. E aquelas brigas eram constantes o que tornava insuportável a nossa convivência, afinal, ela, cedera à minha obstinada persuação e abandonara o seu trabalho de crooner e arrumara um serviço durante o dia num dos salões de dança em uma das ruas do centro da cidade. Na verdade, era uma casa de dança onde os homens compravam suas fichas e escolhiam a moça com a qual preferiam dançar.
-Ah mozinho! Deixa, vá? – E assim, também dui persuadido e ela aceitou o serviço já que o meu salário só cobria para o aluguel e algumas pequenas despesas de casa. E a Rita, vaidosa e bonita, gostava, vez ou outra de ter suas calcinhas e sutiãs novos. Após comvencido ela iniciou assim no Club Cartolas. Mas o pior estava por acontecer e com o passar dos meses, a situação ficava cada vez mais caótica e ela dera de chegar em casa cada vez mais tarde e aquilo me deixava puto da vida, apesar dela alegar que os clientes eram tantos que a dona do clube passou a exigir que elas fizessem horas extras. A princípio eu aceitei a argumentação mas como todo dia era a mesma coisa comecei a desconfiar e, assim lá estava eu, distante algumas quadras de casa e saia do bar onde fora comprar cigarros, quando vi estacionar um Mustang vermelho e dentro estava uma pessoa que eu conhecia muito bem. O carro parou e eu atravessei a rua para que não me vissem e então o rapaz virou-se para a bela jovem e a beijou. O beijo foi apaixonado e a jovem correspondia bastante e o seu corpo se espremia ao encontro do jovem rico. Antes que terminassem as carícias e mandei dali e retornei pra casa.
Passaram-se uns 40 minutos e Rita chegou e me encontrou sentado no esburacado sofá.
-Oras! Não está bebendo hoje por que mozinho? E alegremente se dirigiu ao banheiro. Pouco depois eu ouvia o som da descarga e ela saia de lá mais radiante do que entrara. Olhando-a, percebí em seu pescoço um grosso cordão de ouro com uma medalha de São Judas Tadeu, seu santo de devoção. Ela percebera que eu notara.
Ah mozinho, olha que bonito o que eu ganhei da dona do clube! – E dito isso tentou me convencer que a proprietária do Cartolas havia lhe dado de presente como prêmio do seu esforço e por ser a garota mais requisitada para as sessões de dança. E seus olhos brilhavam ao comentar o fato e ali eu senti alguma coisa se quebrando em mim e quanto mais ela falava sobre o assunto mais me doia. E ela entusiasmada não parava e me contava o quanto era requisitada e que isso, provavelmente, se devia a sua facilidade em trabalhar com toda espécie de rítimos.E ela falava, falava e ao ver que nada respondia resolver se calar. Naquela noite fez o jantar e eu não senti fome e nem vontade de beber e ela estranhou o fato de eu estar calado:
-Que bicho te mordeu mozinho? – E eu só a olhava e ela demonstrava estar incomodada com a minha atitude. Nessa noite ela quis fazer amor comigo e, tentou de todas as formas me excitar, me estimular e nada aconteceu e então se deu por vencida e não mais insistiu. Esperei-a pegar no sono e então levei a sua bolsa para o banheiro e sentado na privada vasculhei o seu conteúdo. Bingo! Encontrara o que estava procurando e um pequeno estojo com a marca de uma joalheria surgiu numa de suas repartições e junto se encontrava um cartão –
“Para a minha adorável e sensual Rita como prova do meu amor”
Do seu, Roberto.

Rita acabava de acordar e o relógio marcava 7 horas da manhã e ficou surpresa ao me ver sentado no sofá
-Ué! Não foi trabalhar por que mozinho? E como eu nada respondia se dirigiu até mim para verificar o que estava acontecendo e então viu a sua bolsa aberta e um cartão na minha mão.
-Está certo Rita! Eu sabia que isso iria um dia acontecer, mais cedo ou mais tarde.- sabia que tinha me partido ao meio. Tentou ainda argumentar que o presente fora dado por um senhor que mantinha alguma esperança mas que, longe disso, não passava de um mero cliente e que ela não tinha qualquer intenção de corresponder com velhote. Eu achei por bem não lhe jogar na cara o que eu tinha visto na tarde anterior pois seria humilhante e constrangedor para ambos.
-Rita, estamos nos separando. Está tudo terminado- disse eu com ar enfadonho e procurando não demonstrar qualquer emoção. Ela tentou argumentar que eu estava me precipitando mas, eu estava irredutível que ao fim de uma hora de conversa chegamos à conclusão que seria melhor ela ir morar com uma colega de serviço. Saiu e voltou após 10 minutos e confirmou;
-Está tudo certo. liguei para Vera e ela tem um lugar disponível na casa dela e estou indo pra lá, agora.- E então eu a vi arrumar as suas roupas. Vi as roupas espalharem-se pela cama e ela enfiar as lindas calcinhas , as quais tanto gostava, dentro daquela mala de couro e aos poucos as suas roupas foram desaparecendo do guarda roupa. Por fim foi a banheiro e escutei o barulho de vidros se chocando. Esmaltes, imaginei. E tudo providenciado, não trocamos uma palavra sequer e os nossos olhares estavam tristes. É estranho como numa situação dessa nos sentimos impotentes e, mesmo, nesse caso, no inicio parece algo de irreal, que as coisas vão se esclarecer, que haverão explicações que nos façam entender e aceitar. Bem, isso é o que gostamos de acreditar mas com o passar das horas um sentimento filha da puta de ruim nos domina e então sacramentamos qualquer impossibilidade de aceitar qualquer outra definição que não seja separação. Antes de sair me perguntou se eu tinha um pouco de dinheiro, pois necessitaria para pagar o táxi. Eu tinha umas pequenas notas e lhe dei e fiquei com alguns trocados no bolso.
-Mozinho, eu sempre vou te amar. Nunca se esqueça disso!- e chorando, cantarolou uma canção de amor antes de entrar no veículo
E então ela partiu e duas lágrimas brotaram dos meus olhos e ecoava dentro de mim a última frase da sua canção - " O meu amor, é um amor sem fim" - E eu sentia agora, longe da sua presença, o quanto isso doia. Olhei para o céu e grandes nuvens cinzas anunciavam que tempo ficaria ruim e uma rajada de vento gélido me ardeu no rosto e então entrei em casa e fiquei pensando como poderia ser a minha vida a partir daquele ponto. E fiquei lá, pensando sem chegar a conclusão alguma e aquilo foi me sufocando e eu precisava sair daquele lugar. E eu sabia que havia um mundo real me esperando lá fora. Havia todo tipo de gente desesperada, andando que nem barata tonta, sem saber pra onde ou o que fazer. Sabia que havia gente feliz, orgulhosa dos seu gordos salários, das suas mulheres maquiadas, patéticas, desfilando carros novos em ruas esburacadas. Eu sabia que havia todo o jogo do poder e da esperança, do forte se sobrepondo ao fraco, do rico fodendo o pobre e tudo tão obvio e tão certeiro como o aluguel no fim do mês. E eu exalei o cheiro da umidade e a infalível certeza que teria que agüentar o tranco nessa merda toda. E, não suportando mais estar ali comigo e com esses pensamentos, sai e caminhei pelo estreito corredor que abrigava os cômodos do cortiço e discreto acenei para um dos moradores que entrava. Não havia mais nada a fazer e então me passou pela cabeça que deveria ir numa igreja e me sentar num de seus bancos e acreditar que alguém pudesse fazer alguma por mim. E eu estava tão desesperançado que não tinha certeza que houvesse algo mais a ser feito. E confuso deixei para trás o enferrujado portão e segui em frente e o mundo me pareceu sem a menor importância . Na sexta esquina atravessei o farol e do outro lado da rua me aguardava um desgraçado. Era visivelmente agressivo a parte dos membros que lhe faltava, profundamente deprimente ver aquele espectro de gente rastejando pelas calçadas, implorando por um pedaço de pão e por um pouco de dignidade. Parei e o olhei do alto da minha infelicidade e das poucas moedas que eu tinha lhe joguei algumas e então o seu rosto se ergueu e os olhos sofridos me sorriram numa espécie de agradecimento. E seguindo em frente a caminho da igreja eu pensei no ser grotesco, pensei em Deus, revivi em mim e aquilo me amargurou. Talvez Deus não estivesse no melhor de seus dias. Talvez ele estivesse de saco cheio de nossas lamúrias, nossas reivindicações e de sempre querermos ser os melhores, a qualquer preço e, então avaliei a possibilidade dêle me questionar:
- O que você quer para sejas feliz? A falta de um par de pernas?
E esse pensamento teve um efeito devastador em mim e, se eu nao era a craitura mais feliz, também não era o maior dos desgraçados. E lá, de onde eu estava, já avistava a cruz no alto da igreja e enão a situação me pareceu patética e ao atravessar a rua eu mudara de planos e então entrei num bar.
- Uma dose de vódca, por favor.
Fui servido e brindei a Rita e ao seu novo destino e, mesmo ainda que doesse, eu torcia por ela. Ao terminar, bati o copo no balcão e o som fez despertar o desinteressado senhor que se encontrava do outro lado e ele então sorriu. Foi um sorriso nervoso e senti o seu ar de espanto quando novamente bati o copo no tampo de mármore:
- À Rita!
Deixei o copo inerte e joguei as notas em cima do balcão e me dirigi à porta de saída e dois olhos curiosos me seguiram. Ao sair, esbarrei num bêbado e o seu estado era lastimável e suas roupas fediam a carniça. Talvez não houvesse mais nada para êle por aqui. Talvez o todo poderoso, cansado, houvesse desistido dele também. Talvez, talvez, sempre haverá um talvez. Pensei nisso por instantes e seguindo em frente eu alcancei o farol e o mísero não mais se encontrava por lá. Aguardei o sinal verde e o atravessei. Eu voltava para casa e pra alguma dose que jazia tranquila no fundo da garrafa de vódca.

sábado, 12 de maio de 2007

Morto por engano


-Esse resultado é impossível, totalmente improvável!- disse-me, enquanto eu o olhava atônito. Em seguida localizou os números de telefones constantes na folha e eu ouvi o som de teclas sendo pressionadas.
-Alô, é do laboratório? Aqui é o doutor Carlos, do Serviço Municipal de Saúde.
Por favor, queria checar o resultado de hemograma de um paciente meu.
E após a conversa meramente técnica, voltou-se para mim e exclamou.
-Está tudo bem rapaz, esfrie a cabeça!- E me abriu um largo sorriso. Sinceramente? Eu não poderia imaginar que atrás daquela frieza houvesse alguém humano e, aquela impressão de descaso me abandonou completamente.

E eu saí do pequeno consultório e era muito bom me sentir assim. Era fantástica a sensação que o sufocante calor do sol de 41 graus exercia em meu corpo e, ao atravessar a rua, solto no meio do nada e ainda um tanto desconsertado escutei o assustador som de uma brusca freada e ouvi a voz de mulher, uma senhora de meia idade, que ao volante do veículo gesticulava nervosamente. E mais assustada do que raivosa ela me xingava , me chamava de louco e que eu não dava o menor valor pra vida. Ah! Como estava enganada! pensei. Ela tivera a sua chance e errara. E eu me lembro que essa história de horror havia começado três dias antes, exatamente num 23 de dezembro, por volta das 16 horas.

Havia saído do laboratório e acabara de chegar em casa. Por por mera curiosidade abri o envelope e verifiquei os resultados e, na contagem dos glóbulos brancos fiquei surpreso, já que valor encontrado superava em muitas vezes o valor de referência. E isso, no momento me assustou e a perplexidade tinha um motivo; a leucemia. Eu sempre me interessara por assuntos ligados a medicina, portando havia lidos alguns livros, principalmente os tratavam de cancer, leucemia e alguns outros. E aquilo me preocupou, já que o leucêmico apresenta uma contagem absurdamente alta de glóbulos brancos, fora o fato que os sintomas que vinha desenvolvendo eram bem parecidos aos decorrentes daquela doença. E isso me apavorava, já que a probabilidade de se encontrar medula que seja compatível com a sua, se dá numa proporção menor de uma por mil, ainda mais que o banco de doadores de medula era praticamente inexistente e isso, infelizmente, gerava mortes prematuras. Portanto, se eu fosse portador da doença, significava que minhas chances eram praticamente inexistentes. Nervoso , tentei ligar pro médico do posto de saúde que me havia solicitado o exame. Disquei algumas vezes e na insistência acabei conseguindo. Ao atender, ouvi o alarido, um misto de vozes e lamúrias daquelas pessoas fodidas que como eu nada tinham a fazer, a não ser estar ali mendigando um mínimo de cuidados com o seu ser. A atendente, friamente, disse-me que não podia transferir a ligação para o doutor e que ele estava muito ocupado com outros pacientes mas, acho que fui tão convincente ao choramingar ao telefone que ela não viu outra alternativa a não ser passar a ligação. Ainda a escutei relatando ao doutor quem eu era e o estado em que me encontrava.
-Sim, o que foi? A sua perguntada me pareceu desinteressada.
- Alô, doutor! estou apavorado pois o resultado do meu hemograma apresentou uma contagen absurda nos glóbulos brancos
E após, discorri sobre o valor constatado e ele então argumentou algo que me fez ficar mais angustiado. Me perguntou se eu tinha por hábito manter relações relações sexuais sem o uso da camisinha. Evidente que a insinuação sugeriu a Aids e, eu não usava preservativos pois aquilo me brochava. Mas, a sua dúvida surtiu em mim uma mudança devastadora e, em fração de minutos, deixei de me sentir um leucêmico e me transformei no mais mortal dos aidéticos.
Na época eu estava morando com uma dona. Rita era o nome dela e eu a conhecera na noite, numa espelunca, uma boate no Centro de São Paulo, onde ela era a crooner de um pavoroso conjunto que só tocava boleros. Um pouco mais de conversa e ele se descartou rapidamente de mim e sem que tivesse tempo para comentar os demais valores já que ele alegava que seu turno estava praticamente no fim.
- Sim doutor, está certo! O senhor só volta a consultar no dia 26 à tarde. Está certo. Estarei aí então.- E dito isto desligamos.
Após aqueles momentos angustiantes, tudo pareceu perder o sentido e eu me encontrava perplexo. Fui na cozinha, abri o armário e peguei a garrafa de vodca e enchi o copo.
-Caralho! Será que vou morrer? – eu balbuciava.
E cada vez mais puto da vida, com a minha vida, diga-se de passagem, eu ficava me questionando, andando de um lado pra outro.
-Vagabunda! Só pode ter sido essa vagabunda que me passou a doença! Foi ela sim!
E isso me tornava cabreiro, fodido, um desgraçado querendo se agarrar a qualquer coisa mas que sabia que não havia nada a se apegar. E assim foi durante o resto da tarde, emborcando bebida e estourando meus miolos com dúvidas. Ah, se ela estivesse aqui, nem que fosse pra rir da minha desgraça mas, ela não estava e nem pra isso me servia. E eu estava ansiosos, aguardando a sua volta já que ela fora visitar a sua mae que estava internada no asilo municipal e onde fora levar uns pacotes de bolachas, salgadinhos e uma meia dúzia de maças vermelhas que tanto a velha gostava.
-Cadela! Como pode fazer isso comigo? –
Já era o final tarde quando ouvi o barulho de passos no corredor e o som da chave sendo penetrada no buraco da fechadura. Nós morávamos no 1o andar de uma pensão próxima do Teatro Municipal. Era um prédio antigo, três andares e mal conservado mas era o que nosso dinheiro podia pagar.E do quarto, cheirado a mofo, paredes imundas e repleto de roupas entulhadas tínhamos o acesso a outros dois pequenos cômodos; cozinha e banheiro. Tão logo a porta se abriu eu voei pra cima dela.
-Vadia! Você me passou a doença! Você me matou!! Eu gritava, tentando agarrar o seu pescoço. E ouvia o ranger de portas se abrindo no corredor e eram alguns moradores assustados com aquela gritaria toda.
-O que vocês estão xeretando, cambada de idiotas! eu e o álcool berrávamos para eles.
E a Rita, completamente assustada, não sabendo do que se tratava tentava se defender como podia e foi aí que eu senti suas unhas me penetrando o braço e a dor foi intensa.
-Do que você está falando? Está maluco homem? – E me empurrou com força e eu caí sentado no sofá, todo esburacado por brasas de cigarro. Eu já não tinha forças nem dicernimento pra pensar ou tentar qualquer coisa, já que me encontrava razoavelmente embriagado. E só apontava para a folha de papel que calmamente zombava de mim, bem ali na mesinha de centro.
-Você me matou! Você me matou! Por que fez isso comigo?
E então ela pegou o resultado e foi me perguntando o que significava aquilo. E eu, atordoado, um tanto sem coordenação, insistia que ela havia me transmitido a Aids. E a Rita, lia e relia os números da folha e não entendia absolutamente nada mas, a pressão que eu exercia era tanta que ela se desesperou.
-Então nós vamos morrer mozinho? me perguntava, com os olhos já borrados por um filete negro, molhado, que descia pela face, ultrapassava o nariz e morria no canto dos seus lábios. Provavelmente o rimel, pensei.
-Vamos sim, sua vadia! é isso que dá ficar trepando com todo mundo! E limpa essa porra de olho! - eu praguejava
Naquele fim de tarde e início de noite não tivemos vontade de fazer absolutamente nada. Não comemos, não rimos,não conversamos e, só bebemos. Bebemos tudo o que havia e pudesse ser bebido. Por volta da meia noite, tropeçando um por cima do outro, resolvemos dormir.
-Ah mozinho! Será que não existe a possibilidade de haver algum engano? Era ela tentando nos animar.
Eu nada respondi e olhei naquele rosto bonito, nas suas feições cansadas e senti o desejo de possuí-la. Então minha boca cravou na sua e eu senti o seu gosto misturado ao do álcool, enquanto suas mãos ágeis tentavam me desabotoar as calças. Me afoguei no seu abraço, no seu corpo e no resto do seu perfume e, então a penetrei. Penetrei fundo, forte, numa dança desesperada de dois demônios lamentando o perdão que nunca viria e, esse desejo infâme, insano, aliado a amargura nos fez gozar ao mesmo tempo. Tudo terminado, silenciosamente cada um virou pro seu canto e nada mais falamos. Um pouco mais, vencida pelos efeitos do álcool e do cansaço, ela adormeceu.
Eu, evidente, não conseguia dormir e entao pensei na vida. Relembrei das coisas que tive, das que deixei de ter, dos meus erros, dos meus acertos. Lembrei da única filha. Tata, uma linda princesa de 4 anos que deixara junto com a mãe, numa cidadezinha de interior. Me recordei da última vez que estivemos juntos e que nesse dia ela estava feliz, dentro daqueles olhinhos negros, tão vivos, que brilhavam como raios e que não me abandonavam por um minuto. E revivendo, eu podia sentir o amor daquela pequena princesa se esvaindo dentro de mim. E, revivia esse momento como se fosse um magnífico quadro , pincelado por mãos de um Picasso, e o que me fazia acreditar que ainda havia algo de sublime ante tanta desilusão. E ela sorria e no seu jeitinho de menina prodígio, me implorava.
-Ah papai, me leva na praia? A Tata quer ir na praia, papai!
E eu ali, agora, lamentava pelo futuro que não poderia lhe dar, do amor que não poderia compartilhar e, o mais triste, talvez, nem a praia eu tivesse tempo ou condições de leva-la. Acompanhado desses sentimentos tristes e ruins acabei adormecendo. Aqueles dias, em que pese o Natal, não nos trouxeram alegria alguma e, eu já desistira de culpar a Rita e, toda vez que nos olhavamos, só havia tristeza, e era que se nos dissessemos " Pô! você até que era um sujeito legal" e, talvez fosse eu que já estivesse doente e, nesse caso, teria sido eu a contaminá-la. Bom, isso não fazia a menor diferença agora e, só estávamos ali, juntos, compartilhando essa expectativa, calados e unidos. No início da tarde do dia 26 lá estava eu no posto de saúde e aguardei pacienciosamente a minha vez dentre aquela multidão de miseráveis.
E então me chamaram e entrei na saleta do doutor. Ele leu o exame e expressou a sua opinião e, logo depois, ligou para o laboratório e, chegaram a conclusão que o resultado do meu exame era normal e o erro se dera pelo fato do rapaz, responsável pela transcrição, haver invertido umas das linhas o que comprometera totalmente o resultado.
E foi assim que saí de lá. Então eu ouvi a freada e a mulher me xingava enquanto eu lhe dava as costas e seguia em frente e dobrava algumas ruas até chegar a ponto de ônibus e tudo me pareceu estar bem. E eu olhava as pessoas e as achava interessantes. E eu olhava cada rosto, feliz, infeliz, e imaginava quantos problemas haveriam de ter em cada alma daquelas. E o ônibus chegou e no esforço eu consegui entrar e, lá dentro, amassado como folha de papel prestes a ir pro cesto de lixo eu me lembrei da minha princesa Tata e sorri comigo mesmo. As pessoas me olhavam curiosas e o riso, inicialmente tímido foi se tornando sonoro e indiscreto.
-Papai, vamos à praia?
-Vamos sim Tata! E vamos comprar uma bola colorida e um balde com pazinha e muitas estrelinhas para você brincar na areia.
E eu deixava a imaginação fluir e, mesmo ali, espremido, socado, era como se eu pudesse sentir a brisa do oceano me acariciar o rosto. Era como estivesse exalando os aromas do mar e vivenciando o mesmo habitat de todas aquelas exóticas e fantásticas criaturas.
E a sensação era ótima e me senti vivo,outra vez.