quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O perturbardor Penny

Naquele instante de sua vida, Penny se viu em duelo; o universo desafiava-lhe a existência. Olhou para seus incompletos 62 anos e pelo vão do precipício vislumbrou o inexorável.

Aspirou fundo; Em si um vazio existencial se assemelhava à fenda onde um vazio de perplexidades se opunha às lucubrações.
No rosto um sorriso melancólico como um crepúsculo avermelhado percebia que os poucos centímetros que o mantinham distante do precipício faziam a diferença entre estar vivo ou morto.
Pelo vão imaginou-se num vôo silencioso rumo ao fim - Pareceu-lhe romântico – Claro, poderia ter havido fantasias em sua vida, aquilo que não fora necessário e que hoje dava falta. Que bom se houvesse alguém debaixo dos cobertores ao entrar da noite, algum parente que viesse visitá-lo nos dias de ação de graça e que trouxesse um peru recheado de farofa com pêssegos. Mas o que! A vida fora mesquinha e nada lhe dera nem amigos para acompanhá-lo nas lutas de boxe nas noites de sábados ou sujeitos que mesmo desconhecidos discutissem as táticas da nobre arte ou que como ele incentivassem alguns talentosos garotos mexicanos, seus preferidos.

-Arremesso-me? – questionou-se por segundos enquanto balançava o corpo num vai-e-vem como um boneco “João Bobo”.

– Sim! Vá em frente - Tentava convencer-se diante da imensidão vazia.

Simplesmente nele não havia a certeza já que há muito desistira das perguntas e principalmente as respostas. Sua existência consistia em receber mensalmente a aposentaria dos seus 35 anos trabalhados numa ferrovia e estirar-se na solidão da cama e revirar-se em lençóis desgastados à procurava de alguma resignação.
Contudo, relutava: Resignar-se com a solidão? Justamente com a doença que o dilacerava? – Não existe resignação na solidão que me é imposta como camisa de força - Concluía o homem de nenhum amor -

Poucas coisas o animavam além do boxe. No inverno gostava de banhar-se no sol morno das 10 da manhã e das noites claras, principalmente quando a lua se encontrava em fase cheia.
Esporadicamente zanzava pelo quintal nas madrugadas juncadas de estrelas que piscavam intermitentes como luzes em árvores de natal.
Mas, o que fazer com cancro da sua solidão? Extirpa-lo como?
A solidão, definitivamente o esfaimava.

Assim, indeciso, persistiu na romântica idéia de se arremessar do penhasco e se pegar planando como o mais belo dos condores, mesmo que desasado. Será que voar seria mais que o vento assoprando a vida? Será que vôo solitário o faria descobrir outras dores além daquela que o aguardava ao explodir nos rochedos? – Ele haveria de saber - Claro, e depois de tudo sacramentado o seu espírito presenciaria o sangue rompendo caminhos entre as pedras, criando veios que não desaguariam em lugar algum – Um obscuro Penny sorriu para esses pensamentos – Eles lhes pareciam ainda mais romanescos naquele momento -
E naqueles instantes que antecediam à sua decisão, recordou-se do professor de física nos tempos do ginásio; Sabia que a insensibilidade do mestre faria encarar a situação vivida por ele como um mero exercício gravitacional, equação a ser respondida pelo confronto do Peso versus Altura, variáveis que determinariam inclusive a velocidade do corpo até o choque. “ O professor Archimedes era um grande sacana! - Ele sabia que o perfeccionismo e a frieza do mestre seriam capazes de calcular até a quantidade de segundos e a carga do peso quando o seu corpo atingisse as rochas -

Ao voltar a dessas recordações algo à beira daquele penhasco o incomodava – Penny jamais se dera com os números. Todavia pareceu-lhe importante equacionar a questão, como se dependesse dela a sua sobrevivência:

- Vejamos...Se eu peso algo entre 110 e 115 quilos.....E supondo que a altura daqui até às pedras seja por volta de uns 300 metros.... Portanto.... Será que é o peso vezes a altura? - Ele tentava equacionar –

-Não! Não é isso! Como é mesmo a fórmula pra encontrar a velocidade?..... – Pode me dar dois minutos? Pediu a si como solicitasse ao professor.

Desistiu. Não se lembrava - O passar dos anos consumíra-lhe tanto as fórmulas como o juízo - Repentinamente tudo lhe pareceu estranhamente gélido e o romantismo se afastou dali – O exercício com a exatidão dos números pareceu nocauteá-lo – E em não conseguindo decepcionou-se consigo –

- Einstein deve estar se descabelando em seu túmulo - Resmungou consigo diante tanta ignorância.
Portanto, derrotado, só sobrou o arrependimento e o seu pé esquerdo chutando as pequenas pedras que estavam na beirada e que despencaram no nada.



Contudo, a desistência não aplacou-lhe uma sensação de angústia. Com os olhos vitrificados Penny aguardava o momento das pedras se chocarem contras as rochas. Esperou por alguns segundos e nada ocorreu – “ Acho que não calculei corretamente a altura” - Sussurrou para si num amargo e culposo sorriso, desses de quem jamais acerta no alvo, mesmo que esteja afixado na testa.

- Penny, seu imbecil! Ainda bem que não perdeu tempo com mais cálculos estúpidos! – Gritou.

“Penny, seu imbecil... – O eco ressoou –.

Ao escutar-se, surpresa; era a primeira vez que se pegava falando consigo e a impressão de estar interagindo com seu Eu, como se houvesse um outro Penny, invisível, desconhecido, porém não tão imbecil.

-Caracas! Como é mesmo? Por que a voz se propaga no espaço vazio?

Pensou por alguns segundos - desistiu novamente - Resoluto, aspirou e inflou o tórax e outra vez olhou para o vão e sentiu vertigens - as pernas tremulavam. Em seguida, retrocedeu alguns passos até sentir-se seguro. Assim que percebeu estar fora de perigo girou o corpo num 180 graus e retornou para o Fusca 63, Andou os menos de 30 metros que separavam o seu carro do abismo, abriu a porta e acomodou-se no banco com alguma dificuldade. Olhou no velocímetro, enfiou a chave no contato e permaneceu circunspeto. Repentinamente percebeu escorpião transitando despreocupadamente pelo painel. Com a violência da mão fechada, o golpe veio rápido e certeiro para a surpresa do pequeno artrópode – não houve chances para ele

- Penny, seu covarde! Por que não se atirou com essa lata velha como em “ A Morte no Desfiladeiro? – Perguntou-se ao limpar a mão num chumaço de papel higiênico que trazia no porta-luvas.

E a imagem de um carro voando pelo desfiladeiro veio de momento ao relembrar um filme onde duas garotas abandonaram suas vidas ocas e partiram para uma aventura no nada. Entretanto as circunstâncias fizeram-nas se envolver no assassinato de um policial, o que se fez motivos do rancor da corporação e da caçada que lhes impuseram. Foi assim, encurraladas e sem saída e à beira do precipício resolveram arremessar-se com um Ford Maveric, nas profundezas do Grand Canyon, afinal elas sabiam que morreriam de um jeito ou de outro- Penny sorriu ressentido dessa recordação:

- É. Os filmes têm esse dom. Essa coisa de tornar as situações apaixonantes e justificáveis – Nelas tudo se legitima, até o inaceitável - Suspirou –

Então relembrou que estava estirado e tenso numa poltrona da terceira fila do cinema ao presenciar esse infeliz desfecho –

- Meu Deus! Elas se arremessaram e você achou aquilo o máximo - Penny se cobrou enquanto se recordava de outras partes desesperadoras da película.

- Por que esses caras nos fazem crer em tudo que transpõem nas telas? Serão as suas necessidades de desdenhar daquilo no que nos possa ser sensível? – Perguntou-se num riso melancólico enquanto inspecionava o rosto no espelho retrovisor.

Permaneceu sentado por mais alguns instantes; avaliava a situação. Um pouco além a revolta eclodiu dentro de si e ele gritou ao socar o volante:

- Penny, mais uma vez você dá provas que é um completo idiota! Quer saber o por que? Pois bem, imbecil! Morrer dessa forma, pra que?

E persistiu em sua ira:

Não é você que diz que odeia a falta de originalidade e os lugares comuns? Então imbecil! Só tu pra pensar num treco desses! Só tu e esse teu cérebro de centopéia – Recriminou-se furioso.

Definitivamente, Penny era assim; faria o impossível para acreditarmos que preferia ver sua alma penando no mais profundos dos infernos que morrendo no logro e nas fantasias americanas – Hollywood ficara pra trás, perdida irremediavelmente nas lembranças de um tempo onde pactuar com fraudes era legitimá-las num santuário de hipocrisias – Definitivamente a obsessão pelo engodo das telas de cinema fazia parte de um passado longínquo, não mais do agora e nem naquele momento. Além de que morrer naquelas condições seria incompatível com sua convicção comunista - Justificou-se -
Decidido, girou a chave e acelerou até ouvir as lamúrias do seu combalido Wolkswagem.

- Bye bye, dona morte! – Bradou na direção do abismo-

“Bye bye, dona morte!” – O eco repercutiu numa tonalidade um pouco mais amena enquanto o sujeito que parecia maior que o carro abandonava o local.

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Hoje, passados dois anos, Penny sofre de alguns distúrbios. Numa de suas fugas tornou-se um maníaco, num desenfreado consumidor das promoções em sebos. À preços interessantes, Penny lê de tudo: de Dostoievski à Nietzsche, de Sartre à Baudelaire. Penny, jamais se fia na história como ela é e assume posições contraditórias; É comum flagrá-lo discutindo com Lenin, Churchill, Adolf, e até mesmo o general McCarthy. Porém, independente das questões filosóficas e políticas em que se meteu jamais conseguiu livrar-se do estigma de ser um fraco, de não ter tido a coragem do basta quando teve a oportunidade . E isso, de um jeito ou de outro têm lhe custado o preço mais caro; Não há uma única noite que Penny não se faça o inevitável questionamento:

- Confesse, Penny!, você se arrependeu de não ter se arremessado, não é verdade?-

E a resposta quem lhe dá não é o herói que há muito desistiu de si, e sim o algoz que ridiculariza da sua consciência; a convicção do seu outro Eu:

- Penny, tu és um poltrão solitário! Fui me fiar em você e me vejo aqui quando deveria estar apodrecido e sepultado no fundo daquele vale – Costuma insultar-se toda vez que se pega refletido no espelho -

Todas as angústias o têm destroçado e gerado em si outras personalidades. Então, sem no que possa se apoiar, efêmero abandona a existência e passa a meditar por longos períodos. Na volta das meditações sempre a mesma pergunta - “E se eu tivesse entregue meu destino às pedras, o que elas decidiriam?”
E surpreendentemente nestas ocasiões o ranço do ser dotado de alguma lucidez aflora em si. E a transitoriedade incorpora nele como esses espíritos maus que se empanturram de galinhas negras e cachaças ordinárias compradas em mercearias de esquina.

-Penny, tu és um calhorda pusilânime! Pedras não vivem, já nascem mortas! Passastes do tempo de saber destas coisas! – Diz-lhe o outro, desafiando-o . Após a discussão ambos os Penny se encerram num silêncio sepulcro, às vezes por semanas.

Quando não, o personagem incorporado na covardia do seu ser responsabiliza as pequenas pedras pela coragem que não teve - Nesses momentos presenciamos o delírio de suas doentias atuações num fraudulento jogo do faz de contas.
Contudo, sempre ao escolher um livro entre o pó da estante, vêm à sua mente a mais estranha das certezas - queria ser pedra, igual às pedras, sentir como elas.

- Ouvir e jamais confessar – Sussurra ao vento ao resgatar o livro empoeirado.


sábado, 12 de dezembro de 2009

O desempregado


Minha vida estava uma merda em 1984. Sem trabalho e despedido há mais de cinco meses eu perambulava pelas ruas de Sampa  à cata dos empregos possíveis e impossíveis. Minhas qualificações medianas, a princípio faziam-me topar qualquer parada que me fizesse estar dentro de um escritório com cinzeiro na mesa, resolvendo assuntos chatos e burocráticos.
Com alguma sorte fiquei para segundo turno em duas entrevistas, ambas agendadas para o mesmo dia.
Na primeira, na hora marcada eu lá estava pra falar com um tal de senhor Rodolfo. Sentei numa cadeira em frente à sua mesa, e ele com meu currículo em mãos ficou repetindo tudo que eu havia grafado “Vejamos... Rotinas de escritório, conhecimentos de departamento pessoal e escrituração fiscal. Hum...e muitos anos de registro numa mesma empresa. Muito bom isso!” Um sorriso largo acompanhava seu rosto e eu sentia que ele tinha gostado mais do meu currículo que de mim;  já era algo.

- Senhor Péricles, vamos ver se vou bem com a minha bola de cristal? – Questionou-me com um olhar desconfiado - Pelo seu tipo, imagino que és corintiano, suponho – Disse-me apontando o indicador - Estranhei; aquela  afirmação em forma de pergunta - Mas como pareceu-me simpático, imaginei ser um dos meus.

-Claro! Fanático, senhor. Não perco um jogo do Timão! – Exclamei entusiasmado –

-Claro, corintiano..corintiano. É isso, um corintiano...corintiano... – Ele divagava olhando na direção da estante – Depois, conciso completou: - Aguarde um telegrama nosso, Sr. Péricles.

Curiosamente o seu sorriso não estava ali ao me levantar surpreso e estender-lhe a mão em despedida.
Ele olhou-me com algum enfado e depois a contragosto tentou retribuir o cumprimento. Ao fazê-lo, seu braço esbarrou num porta-retrato que estava na sua mesa e virado para si.  Foi então que entendi que aquele se  fizera o motivo de minha desgraça: O porta-retrato, na verdade era um porquinho, e tombado foi que reparei na foto que ele carregava.
Nele estavam o seu Rodolfo, acompanhado da senhora  porca e os seus três porquinhos. Todos gordos e aparentando felicidade em suas  rubras faces. Nos três, a mesma camiseta verde e onde se via o escudo do Palmeiras.
E antes que ele me empurrasse de vez da sua sala me ative em detalhes do escritório do Sr. Rodolfo, e os quais não tinha notado. Estupidamente, ou talvez por ansiedade eu não percebera um enorme periquito de louça, uniformizado de palestrino, centralizado numa estante funcional, lateral à sua mesa. – “Maldito papagaio!” – murmurei ao me mandar de lá.

Naquela mesma tarde lá estava eu em outra parte nobre da cidade, à bordo do mesmo e melhor dos meus dois únicos ternos.

-Sr. Péricles, muito bom o seu currículo! – O Sr. Alberto Roberto pareceu-me entusiasmado, sentado na sua confortável poltrona executiva. Eu me encontrava num luxuoso escritório da Avenida Brasil.

Pelo jeito o Sr. Alberto Roberto devia ser o gerente geral, ou algo maior naquela empresa de engenharia. Eu o achei simpático; um desses caras com rosto másculo, boa pinta, barba serrada, apesar de feita com esmero. O seu perfume forte impregnava o ar quando parabenizou-me pelo currículo. Repentinamente permaneceu estático e me olhou por alguns instantes. Sua voz soou como trovão:

-Sr. Péricles, aposto que és corintiano!

“Mas que merda era aquela de enfiar assuntos futebolísticos no meio de entrevistas de emprego?” – balbucei comigo mesmo – “Bem...Deve ser alguma inovação, uma nova  técnica que consegue vislumbrar o candidato de perfil ideal” – imaginei – Afinal  aqueles  caras de RH sempre apareciam com novidades interessantes.

Em todo caso ele aguardava a resposta. E eu a dei sem titubear e nem parecer nervoso:

-Não, não sou! Sou Palmeirense. Na verdade, não perco um jogo do Verdão, senhor Alberto!

-Ah, que pena! Eu sou um corintiano,fanático – Devolveu, levantando os ombros para depois deixa-los cair, despretensiosos.

“Puta que pariu! Dei bola fora de novo!!” – murmurei  -  Paciência, eu era humano  -
Entretanto se fazia tarde para confessar-me corintiano, talvez se o fizesse naquele instante eu o levasse a acreditar que não havia firmeza de caráter em mim.

-Bem...Isso não me faz a menor diferença, senhor Péricles! Cada qual tem o seu time do coração, sua religião, não é verdade? - O senhor Alberto confortava-me num aprazível sorriso. Concordei meneando a cabeça. E assim uma nova pergunta surgiu; dessa vez olhou-me mais compenetrado.

-Sr. Péricles, o que senhor acha desses homens que ficam se encostando em outros homens nos metrôs, ônibus, trens, ou outro qualquer lugar? – Seu ar sisudo e sua voz de Cid Moreira mexiam com meus nervos. Eu pensei por alguns segundos – “Prova de macho testando macho” supus – Talvez não gostassem de sujeitos delicados naquela empresa. Procurei me expressar de forma que não deixasse qualquer margem para outra interpretação:

-Bem....Pra falar a verdade, Sr. Alberto, eu acho isso meio asqueroso. Pior, acho falta de vergonha na cara ficar demonstrando a homossexualidade em lugares públicos. Sempre procuro fugir desses sujeitos.

Nesse instante a secretária chamou-o ao telefone. “Pode passar” – ele ordenou a ela. Assim que a ligação foi direcionada para sua mesa, o Sr. Alberto fez questão de interagir com a outra pessoa no viva-voz:

-Oi amor! Tudo bem? – Perguntou alguém do outro lado. Inclusive o timbre da voz da pessoa se assemelhava em à tonalidade de Maria Bethânia.


-Tudo bem meu amor! – Respondeu o gerente – Eu estou com um candidato ao cargo de assistente de pessoal. Mas ele já está de saída – Cientificou-a enquanto com o dedo indicador fazia voltas no fio do telefone.

-Amor, me promete que você não virá tarde, hoje? – Insistiu a outra pessoa.

-Sim, prometo! Fique tranqüilo ,Carlos Augusto, não chegarei tarde em casa! – Te amo, ta?

“Hã? – Carlos Augusto?” – Murmurei perplexo.

-Ta bom amor! Ta apostando nisso! Um beijo, paizinho. Te amo! – Despediu-se a Bethânia, aliás, o Carlos Augusto.
-Um beijo, amor! – Retribuiu com ternura o gerente-geral, desligando o telefone.

Em seguida o Sr. Alberto Roberto, levantou-se de sua confortável poltrona de couro grená e sem estender-me a mão foi solene:

-Sr. Péricles, assim que necessário faremos.....
Eu já percebera tudo. Não o deixei terminar a frase:

-Já sei, já sei, farão contato, me mandarão um telegrama! Tô sabendo, paizinho! – Definitivamente, sutilezas psicológicas nunca se constituíram no meu forte -

-Ponha-se daqui pra fora, seu cafajeste! – Alberto Roberto levantou-se irritado. Estranhei; era a primeira vez que ele demonstrara alguma afetação na voz, ao passo que com o dedo em riste me indicava a porta de saída.

Sai de lá um tanto aborrecido. Porém, achei melhor assim; evitar-se-ia qualquer eventualidade do gerente vir com “coisinhas” pra cima de mim. Bem, e se acontecesse algo nesse sentido? Bom, aí as coisas talvez não terminassem bem. No fundo, não se tratava do fato de considerar-me preconceituoso, e a questão de chamá-lo de “paizinho” apenas traduzia a minha frustração de ver um emprego quase certo descendo pelo elevador de serviço, desgovernado. Fora isso, eu gostava de respeitar o espaço dos outros, fosse qual fosse, como também fazia questão que respeitassem o meu.

E assim, sem nada por fazer ou qualquer outra entrevista agendada peguei um ônibus e desci no Vale do Anhangabau. Na estação, o pouco dinheiro no bolso não abrandava a ira dos famintos rinocerontes que bramiam disparates em meu estômago. E como a fome não cedia resolvi ir ao Mappin da Praça Ramos de Azevedo. O calor insuportável fazia o tecido encorpado do meu terno parecer uma fornalha. Eu vertia em bicas quando entrei no enorme magazine e procurei um dos bebedouros que abasteciam o local. Encontrando-o, pressionei o botão e bebia calmamente num jorro de água gelada, quando ouvi uma voz estridente:
- Ô manhê, porque o moço ta todo molhado? – Era uma garotinha duns 7 anos que a questionava apontando o dedo na minha direção - talvez curiosa com as marcas do suor que transpassaram o tecido e marcaram-me com bolas enormes, acentuadamente abaixo das axilas -

-Larga de ser enxerida, menina! – Ralhou a mãe; uma moça morena, bonita, que parecia exalar sexo.

A garotinha olhou para mim e me sorriu, sorri também. Olhei para a mamãe gostosa e ela também sorria, devolvi. Assim que me senti refrescado prestei atenção em suas fisionomias. Inacreditável! A mãe vestia uma camiseta do Corinthians, negra com listras brancas, e uma calça bege, apertada, que moldava-lhe o espetacular rabo. A garotinha usava uma regata do Palmeiras e um tênis verde e branco para combinar - talvez por imposição do marido – Mas, eu tinha a arte de saber distinguir os sorrisos, portanto os alegres olhos da mamãe me diziam muito mais que: “você está uma gracinha dentro deste terno ensopado” – eu sabia – A minha vida não era, grana difícil, relacionamento difícil, o dia-a-dia difícil, mas não poderia me dar ao luxo de perder aquele rabo espetacular:

-A moça é corintiana? – Pergunta imbecil, óbvio, mas eu tinha que começar de algum lugar.

-Sim, sou! Adoro o meu Timão! – Disse-me abrindo um largo sorriso, jogando para trás os sedosos cabelos negros.

E ao jogar os cabelos para trás eu mais que nunca percebia que ela tinha ido com a minha cara. Em seguida olhei para a garotinha e ela não me perdia de vista. Foi então que me lembrei que no bolso interno do paletó havia um tablete de drops da Dulcora, fechado – Morango – garotinhas adoravam o sabor morango. Dei para ela e ela sorriu, a mamãe sorriu, e eu sorri também.

-É o pai dela que é palmeirense? – Arrisquei.

-Não, não! Na verdade o meu irmão que é palmeirense, e como ela ama de paixão o tio, ele conseguiu essa proeza, apesar dos meus protestos – Respondeu-me num sorriso arrasador, para depois completar: - Me separei há quase três anos.

Concentrei-me outra vez em seu olhar e ele parecia me dizer: “Cara, me conheça e deixe eu te conhecer” Saquei o seu lance e fiquei ali jogando conversa fora, acompanhando-a pela seção das roupas infantis, roçando suavemente naquele corpo mágico, agora mais bem mais a vontade.

-Tio! Que time você torce? – Perguntou-me a pequena enquanto puxava-me pelo punho do paletó e chupava seus drops.

-Bem...na verdade torço para dois times! – E pisquei pra ela.

-Dois, tio? Mas pode isso? – Questionou-me com olhos arregalados.

-Pode meu doce! Tanto pode que sou corintiano e palmeirense, ao mesmo tempo – Sorri-lhe

-Ahhhhhhh! E eu também posso ser corintiana e palmeirense? – Ela quis saber.

-Claro que pode! - Afirmei.

-Obaaaaaaaaa! Então a partir de hoje eu sou palmeirense e corintiana. Assim eu deixo a mamãe feliz e o meu tio tamb....Ih, acho que ele não vai ficar feliz, não! – Exclamou alegre, terminando a frase com um riso que só a pureza das crianças emanam.

A mamãe gostosa riu gostoso, eu ri, todos rimos parecendo satisfeitos. O fim de tarde era inevitável, o dia inevitável e continuar vivendo era meramente uma questão de opção. Aos poucos, andando por aqueles corredores abarrotados de roupas, toalhas, panelas, eu percebia que  ela sorria pra mim mais à vontade enquanto suas delicadas mãos deslizavam pelos braços do meu paletó. Naquele mesmo fim de crepúsculo eu as acompanhei até o ponto de ônibus, onde trocamos os telefones e algumas perceptíveis carícias. O mundo continuava girando, rotação, translação, e o homem já havia pisado na lua. À cada instante éramos surpreendidos por acontecimentos e descobertas imprevisíveis, e isso de certa forma sempre se aplicara à minha vida. Assim que ela partiu, o seu ônibus  deixou um negro rastro de  fumaça. Dirigi-me para o meu ponto. O horário do rush me fez permanecer numa fila imensa, onde as pessoas conversavam sem se olharem nos olhos como  jamais fossem adoecer.  Olhei para debaixo dos meus braços e não mais havia as marcas do suor no azul marinho do tecido - "ainda bem" murmurei – a eficácia do meu desodorante vencera exatamente as cinco e meia da tarde. Entrei e consegui um lugar na fileira do banco traseiro, espremido entre a obsidade de uma senhora dos seus 50 anos, e de um rapaz magricela  com tipo de bancário.
O ônibus ao sair deixou as mesmas negra marca impregnando o ar, e eu imaginei que isso se tornaria um problema terrível num futuro não tão distante. E pensando no futuro foi que resolvi viver do presente, mas não antes de imaginar se eu arrumaria um emprego no dia seguinte.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A abdução do China



Pulei da cama 7h. Maldito vício! Precisava do primeiro cigarro do dia.

A caminho da padaria que ficava a duas quadras da pensão onde eu morava, avistei um corpo alojado sob folhas de um jornal velho e a marquise de um prédio antigo. Passei olhando e pasmei ao ver que se tratava de meu amigo China. Aproximei-me, tocando-lhe o ombro de leve. Nada. Mais um toque. Nada ainda. Dei uma sacudida e ele abriu os olhos lentamente.
- O que ouve Véio?
- Hã?!

Estava totalmente fora do ar, percebi. Disse-lhe que me esperasse uns minutos, que eu voltaria em seguida. Fui à padaria, comprei os cigarros e retornei.
Convidei-o a ir até meu quartinho na pensão, tomar um banho, um café, recobrar-se do que me parecia ter sido um porre homérico. Por baixo das folhas de jornal ele estava completamente nu! Tirei minha camisa e a enrolei em sua cintura. Por mais que eu fosse desprovido de preconceitos, não ficaria bem andar com o Véio pelo bairro com a bunda e os badalos de fora.

Ele não dizia coisa com coisa. Estava visivelmente confuso. Já na pensão, tomou um banho demorado enquanto eu preparei um café reforçado.


Depois de quase uma hora, ele parecia estar se recuperando bem.

- Que pifão, heim, Véio?!

- Amigo, tu não tens idéia... Se eu te disser que tomei duas long necks apenas tu vais dizer que é mentira. Mas a verdade é que eu tive uma experiência alucinante com uma extraterrestre na noite de ontem.

- Como?
Ele passou a relatar a história mais fantástica que eu já ouvi. Se não se tratasse do China, que eu sabia, não era de inventar, diria que aquilo era a maior mentira que alguém já havia me contado. Ele relatou o fato:
“Depois que eu peguei a segunda long neck no postinho, saí para dar uma caminhada, assim, sem rumo mesmo. Parei diante de um prédio antigo, onde havia uma pensão de quinta. Uma estranha sensação me fez relaxar, ficar muito leve, feito uma pluma. Incrivelmente senti como se meu corpo levitasse ali mesmo na rua. Senti que subia até uma janela iluminada no quinto andar daquele prédio, por onde entrei. No quarto, uma linda mulher de pele muito clara, quase em tom prateado, cabelos muito negros e longos, curvas sinuosas, sentada sobre a cama, chamava-me para junto dela. Quando parei de levitar, à frente da mulher, percebi que já estava nu. Ela também estava. Ficou olhando fixamente em meus olhos e seus mamilos começaram a se esticar, até virarem uma espécie de tentáculos. Coisa incrível demais.
Os tentáculos subiram até meus ouvidos e penetraram, causando-me uma sensação muito louca, um prazer intenso que imediatamente me provocou a ereção mais rija que eu já tive na vida. Ela abaixou-se lentamente e colocou uma axila sobre meu pau e fez força, levemente, até que eu a penetrasse – imagine – embaixo do braço! Assim, ficou fazendo movimentos lentos, indo e vindo, sempre com os mamilos tentáculos em meus ouvidos, até que não agüentei e gozei no sovaco da criatura. Sem tirar os tentáculos, ofereceu-me a outra axila e novamente penetração, um vai-e-vem delicioso e novo gozo. O mesmo fez com os joelhos, primeiro um depois o outro. Ela possuía cavidades úmidas, apertadinhas, muito gostosas nesses lugares. Gozei nas quatro enfiadas. Depois disso, ainda fez o boquete mais delicioso que já tive na vida e, quando gozei pela quinta vez, ela engoliu tudinho e mudou de cor, ficando levemente azulada. Soltou um som estridente, muito agudo, que me doeu os tímpanos. Foi só então que tirou os mamilos de meus ouvidos. Novamente tive aquela sensação de relaxamento e creio ter adormecido. Só dei por mim hoje pela manhã, embaixo do teu chuveiro”.

Ouvi a tudo, sem interromper. Tinha sido a história mais fantástica que já ouvi na vida. Convidei-o para que fôssemos até o local da abdução, para vermos se a criatura ainda estava lá, para tentarmos entender o que de fato havia acontecido. Mas o Véio disse que preferia ir para casa dormir. Até porque, ele não lembrava o exato local da pensão...


Depois deste dia, muitas e muitas vezes perambulei pelas ruas do bairro, esperando que pudesse ter a mesma sorte do China. Quase sempre encontrava o Véio perambulando por ali também. Conversávamos banalidades por alguns minutos e seguíamos adiante, cada um o seu rumo.


***Esse continho foi uma homenagem de um garoto que apareceu na comunidade do Bar do Escritor, lá no Orkut. Diz que se inspirou numa prosa minha para escrever-me essa homenagem. Claro, me deixou vaidoso. E o melhor, o garoto sabe escrever, e bem!
Obrigado, Fausto J.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A obscenidade dos pássaros vermelhos.

Na época eu estava com 52 e metido com uns garotos de 20 e tantos. E estava entre eles porque de certa forma a literatura nos aproximara: éramos participantes de um clube literário que homenageava o velho Buk. Evidente, para eles o que menos importava eram as obras de Bukowski, e sim o estilo de vida que o velho dizia ter. Uma forma de vida que passava ao largo de valores tradicionais, do bem estar ou do senso comum, ou mesmo a delimitação de algum horizonte para uma carreira promissora. Ali o que importava era falar em bebidas e putarias. Muitos deles universitários, desfilavam os seus mais variados cursos: direito, filosofia, historia, letras, línguas, medicina e os cambaus A4. Porém, o que traziam pra dentro da comunidade não era o grau da sapiência institucional em que transitavam, e sim, a agilidade de formular pensamentos de uma vivência mundana e a consequente transmissão destas posições para as teclas de um computador.

Garotos inteligentes e ferinos que eram, faziam dos duelos virtuais uma questão de sobrevivência, de necessidade suprema de manter o “status quo” do “eu sou fodão”, impondo ao oponente uma espécie de morte literária, principalmente àqueles que não mais conseguissem interagir aos desafios propostos por eles. E com o conhecimento veio a afinidade. E a afinidade, vez ou outra nos fazia marcar encontros em botecos do Bixiga ou da Vila Madalena, porém, desde que fosse referenciado pela maioria. Talvez eu tivesse algum prestígio entre eles porque me julgavam um sujeito irônico e sarcástico. Talvez nem fosse isso e sim o fato de eu usar o avatar de um Buk consumido, contornado no rosto enrugado por redondas e negras lentes, mesmo que essas originalmente fossem duas laranjas, as quais uma amiga tivera a idéia de pintar de negro para que dessem um efeito de óculos de sol. Lembro-me da primeira vez desses encontros:

-Combinado no Red Bird?

-Sim! No Bird! – concordaram grafando suas concordâncias.

Eu estava pontualmente as 9 da noite no Red, meia hora atraso ao horário proposto. Ao entrar, entendi porque o denominaram daquela forma; todas as luzes eram de um carmim pesado, que refletidas em nossos rostos faziam-nos parecer com os mortos-vivos das telas de cinema. Juntamo-nos nuns 12 ou 13; umas 5 mulheres e o restante homens. Mesas foram anexadas, e então um imenso retângulo abrigou à todos. As bebidas foram pedidas;cervejas, vodkas, gims, conhaques, e até vinhos tintos licorosos surgiram na mesa.

-Hey Veio! Tu gosta de vinho?

-Claro! – Eu respondi.

Um garoto me passou a garrafa de vinho e eu emborquei num longo trago, afoito, que permitiu um caudaloso rio vermelho transbordar da minha boca e manchar a minha branca camiseta do The Who.

-Véio, ta a fim de vodca?

-Manda! – E mais uma vez lá estava eu tragando um líquido transparente logo após ter ingerido cervejas e vinhos licorosos.

Talvez os garotos estivessem me colocando á prova; não sei ao certo. Talvez quisessem ver se eu era bom de bebida como achavam que era de idéias.

-Véio, tu quer........

-Sim, sim! Eu me lembro de ter aceito pela última vez, depois de quase 3 horas que estávamos lá.

Assim que dei o último trago na vódka, algo pareceu travar os pulmões e eu não conseguia respirar aquela atmosfera carregada de névoas de nicotina e de maconha. Então me levantei e dirigi-me à escada de saída; dragões com floretes duelavam dentro de mim - Assim que meu corpo se viu ereto, as luzes vermelhas pareceram ganhar uma coloração roxa, fúnebre. Olhei para os seus rostos e eles eram disformes, distorcidos, e suas vozes ecoavam em meu cérebro como se eu estivesse ouvindo hinos de guerra à beira do Gran Cannyon. Com alguma dificuldade eu tentei andar em direção reta; teria que haver alguma dignidade num sujeito de barba em boa parte branca, ainda mais vestido com uma camiseta daquelas. Ao ganhar as escadas as minhas pernas pesavam ½ tonelada, e foi graças ao amparo de um corrimão de madeira maciça que não rolei os seus 15 degraus.
Ao chegar no último uma garota de maquiagem pesada e botas escuras tentava entrar. O seu rosto era negro assim como a capa que a abrigava do frio. Ao se deparar comigo me pareceu um pouco assustada - talvez os meus olhos esbugalhados pretendessem se suicidarem, atirando-se do último andar da minha órbita ocular -

- Hey tiozinho! Tu ta mal pra caramba, heim? . Quer que chame uma ambulância ? – Disse sentindo-se em segurança, la pelo 7º ou 8º lance escada, depois de deixar para trás a minha aparência patética.

Lembro-me de ver o vulto negro no meio da escada e de ter ruminado para ele um “vá se foder” mas acho que não me ouviraram.

Ao sair pela porta e dar na calçada parecia que eu fora jogado num redemoinho e girava tão rápido como se fosse uma turbina de Itaipu, enquanto a ânsia de vômito me subia pelo tubo e ali, miseravelmente no céu da boca, encharcado, os detritos alimentares rogavam para serem expelidos. Mesmo estando completamente embriagado eu tentava ser altivo e então me esforcei, fechei os olhos e engoli de volta a maçaroca que transbordava da cavidade bucal. Com um gosto ácido na boca senti o vento gélido das frias noites de julho me arderam nos pulmões, e eu tentava andar contra o vento, na esperança que ele fosse a cura pro mal estar da morte. Minhas pernas trôpegas caminhavam em desalinho e eu não conseguia manter-me reto, e assim que tive a certeza que era um poste o que via na frente tentei agarra-lo; eu desabaria à qualquer instante. Consegui alçá-lo com os braços e me segurei para não cair; mesmo estando fora de mim, de controle, sempre senti esse horror de parecer ridículo diante dos olhos dos homens, das baratas.

Abraçado ao poste como se estivesse lamentando por alguém numa cerimônia de adeus eu senti o frio do concreto gelar-me a face. Olhei para cima e a luz néon iluminava um raio de 5 metros ao meu redor, e ao voltar com a cabeça o mundo rodopiou forte, e talvez, revoltado com meu estado de letargia não me perdoou: Longas, azedas e abomináveis golfadas foram lançadas na direção do vento. E as contrações vinham uma após outra e eu jateava e mal conseguia respirar.
Aos poucos a força que restou não foi o suficiente para manter o peso do meu corpo e então eu desabei ao pé do poste. Lá eu continuei vomitando, mas em quantidade menor e em surtos mais espaçados; sem detritos, somente um líquido ácido que me amargava a boca. Fiquei por lá uns 5 minutos, até que aparecerem alguns dos garotos.

-Hey veio! Tu sumiu! Ficamos preocupados – Me disse um deles tocando-me no ombro.

Eu apenas o olhei com olhos petrificados, mas sem falar: eu não queria me expor ao ridículo, mais que me expussera.

-Mano, o véio ta maus pra caralho! Que vamos fazer? – Questionou um garoto de cabelos loiros repicados, talvez o mais baixo deles.

-É, É! O véio tá maus mesmo! – Concordou um mais gordinho, de voz estridente.

Em seguida se agacharam e bateram as mãos nos meus bolsos à procura de alguma grana: Justo. Mesmo bêbado eu tinha que pagar a minha parte nas bebidas. Assim que conseguiram resgatar uns 30 ou 40 paus, um deles se levantou e caminhou de volta para ao Bird.

-O véio tá de carro? – Alguém quis saber

-Tá! Na hora que eu tava entrando eu vi ele sair de um Pálio. Ah! É aquela ali, ó!– Indicou um dos garotos apontando o dedo para a minha Weekend verde, estacionada do outro lado da rua, uns 30 metros adiante.

-Acho que é melhor levar ele pra lá !

-É! É sim!– Concordaram.

E então dois deles me levantaram e cada um passou o meu braço por seu pescoço e me carregaram para o carro, sem precisarem procurar as chaves do carro, que estavam aparentes no chaveiro, preso num passante dianteiro da calça.
Abriram a porta traseira e me socaram deitado no banco de trás.
Eu percebia todos os seus movimentos, porém impotente há nada eu contestava. Assim que me deitaram todos eles vieram ver como eu estava.

-Porra! O véinho num agüentou o tranco! Diziam uns para os outros.

Uma das meninas entrou no banco traseiro e se deitou em cima de mim - eu estava de bunda pra cima – então ela simulou o ato sexual - eu sentia os golpes da sua xana batendo forte no meu rabo -

-Tô te fodendo, véio! To te fodendo, sente! Ela sussurrava no meu ouvido enquato cavalgava em mim. Depois começou a gemer uns uis e ais, simulando orgasmo.

Era o sinal que os escrotos esperavam – Gargalhando, entraram uns dois no banco traseiro e me desabotoaram o zíper das calças, tirando-a pelos pés, me deixando de cuecas. Do lado de fora o vento zunia, parecia fazer frio, mas eu não o sentia, apenas um vento assoprando a minha pele. Assim que me viram de cueca, viraram-me.

-Quem é a filha da puta que tem coragem de chupar o pau do véio? – Desafiou um deles, e depois completou – Dou trintão pra quem topar.

Uma garota que vira a outra me fodendo foi a primeira a se apresentar – ela também estava bêbada- Eu olhava para ela: apenas um corpo e um belo par de olhos negros. Ela entrou, afastou ambos os joelhos e sentou-se na parte debaixo das minhas pernas. Em seguida senti seus dedos fazendo pressão lateral na minha zorba. A cueca já andava pelos calcanhares quando experimentei a sensação da sua boca enterrar-se no meu pau – “Slap, slap, slap” ela sugava quente e forte, mas não obtinha de mim qualquer reação.

-Caralho véio! Tu tem que tomar Viagra! – Gritou um deles, até que a menina, diante do fracasso, se deu por vencida.

-Putz! Assim não vai dar! O véio já era! – Ela bradou e gargalhou para os outros, enquanto subia minha cueca e depois as calças.

Assim que a garota travou o meu zíper eles me abandonaram ali deitado – acho que não mais achavam graça em mim – Eu os ouvia se afastando, ouvia suas risadas e gritos de guerra que desafiavam a madrugada.
Deveria ser mais de uma da manhã e eles traziam cervejas compradas num buteco rampeiro, defronte de onde estavam. Eu escutava o som das garrafas sendo abertas. Escutava seus rocks sendo gemidos na 97, alto, forte, saídos de um potente amplificador de um dos seus carros. Novas gargalhadas e então uma das meninas gritava para um exibicionista que dera de abrir as cervejas com os próprios dentes:

-Abre a minha! Abre a minha, Toni! –

Aquele mundo pervertido e perverso durou aproximadamente uns 70 minutos, até que comecei a dar por mim e voltar à realidade. Eu respirava com menos dificuldade e o raciocínio não estava entorpecido como antes:

-Porra! – Cadê a minha cerveja – Esbravejei com a língua enrolada no céu da boca. Tomei impulso e o tórax foi levantado com enorme dificuldade , tentando manter firme o meu pescoço.

-Seu velho filha da puta! Pensei que tu fosse morrer! – Berrou a garota da chupada. – Depois, veio em minha direção com uma garrafa de cerveja.

-Bebe aí, velho bebum! – Disse sorrindo ao entregar-me a garrafa.

Eu a peguei e senti o volume gelado me umedecer as mãos – eu estava vivo, finalmente! – Em seguida emborquei alguns goles para delírio daquela cambada de desajustados. Com algum estorvo consegui sair do carro e me juntar a eles. Foi então que algo mágico aconteceu – Eles me olhavam com certa admiração – Eles sabiam que eu estava muito velho pra acompanhar aquela “pegada” – Mas sabiam também que eu fora um lutador – Um daqueles velhos e obsoletos peso pesados, sem o “upper cut” de antes, sem o cruzado demolidor de outros tempos – Eles sacavam isso e valorizavam o que achavam que eu representava – Talvez eu fosse pra eles algo mais que um velho babaca, ou um sujeito ridículo que tentava competir com suas juventudes e seus hábitos de vida – Eles percebiam isso. Foi então que a garota da chupada tocou em meu ombro e me pegando pelo braço nos levou de volta para o banco traseiro. À princípio, fez sinal para eu entrar – Entrei – Em seguida ela se acomodou ao meu lado, e colocou o meu rosto entre suas mãos. Então enfiou a língua dentro da minha boca – O gosto azedo, acre se juntou ao meu. O contato da sua língua, quente, viscosa, meu deu algum tesão e o pau tentou levantar, mas não foi além. Ela pegou minha mão direita e a levou para dentro do seu sutiã, e a imensidão do seio me encheu a palma. Ela me olhou com aqueles seus olhos negros que teriam fulminado Fidel Castro, e pediu:

-Véio, faz massagem no meu peito. Eu sei que não vai ser hoje, mas eu quero ser fodida por você.

Eu olhei pra ela e sorri. Eu não poderia me desculpar; tinha o lance da altivez. Em seguida formei a mão em concha e o fiz saltar para fora – Ele surgiu como a liberdade de um ginasta que ganha as barras assimétricas.
Era belo, apetitoso, um mamilo enorme. Parecia que me fitava, então deslizei a cabeça em sua direção e o beijei até senti-lo rijo. Em seguida o peguei com ambas as mãos e o suguei como se fosse a primeira mamada em minha mãe. Ela gemeu, sensual, jovem, feminina.

-Véio, o Bukowski teria me deixado na mão? – Perguntou-me.

-Claro! – Eu confirmei – Aquele velho não comeu 1/3 das mulheres que diz ter fodido – Disse sorrindo nas palavras zonzas.

Ela também sorriu – De alguma forma ela queria me comparar á Bukowski, imaginar que realmente eu pudesse ser Bukowski.

-Mas, Véio, você vai mesmo me foder algum dia?

-Vou!. Não hoje, mas vou – Eu lhe disse com palavras ainda tortas.

Em seguida voltei a acomodar o seu seio dentro do sutiã e fiz sinal pra ela sair. Ela saiu e eu também. Esbarrando em seu corpo entrei pela porta do motorista, sentei no banco. Dei a partida e o motor rugiu forte, descompassado, e os garotos olharam para mim, surpresos. Ela se manteve ao lado da porta. Acelerando bruscamente apertei a busina e lhes dei um sinal com o braço – era um breve adeus – Soltei a embreagem o mais rápido que pude e à tempo de ouvir um deles gritar:

-Seu velho filha da puta, amarelão!

Era esse o estilo deles, a “pegada” deles, e isso me fazia bem. Eu não tinha mais os seus 23 ou 25 anos, mas seria capaz de dar conta daquela garota de belos olhos negros. Não naquela noite, eu bebera além do meu limite, tentando provar sei la o que, sei la pra quem. Talvez em comum entre o Velho Safado e eu havia essa necessidade de convivermos com os garotos, reciclar-nos em algo, apesar de certamente nem sabermos no que. Talvez, ainda mais em comum havia o fato de perdermos mulheres interessantes. Mulheres essas que só nos sorririam uma única vez. Eu perdera a minha chance, apesar do mundo ser constituído de chances, chances e mais chances. E com as chances sempre vinham os blefes, e eu blefara como num jogo de poker. Eu me iludira com um relés amador que acredita que pode quebrar a banca em Lãs Vegas com um simples par de copas na mão. Um erro quase imperdoável, mas que certamente me traria uma nova oportunidade para poder acertar. Afinal, seria justo que o mundo crucificasse alguém por um motivo desses?
Eu acreditava que não.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Lamento


A obscuridade que me toma não se benze e nem exorciza - Os ratos escarnecem de mim quando os vejo pelos vãos dos bueiros antes das migalhas da meia noite.
Talvez com alguma razão: Incompreensível, não me embebo nas águas das chuvas e nem reflito nas conchas transbordadas nas calçadas de concreto.

O espelho que me olha intimida-me a carcaça: Muitas vezes flagra-me permutando peles que nem cobra, afrontando-me na nefasta idolatria que nutro ao logro. Eu não consigo fugir, e ele, insatisfeito questiona-me.

- Quanta vez sepultou o que hoje tenta ressuscitar? -
- Infindáveis vezes – Antecipa-se, estilhaçando-me com suas verdades.

Porém a vida impinge-me um sempre em frente e eu tento não olhar para trás. Contudo, seduzido, volto.
– Poderá o míope-astigmata divisar a linha antes que ela se torne turva? –

Assevero-me nas vistas e refaço os pífios caminhos que aniquilei.
A visão não se encontra tão prejudicada que não me faça dar conta da vis indiferenças com as quais sobrevivi. Algo não está bem naquele ambiente de devastação; dou por falta de lágrimas nas árvores que minha lâmina decepou.

Subitamente caio em mim: Elas não me escassearam pelos sofrimentos das ramas, mas sim pela privação de pranto que se hospedou em mim. Um pranto de pó, doído, que entorpece, que não consente que me banhe nas águas da ostentação, que não me aquece diante das vozes da prepotência e nem da intempérie dos ventos do sul.
Um pranto inexistente, que causa desprazer, que me torna perceptível à insolência dos poetas pérfidos, que me combali, humano e mortal diante do acervo de erudições desnecessárias, psicografadas opressivamente nos fortes tons das tintas nanquim.

E assim eu sorrio um sorriso triste de quem se encontra fora de lugar.
Um riso melancólico, de alguém que vislumbra tórridos e insensatos sóis em dias carmim. E assim eu sou, e me induzo refém das coisas que jamais me foram gratas: não necessito desfazer os nós das amarras perfeitas e nem desguarnecer as armadilhas de tudo que se entende por íntegro.
A cada dia, um dia a menos há em minha vida, e eu queria apenas ter compreendido todas as dez linhas que li. Desfazer-me da louca quimera que me insulta, do monstro com cauda de dragão que bafeja ares fétidos em minha nuca. Ver-me liberto da máscara de ferro que molda meus devaneios, da mordaça que asfixia, das enormes bolas de aço acorrentadas que me tolhem os movimentos.

O diabo na terra do talvez


Eu podia estourar os miolos daquele filha da puta a qualquer momento.
Eu poderia me enfiar um tiro na cabeça, após, afinal, que serventia eu teria depois disso? Esparramar mais e mais miolos, é isso?
Talvez o medo não fosse o de atirar, e sim me acostumar com o lúgubre suor dos dedos. À partir daí, certamente eu daria de admirar-me no espelho e veneraria minha feição transtornada e insensível.

Talvez acertar o sujeito me trouxesse algum divertimento ou um pouco de paz: o projétil penetrando no centro da fronte, um estampido seco e rápido como bomba de São João, a sua feição incrédula, e o corpo sendo derramado para trás, num claro desafio às leis da física. Daí em diante era mais que certo que o temor pela minha 45 seria tão contundente quanto aos postores das igrejas evangélicas.

E Deus, nauseando-se em tanto sangue banhado nos poros de terra batida ou em imperfeições de concreto, talvez me interrogasse. Corte formamada, seria ,ais que provável que o diabo risse e tomasse uma cerveja em minha homenagem e diante do meu desgaste. Talvez Deus ficasse tão iroso com minha pessoas que nao mais permitiria que meus anjos voassem e que o terço fosse rezado com a mesma devoção de antes.

Tudo isso era apenas um "talvez", coisas que não dependiam da minha vontade, e sim da minha coragem. Eu detonaria em o gatilho pela primeira vez?

A resposta nao tardou: Minha alma pranteou quando meus dedos choraram -

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Anthony e a Lua

- Papai, por que aquela estrela brilha mais que as outras? – Perguntou ao pai o pequeno Anthony, sentado nos degraus da entrada da casa, apontando o dedo para uma estrela no céu. O pai, disperso, concentrado no vazio da bela noite levou ser olhar na direção indicada e respondeu num sussurro:

-Anthony,  porque é naquela estrela que mora o nosso amor! –  O Sr. Alberto respondeu numa expressão saudosa de sua esposa, falecida ano antes, cedo demais, evidente.

A resposta comoveu o guri de 9 anos, não por estar acostumado à saudade, mas por outra vez ouvir na boca do pai palavras e frases apaixonadas. E convenhamos; Anthony não era um garoto qualquer! Não, não era, pois dono de um Q.I espetacular naquela idade tinha devorava livros de poesias e prosas, principalmente os versos de Bandeira e os contos de Machado, hábito herdado do pai e dos livros que lhe eram presentados por este, num subterfúgio a lhe satisfazer com mimos, evidente. clara tentativa de amenizar-lhe a falta materna

Repentinamente a força das palavras do pai fez a noite ganhar contornos nostálgicos, enquanto os odores desprendidos das flores no jardim eram bafejado num vento brando e perfumado, preenchendo o espaço com um cheiro de saudades

-Mas, papai, a mamãe é mais que estrela! Para mim ela é a lua. Lua como a de hoje, linda, redonda, que ilumina nosso jardim como a luz de um poste - Respondeu voltando-se para a lâmpada néon dependurada no alto do bloco de concreto cravado defronte da casa – Claro, o pequeno Anthony poetizava: conhecia as sensibilidades do pai, e sabia que ele lhe agradava comunicar-se através de simbolismos.

Foi a vez do Sr. Alberto se tornar reflexivo; o garoto sempre lhe surpreendia com alguma tirada. Após divagar por alguns segundos respondeu da forma que entendeu ser alcançado pelo discernimento de garoto:

- Filho, a mamãe jamais poderia se tornar a lua. Se assim fosse, nem sempre ela seria Lua Cheia como a de hoje. Haveria dias que ela se tornaria rasa, minguante, negra e entristecida – Argüiu, dando a entender ao menino que existiam fases não tão magnânima como aquela.

- isso não me importa, papai. Mesmo assim gostop de pensar que a mamãe é Lua! – Respondeu veemente, repentinamente divorciado da ternura da voz

E sem que houvesse tempo do surpreso Sr. Alberto saber-lhes os por ques, Anthony, continuou:

-É desse jeito que gosto de imaginar a mamãe! Lua cheia, redonda, com um brilho de ferir os olhos, como muitas vezes eu vi. Também lua, vazia, oca, sem sorrisos, e com lágrimas nos olhos, como igualmente eu vi. Sabe papai, não faz tanto tempo que a mamãe morreu pra me fazer esquecer que foi assim que ela viveu com a gente -

O perspicaz Anthony se referia à doença da mãe e ao fato de tê-la vivido ainda bela, isenta do câncer e das tristezas. Lembrou que um, pouco antes dela se ir, ele se abateu ao perceber o seu lento definhamento como o ocaso, se minguando como uma lua que peerde o viço, o explnedor. Jamais ousaria a esquecer aquele estado de coisas que o afastou do calor das mãos femininas e delicadas, do amor das palavras maternas e da paz que ela lhe trazia. No fim, foram apenas gemidos e doses altas de morfina.
Apenas dor lancinante que doía em todos, tão intensa, gradativa, insuportável. Uma dor que doeu mais que devia e que um dia a transformou em lua. Lua cheia, lua nova, minguante, crescente, qualquer uma, desde que apenas lua.

Terminado, pai e filho se entreolharam calados, ali, sentados na escada da varanda. No firmamento límpido e isento de nuvens os astros cintilavam como chamas de isqueiros em noites de futebol. A noite persistia clara e melancólica, e os perfumes das flores sem se darem por vencidos impregnavam a existência.
Pela primeira vez o Sr. Alberto olhou para a lua de uma forma estranha, diferente, como se tentando vislumbrar a figura da esposa, ali.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

As aventuras do pequeno Casanova

- Ô manhê, será que o pai está ceando a essa hora?

Eunice nada respondeu - estava cansada de ouvir essa e outras questões do pequeno Oscar – Sozinha, separada há mais de 3 anos, de quebra ficara com o ofício de criar e bancar o sustento das infindáveis traquinagens daquele pirralho de quase 9 anos de idade –

-Então manhê, como eu estava dizendo, o professor falou que cear é comer na hora da janta. Se for assim, será que o pai está ceando agora?

-Oscar, pare com isso! Há coisas melhores pra se pensar! – Respondeu-lhe sensivelmente irritada, jogando um dos braços ao léu.

Enfim, tudo resumira nisso: Um ex-marido em algum lugar distante, despedido há um bom tempo do emprego, incapaz sequer de ser localizado para dar ciência à notificação das pensões em atraso -
Melhor traduzindo: Um cara que desaparecera do mapa na companhia de uma reles vigarista que na ocasião lhe telefonava insistente e anônima: “ Sabia que teu marido é um grande sacana?” – Costumava-lhe dizer a voz anônima do outro lado da linha.

-Deixe de bobagens mulher! Deve ser uma dessas desocupadas que nada tem pra fazer a não ser torrar a paciência dos outros! – Defendia-se exaltado diante dos insistentes questionamentos da esposa.

- E mesmo assim, mesmo sob ao mais variada gama de pretextos ele se foi numa sexta feira de lua cheia -

Naquele dia Eunice estranhara o fato de ao chegar do serviço e encontrar Oscar em frente ao portão brincando com a garotada.
Ao entrar em casa não deparou com o marido, com a mesa posta e nem com a secção de roupas masculina na parte do guarda-roupas que cabia a ele – As calças, camisas sociais, as gravatas grená e até mesmo o pó anti-séptico para os pés haviam evaporado – Simplesmente ele a abandonara em meio ao móvel semi desocupado e com as despesas a serem satisfeitas - Como era de se esperar, Marco Aurélio a substituíra pela rouca voz das ligações -

E indo, deixou-lhes mais mais responsabilidades que o limitado salário da esposa conseguiria pagar: o aluguel de todo santo dia 10, contas de água, telefone, luz, de remédios, e pra finalizar: as inadiáveis compras de supermercado.

A insofismável verdade é que, depois que Marco se foi ficou mais difícil lidar com todas aquelas questões; quantas vezes ela se submetera ao serão na fábrica pra poder minimizar a situação? Muitas! - Estavam lá as horas extras, rotineiramente pagas de forma indevida, mas que, testemunhadas em holerites não a deixavam mentir

-Eunice, necessitamos mais que dobrar a produção – Sistematicamente comunicava-lhe o seu gerente nas épocas em que o Natal se aproximava.
E o tom de voz imposto, mais que notificação, soava para ela como sentença: Ou consiga, ou rua!

Ela, medrosa, porém responsável encarregada da linha de produção de uma fábrica de confecções femininas fazia das tripas e coração para extrair de si e das outras funcionárias algo quase que sobrenatural para cumprir as metas impostas, nem que pra isso fosse necessário largar o serviço as 10 da noite – E invariavelmente esse se tornou o horário padrão nos três últimos anos, principalmente entre setembro e dezembro, quando produzir era mais questão de vida que de morte –

Era nisso que pensava quando mais uma vez deixou de responder a crucial dúvida do filhote. E Oscar, após a recusa da mãe em dirimir o assunto permaneceu quieto, olhos grudados no televisor e nos comerciais do intervalo de “Jurassic Park”, o filme ao qual assistia. Porém, era impossível ele permanecer calado.

-Manhê, será que o pai vem ver a gente no Natal desse ano? – Insistiu, antes que o filme recomeçasse. Evidente, a pergunta fora incentivada pelo apelo publicitário que na TV dava ênfase às compras de fim de ano – Será que ele vai me trazer o Play Station II? – Interrogava a mãe com a expressão de dúvida.

-Oscar, pelo amor de Deus, dá um tempo! Todo ano tem que ser essa mesma ladainha? Quantas vezes te falei que o melhor é esquecer o pulha do teu pai existe? – Ele não trará nada para você. Ele não quer saber de presentes, de Natal , de você, de mim! – Respondeu-lhe sofregamente tentando ajeitar os adornos em desalinhos na estante da sala.

-Pulha, pulha? Que é isso quer dizer manhê? – Oscar era invencível - Ele simplesmente amava saber os significados das palavras -

Dona Eunice diante tantos desvarios do menino fitou-o como se ele pudesse ter alguma responsabilidade naquilo tudo:

- Ser um pulha é ser um, um, um sujeito desprezí....Ah, que perda de tempo ficar explicando essas coisas pra voce!! Ralhou com voz ligeiramente trêmula, a ansiedade se apoderando da laringe, formando algo como uma bola incômoda, coisa que ela teve que voltar a engolir pra não se ver exaurida na convulsão do choro.

-E o que quer dizer esse negócio de desprezí ? – Em menos de um minuto a mãe lhe dissera duas palavras que jamais ele ouvira dos professores ou dos amigos. Aquilo porém, foi demais para ela:

- DESPREZÍVEL é ser um tremendo FILHO DA PUTA! – Bramiu uma dona Eunice descontrolada, enfatizando sobremaneira os xingamentos – A raiva expluída, expondo as vísceras de um ser humano com problemas fez que seus lindos e negros olhos reluzissem às inevitáveis lágrimas que despencaram tão rápidas e vertiginosas como numa cachoeira – Finalmente o ser de carne e osso sucumbia à revolta, ao enrijamento dos músculos, à todas possibilidades, enfim, às feridas contidas em sua alma.

Oscar, assustado arregalou os olhos ao notar-lhe o destempero, e tão rápido quanto pôde abandonou a tela da TV e os carnívoros Tiranossauros-Rex, correu em sua direção, aninhando-se junto a ela – Carinhoso ele deslizou as mãos de unhas sujas sobre as faces encharcadas para depois delicadamente afagar-lhe os cabelos com as mãos ainda úmidas.

-Manhê, pare de chorar, por favor. – Sussurrou-lhe - Não se preocupe mais, ta? Sabe, quando olhei praquela velhota de tetas de melão e de rabo empinado, eu não confiei nenhum pouco nela! Será que ela imaginou que poderia enganar a gente? Será que não notou que a senhora sacou que ela era puta? – Continuou a sussurrar-lhe como lhe confidenciasse algo, como se aquilo pudesse trazer algum conforto à mãe.

Obviamente, sabem-se lá os motivos, mas, Oscar se referia à índole de dona Mercedez, genitora de seu pai, portanto sua avó, : Ele a vira uma única vez, vinda não se sabe daonde, por ocasião do seu mais recente aniversário . E a vendo ele jamais a esqueceria, como também a todas sensações que aquela bela mulher de traços mexicanos lhe provocara - A aparência da “quarentona” mantinha-se viva dentro da sua mente. Seria capaz de com os dedos voltear a vulgaridade da sua boca ou descorar-lhe o tingimento dos lábios carmim . Jamais poderia fazer que nao viu a pesada maquiagem a lhe colorir os olhos num tom lilás, que não sentiu o perfume denso e nauseante, muito menos que se esqueceu dos beijos molhados que ela lhes dera e que lambuzaram suas bochechas.
Ah! Como ele gostaria de poder apagar da memória o registro que ela deixara. Como se alegraria ter uma borracha que apagasse gente, que suprimisse o contorno magnífico e libidinoso das suas coxas. Pernas que ele não se esquece, mas que lhes fizeram saltar o coração quando as viu adornadas por uma calcinha negra e transparente, através do furtivo buraco da fechadura, numa hora que ela necessitou ir ao toalete.

Como poderia ser tão insensata aquela mulher? – Como poderia caber dentro de si tanto desejo por aqueles seios fartos e expostos para quem quisesse ver?
Protuberâncias que mais lhes pareciam carne de primeira dependuradas em ganchos num açougue de terceira. Seios dos quais não conseguira se desviar, que imploravam, clamavam por liberdade, por vida própria, que esperavam o milagre de sentirem-se ejetados para o mundo através da fenda do decote generoso. E essas coisas me mexeram com seu imaginário, mas não o envergonhavam, porém eram assuntos proibidos, secretos e dos quais jamais falaria com sua mãe –
E assim, simplesmente com linhas retas, isentas de curvas e de cantos desenhava-se futuro do menino Oscar.

Futuro que poderia prever-lhe enormes dificuldades com o vernáculo dos professores, com a total compreensão dos motivos e da revolta da mãe, ou mesmo a insensibilidade de apreciar a beleza na pétala de uma flor. Porém, jamais haveria a possibilidade de impedir que ele enxergasse ao longe, que não sentisse as sensações da carne, que não entendesse vocábulário das vozes dos esgotos, ou a rude sabedoria dos pecaminosos meninos de rua –

Dona Eunice ao ouvir-lhe a confidência estancou-se surpresa e incrédula diante de tais conclusões, apesar das lágrimas ainda persistirem, agora mais reluzentes que contas de cristais.
O peito arfava e a veia em seu pescoço latejava ritmada como se martelasse um prego em madeira de lei. A feição antes tensa foi perdendo a rigidez quando eclodiu a gargalhada; espalhafatosa, inusual, e que seu pranto foi incapaz de conter.

-Por Deus, Oscar! Você é demente igual ao seu pai! – Exclamou alto e continuou a gargalhar. Ele sorriu tímido e sem nada entender. Ele pensou em perguntar-lhe o que seria "demente" mas algo dentro de si dizia que aquela não era a melhor hora para voltar questionar a mãe.

O riso encharcado emoldurava partes do bonito rosto de dona Eunice, quando, olhando atentamente para o seu guri, certificou-se: Seria necessário trabalhar mais, ganhar mais, encontrar talvez um homem respeitoso e uma escola descente a quem pudesse confiar a educação do filho.
Mais que nunca e sem muito saber, pressentia que se fazia necessário distraí-lo, subtraí-lo das ruas, dos becos escusos e das calçadas de marfim.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Hey, Joe! ( Carta a um amigo )



Joe.

Ultimamente tenho convivido com obsessiva dona dos meus anseios: a morte. Isso, como é de se esperar, preocupa-me sobremaneira, afinal, tenho dedicado mais tempo a ela que aos meus CDs de rock.

Por vezes penso estar morrendo num deserto como aquele entre o Arizona e Sonora, coisa ao estilo terceiro mundista, concordo–
Nessas introspecções a idéia de tombar como um bravo me fascina; a adaga fincada no peito e  na extremidade  uma dessas bandeirolas que se estacam em touro, enquanto as tripas à deriva  emolduram minha  feição decepcionada que se esvai diante a torridez de um sol às duas da tarde.
Daí a vertigem e um gargalhar ao longe daquele que supus que me levaria ao sonho americano .
Derrotado, sinto-me  vilipendiado dos sentidos enquanto um festival de imagens ocorre nos findos momentos de lucidez. Não há extrema-unção, apenas o sangue esvaindo pela cavidade abdominal, tingindo de escarlate a minha alva camiseta do Pink Floyd. Os olhos embassam e o corpo freme e eu me lembro da esperança e dos  5.000 dólares, motivos maiores por me encontrar ali. No canto de um dos olhos percebo o andar apressado do sujeito ao encontro da mochila que mantém amparadas  as notas de Tio Sam. Incautas, elas ainda não sabem do seu novo dono

Mas,  mesmo tal vislumbre não me permite morrer como herói. Aliás, é difícil morrer como herói nos dias de hoje. Transitórios e involutivos morremos pelas próprias mãos. Morremos em  dedos que  violentam teclas de computador, por olhos esbugalhados diante telas dos notebooks de 15 polegadas . Contudo,  há outras formas menos nobres de morrermos. Então então perecemos sufocados no próprio vomito, dependentes químicos,  por cachimbos que não são da paz, ludibriados pelas pílulas do amor ou por epidemia  virais - Isso mesmo, acredite Joe, também morremos fazendo amor, mesmo  que a trepada que nos infectou não tenha sido la grandes coisas. E a ciência, genitora dessa e de outras parafernálias mortais, num “mea culpa” se redime e nos concede como prêmio de consolação um coquetel de anti-retrovirais que estenderá  o sofrimento humano até que esse se torne inevitável  fim.
 
Talvez Joe, talvez nada disso me aconteça e eu não me vá pelo pela faca do chacal. Talvez nem mesmo por relações contaminadas ou qualquer mortal experimento de laboratório, mesmo desses  ainda não sabidos. Porém amigo, sei que vou morrer de qualquer forma. Vou morrer no vermelho como num extrato de saldo devedor. Vou morrer à mingua, exaurido pelos dedos impiedosos de alguém na multidão, talvez até mesmo  atingido por algum projétil perdido e que não tinha por mim a finalidade fatal.


Portanto, de uma forma ou outra não me haverá qualquer saída
E assim, quando o meu dia chegar talvez não saibam ao me ajeitarem no caixão que a morte veio cedo demais, e sem perguntar-me se eu havia sido feliz. Talvez ao me cobrirem com a insensibilidade do concreto não saibam do momento impróprio, e nem que eu não gostaria de estar ali naquele instante.

Pois é, Joe. Você poderá me garantir que meu derradeiro suspiro não será exalado longe da família, ou daqueles por  quem exercitei alguma paixão?
Ante tantas incertezas poderá afirmar que nõ morrerei de amor inesperado por uma beldadezinha de pernas longas e peitos descomunais. Poderá afirmar, Joe?

Certamente poderá concluir que sou pessimista, um tolo visionário que ainda rirá de tudo isso.
Mas se assim não for eu torço para que a desencarnação se dê do jeito que quero; fones de ouvido, tamborilando uma música nos pés de tênis Nike sobre o desgastado carpete do quarto. Naquele instante, quem sabe,  acometido de alguma grave insuficiência coronária  eu me sinta algo desconfortável.
E se coração for e se a  dor chegar, não quero que a morte me flagre desprevinido;  quero estar ouvindo “Stairway To Heaven” do Zeppelin.
Talvez a intensidade da dor não me ofereça quase nenhum tempo, nem mesmo o suficiente para a tentativa de um Exordil debaixo da língua.
Todavia o oposto é possível e tudo poderá se dar de forma rápida e tranqüila e sem que haja a necessidade de afrouxar o botão da camisa ou deixar de solar riffs imaginários numa Fender Stratocaster  ilusória.
E nesse momento do beijo torço para que a senhora morte permita-lhes que ao me encontrarem me peguem de olhos cerrados, lábios docemente azulados e a feição serena e de quem esteve em paz.

É isso, Joe!

Mesmo que tente me convencer do contrário, sei das formas infindas de ser dizimado além daquela de se ver apodrecido num deserto mexicano na companhia de escorpiões temperamentais ou cascáveis preguiçosas.
Sei também que você poderá estar lendo e  se divertindo nesse momento. Porém, mesmo que conclua que não passe de desabafo dum velho desiludido e rabugento,  te pergunto: Você acredita que qualquer dessas formas deixarão de fazer algm  sentido?
Não, Joe! Não deixarão!
Morreremos velhos, jovens, ou,  ínfimos como os dos grãos do café.
Morreremos transbordados de fé, ou na falta total das crenças.
Morreremos embalados em imagens sacras ou blasfemando impropérios
Morreremos atrelados à complexidade de nossas questões existenciais.
Ou, Joe, simplesmente  morreremos ante a impossibilidade de encontrar qualquer outra razão para continuarmos vivendo –

Enfim, Joe.
Sei que minha juventude se foi. Prostrou-se perceptível diante a mais inglória das batalhas:;O tempo. Contudo, mesmo velho não abro mão de continuar persistindo  e nem de estar sentado na primeira fila aplaudindo o show de alguns jovens bem mais jovens do que eu.
Sabe Joe, independente destes vincos acentuados  há muito em meu rosto,  gostaria de morrer jovem,  eternamente jovem – Forever Young! -  Lembra-se da canção? -
Claro! Utopia risível e inalcançável, eu sei.  Talvez mais um dos loucos devaneios meus.

Pode ser que neste instante ao escrever essa eu  esteja impactado pela canção que ouço agora; É com Freddie Mercury -   “The Show Must Go On” -  Você deve conhecer.
Talvez não seja nada mais, nada mesnos do que isso, Joe!
E que apesar de  agradecer por tudo que esta vida me deu, sei que ela é intransigente e não me dará o tempo que acho que necessito.

 Um grande abraço, meu amigo.

Copirraiti 2009 Out
Véio China©

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Uma tarde no circo

Por que sou assim?

Aspirivaldo olhou para o próprio corpo enquanto aguardando na fila era detalhado pela curiosidade da criançada, adiante e atrás de si.

“-Por que mamãe teve que ceder à pessoa? “ – Questionou o momento íntimo havido entre sua mãe e seu pai biológico – ‘E ainda mais: por que eu prevaleci?’ – Inquiriu a si, a agilidade e bravura de ter sido o primeiro e ter como louros da vitória o direito de fecundar o óvulo de sua mãe.

Atrás de si outros olhinhos ávidos e curiosos:

- Papai, quanto anos será que esse menino tem? – Um guri duns 6 interrogava o pai apontando-lhe o dedo.

- Caique, ele não é um menino – Respondeu o pai ainda jovem, porém constrangido.

-Uai, papai! Então o que ele é? – Surpreendeu o garoto com o indicador ainda apontando em riste.


Aspirivaldo já se acostumara com essas cenas. Aliás, Aspirivaldo estava acostumado com tantas coisas nessa vida que a observação do garoto nada mais era que um fato corriqueiro, desprovido de qualquer preconceito ou maldade. Porém algo o atormentava, e quase sempre ele acordava aos suores, sobressaltado por pesadelos onde vislumbrava o momento da cópula do mãe com o pai, para depois, sem mesmo ter um porquê se ver deitado na mesma cama com outras três mulheres, sem a presença dos pais. E as mulheres mordiam seus lábios e engalfinhavam-se a ele, insistentemente incitando à penetrá-las até que ele, urrando com leão ferido de morte as fazia ter orgasmos múltiplos. Então, cansados, saciados pelo gozo supremo, todos adormeciam. Como não passassem esses pesadelos, e acreditando piamente que isso pudesse ser coisa do mal, à conselhos de amigos procurou uma igreja evangélica e converteu-se: pelo menos agora havia um Pai para ele.

Ali na fila os pensamentos de Aspirivaldo eram dedicado a Igreja e a esses pesadelos quando fitou o garotinho que meio amedrontado se agarrava às pernas das calças do pai. Chateado por perceber que atemorizara o guri desviou seu olhar e imaginou se um dia haveria esperanças para si: queria saber quem era, de onde viera. Sobre o seu passado apenas um grande espaço vazio, uma lacuna em branco da qual pouco ou quase nada sabia: A mãe ainda em vida jamais gostara de tocar no assunto do pai. Bom filho e respeitador da hierarquia familiar para não vê-la aflita aos poucos deixou de tocar na ferida de ambos, até não mais fazerem menção sobre ele.

E assim que ela se foi, ele, órfão aos 15 foi obrigado a gerir sua vida e sustento.
Evidente, sem qualquer qualificação ou estudo abraçou a carreira de engraxate, um lustrador dos bons, preferido entre outros garotos que trabalhavam numa pequena engraxataria de bairro: A preferência talvez se desse por acharem engraçado o fato de ele se encaixar como uma luva na caixa de engraxate sem precisar encolher as pernas quando sentado em sua ferramenta de trabalho.

Isso perdurou até os 17, quando num dia de jogo do time de bairro fora descoberto pelo técnico adversário: um profissional do sexo.
Naquele dia, Aspirivaldo, o mascote do Cruzeiro F.C. ao trocar de roupa após a partida no único vestiário existente , permitiu que o técnico do time adversário visse o tamanho descomunal do seu membro.
Este, impressionado e com idéias lhe fervilhando a cabeça, ao sair do vestiário entregou um cartão ao pequeno homem, onde se lia: “PornoStar Produções Artísticas e Cinematográficas”.

- Se te interessar, me procure. Há um futuro brilhante para você! – Comunicou com ar pomposo. Ao que, Aspirivaldo, um tanto constrangido, respondeu:

-Mas, não tenho experiência alguma. Eu nunca fiz aquilo, sabe.... – O rapaz sorriu: Estava ali alguém fácil de manejar. Antes de apertar a mão do nosso anão, em despedida disse:

-Isso é muito interessante!

Assim que ele se foi, Aspirivaldo sonhou. Era justo que progredisse, que pretendesse ter uma vida melhor: estava cansado de morar em quartos de pensão, enjoado de ter aquelas graxas negras, marrons entrando pelos vãos das unhas e que lhes davam aspecto nauseante.
De lá para alguma glória foi um pulo – As pessoas gostavam de ver o pau imenso do anãozinho penetrando aquele amontoado de loiras com caras de vadias. Porém, com a falta de outras novidade os negócios e cenas nebulosas do staff foram deixando de causar interesse. E sem outras inovações que aguçassem o interesse daquele tipo de público, os filmes deixaram de se manter no topo, portanto começaram a se empoeirar nas prateleiras das locadoras, abreviando assim a carreira de sucesso do mini ator pornô.

Precavido, Aspirivaldo, sabendo que aquilo talvez não durasse para sempre economizou o suficiente para montar uma revenda de água e gás. E ainda hoje na sua empresa não são poucos os clientes que, sorridentes pedem para que ele pose para fotos ao lado dos garrafões azulados e das cotas de gás, num contraste insólito e divertido.

-Mamãe, que garoto estranho. Tem cara de egente grande e parece um homem! – Ouviu de uma outra garotinha que esticava o braço em sua direção – Ele riu - Nâo se esqueciam dele - A mãe sequer deu atenção à menininha e a puxou bruscamente pela mão afim de livrar-se do assunto incômodo.

Catracas liberadas, Aspirivaldo riu enquanto caminhava à passos curtos na direção da entrada principal – para ele aquilo era tão normal –
Ao entrar procurou um lugar nas arquibancadas onde pudesse ter ótima visão do espetáculo. Repentinamente surgiu alguém:

-Prezado público! Temos a honra de anunciar mais uma tarde de alegrias! Estarão com vocês os maiores artistas circenses desse país! – Exclamou o anão vestido num terno vermelho e com uma ostensiva gravata borboleta amarela dependurada no pescoço, bem ali, no centro do picadeiro

Assim que fez o anúncio a banda soou alto e as atrações daquele circo vindo de Pernambuco.foram adentrando à arena, até tê-la repleta.
Aspirivaldo olhava para todos de forma apaixonado e via as atrações se apresentarem uma a uma: a garota da corda bamba, o atirador de facas, o trapezista, os palhaços, o domador e seus leões, tigres. Aquilo o deixou extremamente feliz: - Ele sempre quisera ser um homem de circo –

E as atrações se sucediam uma após o outra até chegar a vez dos palhaços.

-Querido público, agora com vocês, Pimpolho Louco e os Chicletes Selvagens!! – Anunciou o nanico de terno berrante.

Tão logo anunciou, se desfez das roupa encarnada que vestia, mostrando que por baixo havia outra de um azul forte e com bolas imensas, coloridas de vermelho e laranja – No peito, uma faixa se via: O nanico das multidões
E tão rápido quanto se desfizera das roupas ele pulava e dava cambalhotas enquanto a turma do Chiclete entrava em cena, surgidos repentinamente por detrás das cortinas.
Enquanto todos faziam peraltices um dos anões da turma do Chiclete disparou na direção do Pimpolho Louco e virando para a platéia, em tom jocoso perguntou:

-Criançada! Vocês sabem qual é o nome desse sujeito enorme e de pernas curtas?

A gurizada não deixou por menos:

-Nãoooooooooooooooo! – Ao que ele retomou:


-Então eu vou contar! – E chegando próximo da primeira fileira, como se confidenciasse seus pecados, gritou numa voz engraçada: - O nome desse abestalhado do Pimpolho Louco é ASPIRIVALDOOOOOOOOOO!

Foi o suficiente para a gurizada explodir numa gargalhada. Entretanto o Pimpolho Louco não queria deixar por menos, e como ir à forra era necessário correu para o lado oposto onde fora o outro e instigou a gurizada:

-Ele fala de mim. Masssssssssssssss. Vocês sabem o nome dessa lagartixa descascada?

-Nãooooooooooooooooo! – Divertiu-se a meninada

-O nome dessa coisa enorme é ARISCRAUDIOOOO ! – Gritou o Pimpolho Louco, para depois dar piruetas, gargalhando.

A gurizada explodiu num alarido enquanto o nosso anão permanecia atônito, perdido entre o público. - Era ele! Era seu pai! – Coincidência assim jamais seria possível –
Seu coraçaozinho batia loucamente num ritmo que ele jamais sentira. Parecia que o órgão queria lhe sair pela boca –

-Meu Deus! Meu coração parece maior que eu! – Sussurrou para si –

Foi quando começou a sentir-se mal : uma dor lancinante como se fosse um raio invisível a varar-lhe o peito. As vistas escureceram e a dor o fez perder os sentidos – Estava enfartando - Momentaneamente o burburinho tomou conta daquela parte da platéia e as pessoas se aglomeravam à sua volta – Por momentos o show foi interrompido, e mesmo havendo a rápida intervenção dos paramédicos mantidos de plantão, de nada adiantou. Como nada mais havia a se fazerele foi envolto por um grosso e negro plástico. Eles o retiravam numa maca enquanto lá de longe, no centro do picadeiro, os seis anões ajoelhados e de mãos postas rezavam uma Ave Maria para o assistente desconhecido.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um dia de chuva e as Testemunhas de Jeová

Apressado eu desci as escadas de casa numa tarde de muito vento e promessa de temporal. Pra variar, a pressa naquele momento era maior que a minha vontade de viver. E a insofismável prova que meus dias de há muito não eram dos melhores estava lá, nas insistentes palmas de duas senhoras ao portão. Usavam vestidos simples, folgados e longos. Os rostos sem qualquer maquiagem, os fartos cabelos puxados para trás, enrolados no alto e atrás num coque fazia de suas feições algo ameaçador. Elas estavam bem mais ansiosas que eu.

- Por favor meu filho! Tem um minutinho para nós?

-Sim! Do que se trata? Perguntei ao me aproximar

Ela me olhava com um sorriso estranho, forçado, quase fanático.

-Deus veio falar com você! – Respondeu-me.

-Glória Jesus! Hoje é dia de júbilo. Deus veio até você! – Exclamou a mais encorpada. Olhei para ela, e ela me pareceu tão estranha quanto a outra.

Paradas e a espera que eu tivesse alguma reação eu me ative nelas e nos negros e grossos livros que traziam debaixo do braço e tive a certeza: Eram Testemunhas de Jeová. Quase ao mesmo tempo retiraram as bíblias do sovaco e abriram numa das páginas. Evidente, nem aguardaram pela minha resposta: já estava estourando o minuto a que se propuseram.
Talvez tenha sido a minha surpresa ou o meu olhar assustado que foram tomados por elas como de alguém que necessitava de alguma salvação. E eu apesar de não ser religioso e nem praticante não me julgava incrédulo em Deus nem no seu filho de belos olhos azuis, porém estava tão desencantado com a vida que desistira de qualquer vínculo com Ele - eu nunca fora um homem de muita fé - E isso mantinha-me convicto que ele, sem alternativas, aceitara a minha desistência.
E antes que elas retomassem, antecipei-me :

-Olha dona, sei de tudo que ele irá me falar. Mas pra ser sincero com a senhora o que eu necessito é de alguma ajuda com isso aqui! – Exclamei espalhafatoso ao abrir o portão e chacoalhar no ar alguns papéis em minha mão, na vã esperança que me dessem passagem.

A mais bunduda e curiosa se interpôs na minha frente e esticou o pescoço na tentativa de ver o que diziam os papéis - Eram avisos do cartório de protesto ameaçando a minha integridade enquanto cidadão – E o motivo era um só - Eu estava desempregado há cinco meses, alvo fácil de credores e principalmente do Sr. Samuel, das Casas Bahia. E nesses casos, como é de esperar, os homens de negócios são capazes de tudo e até de nos fazerem perder de um momento para outro tudo aquilo que lhes pagamos com tanta dificuldade. E isso me preocupava sobremaneira: havia uma a esposa furiosa que por conta da situação já não trepava e nem me amava como antes. Portanto, ficar sem o televisor e a sua novelas das 8, sem o fogão e os seus ovos bem passados seriam motivos, a seu ver, mais que suficientes para nos levar cada um para o seu lado. Se justa ou não, essa não seria a primeira vez que esse pessoal de crediário nos causava constrangimentos – Porém, acreditar que mais uma vez ela se rendesse ao meu poder de persuasão parecia-me tão impossível quanto ganhar sozinho na megasena.

Diante dos motivos e da minha exaltação a pregadora, estática e surpresa foi incapaz de esboçar qualquer reação. A outra, a de bunda menor, mais frívola e calculista, percebendo que a colega deixava escapar a ovelha pelos vãos dos dedos abriu a bíblia, provavelmente na página que se fazia o carro chefe da sua pregação e, severa no olhar e na voz, solenemente me alertou: “ Só a palavra do Senhor será a tua salvação “ – Eu a olhei aturdido. Talvez para minar definitivamente a minha resistência, ela culminou ameaçadoramente : “ Sem ela não haverá luz e tua alma se consumirá nos caminhos das trevas”.

-Glória Jesus! - Comungou cúmplice a que me deixara escapar do laço, revitalizada pelo providencial auxílio da colega. E ela, agora recomposta e denotando ternura na voz, concluiu procurando uma outra página da bíblia. O tom professoral aguardava a minha rendição:

-Veja, oh filho do homem: Deus é o pai. O Senhor quer testemunhar a sua ressurreição de um mundo profano. O Pai celestial quer ser fiador da tua fé, e não das suas dívidas!

O diálogo insano e surreal e os pingos de chuva, agora mais encorpados que escorriam pelo alto da minha testa como se fossem moleques brincando num tobogã de parque aquático foram demais para mim:



- Ai meu Jesus Cristo! Não me falta mais nada! – Exclamei alto com certo desespero.

Porém elas não desistiam, nunca:

-Falta sim meu filho! - Respondeu uma delas aproveitando o “gancho” que eu lhes dera. E depois completou, altiva:

- Falta a sabedoria do Pai misericordioso em tua vida, irmão! – Disse à procura de outra página que pudesse estocar ainda mais a minha dilacerada sensibilidade

Acuado, atrasado para o compromisso eu não podia dar-me ao luxo de enlouquecer.
Intuitivamente, diante do quadro que me parecia irreversível só me restou folgar o cinto da calça e abaixar o zíper enquanto as fixava com olhos de demente - Eu fazia pressão na lateral para que ela cedesse quando se deram conta do que eu estava fazendo - Então, horrorizadas reagiram com toda a fúria que Deus lhes deu:

-QUE HOMEM HORRÍVEL, PROFANO. HÁS DE ARDER NO FOGO DO INFERNO, SATÃ! –
Dito, descerem a rua de paralelepípedos em passos largos e apressados.

Sem ação aguardei que se afastassem. E aquilo o suficiente para que eu caísse numa estrondosa gargalhada depois de muitos dias de sisudez.
Eu me divertia observando seus pesados corpos caminhando rápidos e trôpegos pelo desnivelamento dos pequenos blocos de concreto. Me divertia com seus vastos cabelos em obsoletos coques. Das celulites que pareciam redemoinhos em suas peles e da flacidez das coxas dentro dos largos vestidos florais. E principalmente, gargalhei da forte rajada de vento, que intensa esvoaçou seus vestidos deixando à mostra suas desbotadas e broxantes calçolas de algodão.

‘Eu não posso assegurar, talvez eu houvesse me tornando insano por alguns momentos, mas ao ser castigado pela inclemente chuva olhei para o céu carregado e seria capaz de jurar que o tinha visto entre as névoas acinzentadas - E ELE me pareceu sorrir num riso cúmplice e compreensível como se me dissesse com sua voz de trovão: “Ok garoto, tudo bem! Na vida há que ter um pouco de diversão”
E submerso nestas impressões e atolado no temporal imprimi velocidade nos passos e ao longe e no fim da ladeira eu via partir o ônibus que me levaria á cidade - Tudo conspirava contra mim e era mais que certo que o Sr. Samuel não ficasse satisfeito comigo naquele fim de tarde - E tendo que aguardar o próximo ônibus era mais que provável que não houvesse tempo de pegar o cartório funcionando, pois antes teria que passar na Caixa Econômica pra penhorar alguns anéis e correntes de ouro.
Minha sábia e falecida avó, além dessa pequena herança familiar me deixara outras repletas de erudição e lucidez – Num delas ela dizia : “QUE SE VÃO OS ANÉIS, MAS QUE FIQUEM OS DEDOS”.
E saboreando o legado eu sorri ironicamente - Ela teria sido uma testemunha de Jeová, do rabo -

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Garota de Beijim



- Papai Sam! Sabia que fez bem para Liu Twai? – Disse-me a princesa de Beijim fitando-me os olhos num misto de ternura e exaustão.

Eu a conhecera num bar situado no lado leste da cidade, num local que bem poderia ser um braço da máfia chinesa no Brasil. Foi numa noite de sexta logo após eu sair dum boteco, onde com alguns colegas da fábrica eu bebera o suficiente para me enfiar no primeiro ônibus que surgiu. Claro, como para todo bêbado que se preza, o destino não fazia a menor diferença, desde que tivesse algum lugar para largar o corpo e adormecer a mente.

-Hei! – Chamou o cobrador chacoalhando-me bruscamente pelos ombros – Ponto final! – Exclamou entediado.

Despertei assustado; Eu fora parar a mais de 30 kms de de casa. Olhei pelas janelas envidraçadas e reconheci aquele local singular – Xangaitow – um bairro de colônia chinesa em São Paulo, afinal eu já estivera por lá umas duas ou três vezes. Parado numa via transversal à avenida principal notei algumas construções que obedeciam certa semelhança com a arquitetura chinesa, e o que tornava o lugar um tanto insólito.
Tentando me colocar em pé voltei o olhar para a porta de entrada e uns 3 ou 4 passageiros subiam e tomavam seus assentos em silêncio. Persistindo em manter-me sóbrio fixei no relógio de pulso e os ponteiros de uma cor verde-limão me diziam que era meia noite e meia –
“ Acho que retornarei nesse” – Avaliei. Aquela seria a última viagem da noite, e se eu não permanecesse ali só poderia fazê-lo as 5 da madruga, quando a frota voltava a circular. Flexionando fortemente as pernas eu me levantei e permaneci olhando pela janela enquanto mais adiante alguns clarões coloridas chamaram a minha atenção como me seduzissem. Resolvido, desci e caminhei os 80 metros que me mantinham distante das luzes vermelhas e azuis que piscavam freneticamente. A noite gélida e o vento cortante faziam que eu ofegasse e que desprendesse de minha boca lufadas de névoas e com elas as lembranças das tórridas cenas vividas por Humprey Bogart e Grace Kelly no filme Cassino Royale. O ar úmido e as rajadas de vento me fizeram ajustar a jaqueta de brim ao corpo, mas apesar do incômodo não era o frio ou as névoas que importavam naquele momento; Eu necessitava fugir de mim mesmo e da mesmice que se tornara a minha vida - Eu estava com medo do mundo e dos sentimentos - Era chegada a hora de respirar outros ares além do cheiro mofo da minha casa. Passara da hora dos meus olhos se interessarem em outras coisas além do torno mecânico ou as esporádicas saídas para bebedeiras.
Definitivamente eu precisava me divorciar das paredes do meu quarto, pois me deprimia. Talvez as desilusões do passado e a falta de uma nova e boa garota me obrigavam a compenetrar na figura de Yashim, sempre próximo a lâmpada do teto, como ele fosse todas as cores do meu mundo.

Se a minha existência era entediante, o que deduzir da vida daquela pobre aranha? Ela e sua compulsiva calma , sempre à espreita, confiante na estupidez das moscas e de alguns tolos insetos que mais cedo ou mais tarde acabavam por se enredar nas suas teias. E o tudo demasiadamente previsível afetava a minha tolerência. Eu esperava mais dela – Ansiava que não aceitasse tudo tão passivamente. Esperava que algo a despertasse, que um novo destino insurgisse contra sua mórbida natureza da mesma forma que o cobrador fizera ao me acordar, mesmo que para isso tivesse que se engalfinhar com lagartixas jamaicanas, ou mesmo, bater em retirada diante da emboscada de marimbondos furiosos.
Mas, não, não havia esperanças para ela. Era o imutável lengalenga de sempre. Era o não foder e nem sair de cima, atos inacabados que se tornaram sua resignação, sua sina. Talvez ela pensasse o mesmo sobre mim e a minha solidão.
E a merda de afogar-me naquele isolamento é que ele me tornava amargo e calculista como o Yashin. E sem me comover com as pequenas coisas do dia-a-dia distanciáva-me das pessoas normais, atolando-me nas vísceras da insanidade. E eu, um reles misantrópico não via outra saída que não fosse acolher a companhia daquela aranha, gostasse ou não de tudo que estava a nossa volta

Lembro-me também que ao acordar naquela mesma sexta estava determinado a arrumar um cachorro. Eu queria a sinceridade de um amigo que me oferecesse a cabeça para ser acariciada toda vez que ele ou eu nos sentíssemos melancólicos. Porém ao imaginá-lo zanzando pela casa, defecando merdas por todos os cantos, fez-me sepultar a intenção.

-Yashim, vê se não apronta nada até eu voltar! – Recomendei antes de fechar a porta e deixá-lo às voltas com a sua certeza de erros.

Ainda pensava nele quando aproximei das luzes coloridas de um excêntrico bar - “Osaka Pub” - Dizia o nome no letreiro de neon que piscava incandescente. Ainda trôpego, mas tentando manter-me coordenado achei descabido o nome japonês para um bar chinês. E além disso eu jamais imaginaria um Pub ao fiel estilo britânico nas formiguentas ruas de Pequim.

-Amigo, são 35 mangos! – Me disse o chinês ao perceber minha presença. Olhei pra sua compleição forte e pra sua enorme barriga de chopp e o supus o segurança do local.

-Caracas, china! 35 mangos só pra entrar? – Reclamei perplexo - Ele me fitou severo.

-Sim! 35 pratas só pra entrar – Se não tiver a fim... vá dando o fora – Respondeu secamente. A testa enrugada e a cara de poucos amigos se fez certeza: era o leão de chácara do lugar.

Como a recepção não fora nada amistosa, somada ao fato que o “couvert” era um tanto salgado pro meu bolso, mais uma vez pensei em retornar. Porém, justamente naquele instante o ônibus atravessou a avenida e veloz seguiu em frente num ritmo que não pudesse ser alcançado por minhas pernas. Indeciso considerei de momento uma corrida de táxi, mas, ela custaria bem mais que o dobro do ingresso, portanto, resolvi entrar.
O sujeito ainda me olhava desconfiado ao me ver remexer no bolso traseiro à procura de algo. Assim que consegui retirar a carteira, abri e algumas notas de cinqüenta mantinham-se agrupadas às custas do salário que fora pago naquele dia. Contei o dinheiro aparentando um ar de superioridade e lhe passei as 35 mangos. Ele pareceu não satisfeito com a empáfia, mas, como negócios eram negócios acabou por escorregar na minha mão uma espécie de cupom onde eu li: “Consumação mínima R$ 35,00 - Gratuidade 2 doses uísque e 2 cervejas” Olhando atentamente para o cartão vi grafado uma fileira de pequenos quadrados que seriam assinalados caso eu bebesse mais que a cota concedia. - “Dois uísques e duas cervejas” - ruminei. Bem, já era alguma coisa – conformei-me.

Ao atravessar a pesada porta de imbuia com um dragão esculpido em alto relevo ao centro, adentrei num enorme salão com dezenas de lampadas vermelhas rosqueadas em arandelas laterais. Nas mesas, as fumaças de cigarros transpassadas pelo tom escarlate das luzes causavam um efeito sombrio ao percebê-las rumando na direção do teto. Não haveria exagero imaginar que saído daquela névoa carmim pudesse surgir uma banda de garotos cabeludos e que guitarras em punho fizessem o rock comer solto. Mas não havia no local nenhuma banda de rock pesado e sim uma potente e pragmática jukebox repousada ao lado do balcão do bar, e onde uma mulher de cabelos estranhos colocava suas fichas. Assim que a moedas foram introduzidas – “ Georgia on my mind” foi cantada com voz rouca e grave de um conhecido astro americano, ao mesmo tempo que focos multicoloridos eram golfados pela máquina.
Numa das muitas mesas algumas garotas e rapazes mais tagarelavam que bebiam. Ao atravessar a parte central do salão era visível presa ao teto uma imensa serpente metálica que lançava simultâneos flashes estroboscópicos, através das cavidades em sua extensão. Os efeitos psicodélicos e instantâneos dos raios faziam que os rostos surgissem e desaparecessem em frações de segundo. Sem conseguir ver o chão me senti desorientado, perdido que estava por não descobrir o lugar que eu ocupava no espaço. Assim que a música e os efeitos cessaram procurei por um lugar tranqüilo e fui encontrá-lo num canto, longe da mesa dos garotos falantes.

Sentei e acendi um cigarro e expeli uma longa baforada que subindo ocasionou o mesmo efeito sombrio que eu percebera ao entrar.
Mais ao fundo, num pequeno palco, algumas garotas magricelas tentavam excitar os freqüentadores num show stripper. Porém poucos pareciam se interessar, afinal dançavam com a parte de baixo da langerie. Permaneci fixado numa que tinha uns peitos enormes, iluminados por potentes focos que, lançados sobre os seios os deixavam com coloração pálida, como se fossem feitos de marfim. Terminado o número voltei o olhar e me deparei com a presença de uma garçonete. Indiscretamente inspecionei o seu corpo e reparei no seu traje: jaqueta prateada e uma saia vermelha. Da saia, justa, um corte lateral deixava à mostra um apetitoso naco da sua coxa cadavez que os trocava passos. A jaqueta, de corte militar e ombros quadrados mantinha-se fechada por botões negros que começando logo abaixo do queixo desciam e terminavam na altura dos quadris.
Ela me fitava enquanto eu continuava a dedicar-me às linhas do seu corpo. Esguia, pernas bem torneadas e um volumoso par de seios, sufocados pela insinsível túnica militar. No alto sobressaiam seus cabelos negros e compridos. Logo abaixo a surpresa: o rosto delicado de uma princesa chinesa. Ao permanecer fixa em mim eu senti seu olhar lançar labaredas com a mesma intensidade dos seus dragões mitológicos. O perfeito contorno da boca, os lábios, carnudos e tingidos de escarlate, mesmo mudos, sussurravam: “ Sexo, sexo, sexo”. Sem dúvida: sozinha ela era uma constelação.

- O que o moço vai querer? – Perguntou-me gentilmente com um sotaque carregado de quem está a poucos anos no Brasil.

-Por favor, uísque e cerveja – Respondi apresentando meu cupom.

Ela anotou o “x” nos retângulos que indicavam as minhas bebidas.
Mais rápido que me atendera, ela voltava. Assim que colocou as bebidas sobre a mesa entornei a dose de uísque numa única talagada e isso me fez constatar a péssima procedência da bebida- ”será que fabricam isso numa das banheiras ao fundo do bar?” – questionei.
O uísque havia descido rasgado, ardendo mais na alma que no esôfago.
Ao terminar estralei a boca – ela me olhava curiosa – Eu precisava de um gole gelado pra rebater aquela sensação horrível que a bebida deixara. Assim que dei o primeiro gole na cerveja ela se retirou e encaminhou para próximo do balcão, e por lá permaneceu me fitando por debaixo dos cabelos negros. Assim que terminei a cerveja lhe fiz um novo sinal. Pouco após voltou com uma nova e a meu pedido, inexplicável é certo, com outra dose do uísque: talvez eu e minha vida estivéssemos acostumados com coisas ordinárias – deduzi –.

Ansioso, bebia demasiadamente rápido, e isso me fazia surgir os efeitos que álcool em mim. E a bebida, entornada outra vez num único trago me encorajou a convidá-la para um drink. Surpresa, disse o que não poderia aceitar sem que fosse autorizada pelo homem que estava atrás do balcão. Dito isso, pediu-me alguns instantes e foi ter com um grisalho senhor chinês,. Após cochicharem por alguns segundos pude perceber a sisudez e a relutância do chinês com aquilo que ela lhe dizia. Mais que isso: pude vê-lo menear negativamente a cabeça em desaprovação. Mas o fato dela lhe dar as costas e vir em minha direção significava que ele não fora bem sucedido.
Aquilo me alegrou. E eu não sabia discernir quais os motivos que me impediam de desgrudar os olhos do seu enigmatismo.
Novamente parou em minha frente a sua imponência oriental, e isso me tornava refém dos devaneios. - imaginei possuindo-a em cima duma daquelas mesas - Ao sentar sorriu-me como se fosse eu o imperador e ela a vassala a mercê do seu soberano.

-Posso pedir uma bebida ? – Pediu. Estava na cara que a brincadeira poderia me custar os olhos da cara. Mas para mim havia uma única saída: era pegar ou largar.

-Claro! Sem problemas– Concordei com um sorriso – Eu acabara de fazer a minha escolha.

A garota fez sinal para uma das muitas garçonete que prontamente veio nos atender. Ela anotou os pedidos e retornou com eles. No centro da mesa colocou o seu drink: uma coloração ora se mostrando verde, ora azul. Ela o bebeu com competência enquanto eu deixava o meu fazer arder a alma, novamente. Aquela coisa de indecifrável procedência parecia exercer em mim um efeito quase que alucinógeno, e mesmo não sendo droga, me fazia sentir como fosse.
Bebidas terminadas e eu não me desvencilhava dela e nem do odor do suave perfume de mulher que ela exalava em todo ser.
Comigo, algo inusitado estava acontecendo, afinal eu jamais me interessara ou tivera qualquer “affair” com mulheres de descendência oriental.
Foi então que nos sentindo mais á vontade começamos a conversar. Julia, o seu nome de guerra – Liu Twai, de batismo –. No início, Julia parecia um pouco tímida, porém logo após a 2ª dose mostrou-se mais desinibida, Aí, mais solta falou-me de si e de algumas partes da sua vida: estava com 26 e a 8 anos no Brasil.
Adolescente, Liu Twai, oriunda de um pequeno e provinciano vilarejo ao norte da China, fora negociada por seus pais. De lá, na companhia de um mercador fora levada para Pequim, onde teve que se prostituir à troca de quase nenhum dinheiro. Neste prostíbulo travou conhecimento com um próspero empresário local que dizia manter alguns negócios no Brasil. Outra vez negociada e aqui chegando foi enviada para uma espécie de clube prive, exclusivo para homens de negócios com descendência da terra mãe.
Um pouco mais tarde e ainda numa de suas camas, conheceu senhor Lee Pen Shao, um sessentão apaixonado que acabou por tornar-se o seu amante. Foi assim, outra vez moeda de troca que veio parar nos balcões e mesas do “Osaka Pub”. E a finalidade do bar não era unicamente a de servir bebidas ou entreter as pessoas. Não, esse era somente o pano de fundo. No Osaka havia o agenciamento de prostituição, e todos tinham o seu preço. As garconetes, as strippers, e principalmente a estrela da companhia: a caríssima Liu Twai. Foi com olhos de orgulho que ela me disse que seu preço equivalia ao de 5 garotas de lá. Portanto, ela não era pro bico de qualquer um.
Claro, as confidências de Julia me deixaram incomodado ao ponto dela notar:

-Não se preocupe com o Shao. Aqui, negócios são tratados como negócios – Ela sorriu procurando me tranqüilizar, enquanto por debaixo da mesa acariciava minhas coxas na altura da virilha.

O sombrio senhor Shao percebia que ela deslizava as mãos em minhas pernas. Julia, notando a contrariedade do velhote fez-lhe sinal para que deixasse de ser tão ostensivo. Incomodado, ele foi sentar-se na extremidade oposta do balcão. Vez ou outra ele nos procurava com o olhar. Porém a sua resignação me fez perceber quem comandava as coisas por ali.
Ainda assim me sentia um tanto inquieto, já que sempre fora cismado com os chineses.

-Fique na boa, Sam! – Ele apenas está estranhando porque você é brasileiro – Disse contemplando profundamente os meus olhos.

-Como assim? – Perguntei sem perder o chinês de vista

Ela sorriu.

– É que jamais me relaciono com pessoas de outra nacionalidade. – Respondeu num sussurro como confessasse um segredo – E depois continuou:

-Mas com Sam foi diferente. Sam despertou os olhos de Liu, e os olhos de Liu não costumam sorrir facilmente para sujeitos que não são chineses - Sua confissão me fez sorrir - Foi um dos raros momentos naquela noite em que a preocupação foi derrotada pelo meu ego.

Continuamos a conversar e Julia mandava bem nos drinks, talvez tanto quanto eu.
A sua voz soava doce e ébria, mas seus olhos jamais perdiam a lucidez e o fogo.
Os olhos puxados, os lábios sensuais e os seios que arfavam nervosamente por debaixo da jaqueta militar estavam me deixando excitado. Aos poucos os freqüentadores foram se retirando, e quando demos por conta, às três e dez da madruga só estávamos os três.

-Liu, está na hora de fecharmos – Inquietou-se o senhor Shao, dedilhando nervosamente a madeira do balcão, voltando da outra extremidade do balcão. Julia pareceu se contrariar.

-Shao...feche e vá na frente! Logo mais irei – Comunicou secamente.

-Mas...... – O senhor Shao tentava argumentar, mas as frases que poderiam surtir algum efeito não lhes surgiam.

Ela nada respondeu. O velho e sisudo chinês a olhava resignado e vencido:

- Então....Por favor, não demore, Liu! – Disse, juntando o dinheiro da movimentação noturna e a colocando numa bolsa de couro reforçado.

Liu levantou-se e foi ter com ele e o acompanhou até a porta. Lá, parece que tiveram um pequeno entrevero, pelo tanto que o senhor Shao gesticulava. Todavia, demonstrando quem era quem, ouvimos o som da chave ao ser girada na imponente fechadura. O senhor Shao nos deixou sós. Julia sorria ao retornar. Atravessando o salão foi apagando luz por luz até sobrar uma única no fim do salão. Lá, eu a vi sumir na escuridão Repentinamente após um agudo estampido um potente foco de luz surgiu. E o facho centrou-se na numa longa mesa de um veludo verde. De lá onde estava pude ouvi-la me chamar:

-Venha Sam! Eu te quero – Ela solicitava a minha presença flexionando os dedos de ambas as mãos, num vai-e-vem.

Eu me levantei empunhando a garrafa de cerveja e caminhei em sua direção. Liu me aguardava em pé, escorada na mesa de bilhar.
Ao chegar, ela me abraçou e abruptadamente apertou o seu corpo no meu, excitando-me. No ar o cheiro dos cigarros ainda se mantinha soberano . No centro da mesa o foco se tornava o sol e desnudava sem as imperfeições do tecido verde. A sua boca percorria meu pescoço e seus dedos contornavam-me suavemente. Ela ofegava quando levou as mãos na parte frontal da minha calça e me encontrou latejando. Seus dedos, agora mais ansiosos faziam pressão no ziper da calça. Ouvi o ruído ao ceder e com a braguilha aberta, Julia ajoelhou-se e cuidadosamente resgatou o meu membro e acariciou sua extensão. Assim que o percebeu livre ofegou enquanto volteava a glade com a ponta da língua. Sua boca, felina e em chamas me consumia quando o abocanhou num alucinante vai-e-vem. Delicadamente, enquanto brincava com ele foi se desfazendo da jaqueta. Ao ver a túnica jogada num canto eu pude notar a magnífica exuberância dos seios. Dois lindos orfãos espremidos por um fino sutiã de reandas brancas.
Delicadamente estendi-lhe a mão e a trazendo lentamente a coloquei em pé e depois deslizei os dedos pelos contornos do seu corpo. Excitado, enfiei a mão pela abertura da saia e acariciei suas coxas e o centro da dimuta calcinha - Ela gemia - Sutilmente voltei a mão e pressionei o saia pelos lados e para baixo até que ela, em seus calcanhares me permitiu vislumbrar a calcinha - Fazia parte do lindíssimo conjunto - Ansiosos e apressados ajudamo-nos a nos desvencilhar das nossas roupas que ainda persistiam até estarmos totalmente nus. Julia empurrou com os pés as peças que se encontravam no chão e tolhiam a liberdade de movimentos. Assim que não mais atrapalhavam deitou-se suavemente sobre o veludo, sem perder-me de vista. Magicamente suas coxas foram se separando o foco de luz refletia em seu sexo. Excitado como um leão que presente o gosto do sangue da presa fui ao encontro dele. O peito de Liu arfavam e os seios ganhavam dimensão maior com sua ofegante respiração.
Inclemente e a sentindo molhada eu a penetrei de uma única vez e ela grunhiu de prazer ao cravou as unhas nas minhas costas. Permanecemos copulando como felinos até que lasciva ela virou e deitou-se de bruços. Estendida sobre o veludo, lentamente ela remexia as ancas numa ritual profana e excitante, me convidando a desvendá-la.
Deslumbrado com suas formas e com aquele jogo de sedução eu segui em frente e a penetrei insanamente. Nós gemíamos, sussurrávamos, dizíamos coisas obscenas, intercaladas por frases que ela proferia em chinês, e as quais só ela sabia o significado. Intensamente e cada vez mais a sua bunda subia e descia rapidamente e num presságio que o momento estava próximo. Repentinamente os espasmos, os murmúrios devassos, o retesamento dos corpos e gozo supremo exaurindo nossas forças.

Arfantes, tentávamos nos refazer. Deitados e olhando para cima evitávamos que o foco atingisse nossos rostos. Repletos de silêncio curtíamos os momentos de paz, concedidos às feras fartadas.
Nada falávamos, apenas dois sujeitos estirados sobre o veludo e que se completavam na ausência das palavras.
Repentinamente eu virei para seu lado e fiquei a admira-la. Recíproca, voltou-se para mim e me fez sentir-se se feliz ao me deixar vislumbrar a magia do sorriso e os olhos que agora não ardiam. Foi permitindo que aquele sentimento me penetrasse que pude compreender todo o ciúme do senhor Shao. Talvez, ele mais do que eu seria capaz de tudo por ela Com a delicadeza milenar das orientais ela me beijou a boca e desceu da mesa e num ritual quase sagrado repôs o seu traje. Recoloquei a minha roupa sem tanta cerimônia. Daí, prontos, ela pegou em minha mão e levou-me até o balcão. Gentilmente me fez sentar numa das banquetas em frente a ele enquanto caminhando um pouco mais adentrou na parte interna dele. Atrás dele a proprietária comunicava ao cliente que era chegada a hora de fechar.

-Quanto lhe devo, Julia? – Perguntei retirando a carteira do bolso.
Eu torcia para que me sobrasse ao menos o dinheiro do aluguel.

Ela, curvou-se no balcão e retirou do escaninho a comanda que descriminava a minha conta. Assim que encontrou o meu cupon fez nele algumas anotações.

-Vejamos....3 cervejas, 4 doses de uísque, 3 drinks Hong-Kong. É isso?

Eu tentava imaginar o preço não dos seus préstimos profissionais, e me preocupei - Talvez o meu dinheiro não fosse o suficiente -
Como ela poderia reagir?
Em todo o caso ela esperava a minha confirmação.

-Sim, sim, é isso – Confirmei. Ela retomou o assunto:

- Papai Sam,! Sabia que fez bem para Liu Twai? E como fez bem para Julia, o uísque e as cervejas são por conta da casa. – Disse sorrindo. E continuou:

-Agora....quanto ao ritual de acasalamento com Liu, você gozará de um desconto promocional, desde que prometa uma coisa...

-Sim, o que? – Perguntei ansioso. Ela olhou-me nos olhos e deslizou os dedos pelo meu rosto quando respondeu:

- Papai Sam não pagará nada desde que prometa voltar outras vezes –

Dito isto me entregou a comanda. Olhei no pequeno pedaço de papel e lá havia algo manuscrito em chinês, e que logo abaixo ela traduziu, - “Volte sempre porque Liu Twai te quer” - Um pouco mais abaixo da delicadeza de sua letra havia um número de telefone.

Eu sorri e lhe devolvi carícias nas faces. Era um momento mágico, mas que sabíamos não poder durar.
Certamente eu gostaria de visita-la outras vezes, porém eu deveria calcular os riscos que o velho Shao representava, afinal não podemos prever as reações daqueles que se sentem humilhados, principalmente por amor. Por alguns segundos permaneci com o cupom preso entre os dedos e depois o deslizei para o bolso da jaqueta. Sem nada falarmos nos dirigimos para a porta de saída. Aberta e já lá fora olhamo-nos e sorrimos cúmplices e nos beijamos timidamente. Em seguida ela quebrou a sua esquerda e pouco mais adiante entrou num táxi. Eu esperei que ele partisse e então virei para minha direita. Olhei no relógio e ele marcava 4:25 da manhã. Caminhando reto eu me segui na direção do ponto de ônibus, já que em breve eles voltavam a circular. Chegando, me apoiei no ponto e tocando ritimadamente o calcanhar no centro da madeira pintada eu ouvia o som oco que ressoava no silêncio da noite. Persisti nas estocadas por algum tempo até me desinteressar delas. O ar de uma madrugada ainda mais gélida era exalado em meus pulmões e isto me causava uma sensação boa, a gratidão pelo presente que a noite me dera .
Nada havia do que eu pudesse me queixar: eu bebera num bar chinês que homenageava o Japão. Aliás, não era um bar qualquer, não.
Era um pub, não um autêntico, londrino, mas chinês e num lugar distante na cidade de São Paulo. E o insólito: freqüentado por descendentes do oriente, mas admiradores dos negros cantores americanos

-À Ray Charles! – Brindei ao esticar o braço para o ônibus que chegara.

" Georgia on my mind" - Em meu peito todas as canções de guerra foram entoadas. Eu deixava para trás um olhar de fogo e as magníficas pernas de Liu. Provavelmente naquele momento Julia deveria estar exausta sob mantas de cetim. Sábia que era, milenar nas atitudes e na gratidão, naquele momento deveria estar deixando-se bolinar pelo velho Shao, como lhe conferindo um prêmio de consolação. Certamente, por sua garota de Beijim o velho chinês teria sido capaz de enfrentar os tanques de Deng Xiaoping, na Praça da Paz Celestial. Anti-herói, eu não teria me atrevevido a tanto. Mas isso era passado, só uma amarga recordação de 1989 e que agora fazia mais parte da história que das minhas preocupações.
Subi os seus degraus e seguindo pelo corredor inspecionei cada um dos rosto dos que viajavam nele. Passando por uma insinuante jovem de olhos rasgados eu tentei vislumbrar o rosto de Julia – impossível, havia o sorriso, mas não as labaredas – Eu me perguntei o por que procura - Caminhando mais alguns metros paguei minha passagem e fui me acomodar na última fileira de bancos. O frio não cedia e o silêncio só era entrecortado pelo ruído do motor que se tornava mais agudo conforme a marcha engrenada. A cada ponto que ele parava mais e mais pessoas entravam. Ao deixarmos Xangaitow outras raças foram misturadas numa miscelânea dos mais variados credos e cores.
Encolhido próximo à janela eu percebia o trânsito ficar mais denso enquanto o sono me pegava nas pálpebras pesadas –
Apesar da sonolência eu ansiava chegar em casa – Havia um monte de vantagens que teriam de ser contadas para Yashin. –
“Será que dessa vez ele se orgulhará de mim?” – Foi a última pergunta que me fiz antes do sono fazer pender minha cabeça e apoiá-la no ombro de uma senhora que viajava ao meu lado.
Incomodada ela se remexeu e isso me despertou. Olhei para o relógio: Seis e dez da manhã -
Procurando não mais incomodá-la virei o corpo para o lado da vidraça e voltei a dormir - O trabalho das oito me aguardava -