segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Porfírio - Um detetive dos diabos

Eram precisamente vinte e duas horas e trinta minutos quando parei debaixo de um poste. Estávamos em pleno inverno e a luz ofuscada por um ainda discreto nevoeiro dava certa notoriedade ao meu terno de corte panamenho. Certamente para mim a noite é e sempre será uma linda mulher que adormece e se acordada com um beijo, e eu estava ali priorizando trabalho que me fazia mergulhar em seus seios, e eu e os meus olhos de lince permanecíamos atentos e.à disposição de causas boas ou ruins, não importava, desde que resultasse em algum dinheiro. E após cada serviço executado o comum era verme-me num bar e encostar o umbigo no balcão e beber. Depois e de cara cheia tentava apenas não morrer espatifado num poste ao deslizar os pneus do carro nas esburacadas ruas de Sampa. 
Enfim, eu gostava dos odores da madrugada.e de sentir o cheiro do asfalto molhado numa cidade que necessitava ser limpa, enquanto, na mesma hora a maioria dos mortais aguardava em seus leitos a alarme dos despertadores nas primeiras horas da manhã. E agora, ali plantado com a minha garota de vapores gélidos e olhar desestrelado  jogava a bituca do meu cigarro na calçada quando repentinamente surgem três ou quatro prostitutas que, provavelmente faziam ponto nas imediações. Elas tagarelavam e riam alto quando uma de voz estridente me propõe:


-E aê, tiozinho, tas afim dum programinha legal?

Olhei para a criatura e ela não era de se jogar fora, porém eu não estava ali para trepar, mas sim para dar cabo às minhas responsabilidades, apesar do tesão que me causou aquelas pernas otimamente torneadas.  Pigarrei, olhei-a com alguma simpatia, mas acenei negativamente a cabeça, porém sem perder do olhar a janela do 3° andar do prédio em frente.
E sobre estar ali às vezes me perguntava meus motivos para abraçar aquela profissão, ainda mais porque ser detetive é prostituir-se diariamente tanto quanto a puta de coxas grossas. Sobre essa questão digo apenas que jamais desprezei a profissão de qualquer pessoa, mas nunca me dobrei à falsidade, já que muitos não se dão aquilo me que dou, a mão à palmatória, afinal entendia que poderiam sentir repugnância pelo que eu era; um safado alcaguete. E quando você se torna um dedo duro profissional perde um pouco do amor próprio e somatiza para si a antipatia da maioria das pessoas, pois qual de nós gostaria de ter sua privacidade vasculhada?

Bem, gostassem ou não era essa a minha profissão, e se detetive sou a culpa cabe a mim, pois sempre viverá em minha memória os meus tempos de juventude e os insistentes apelos dos meus velhos; “Filho, estude! -  Eles rogavam. Entretanto jamais dei ouvidos a eles, e eles queriam apenas que eu fosse um bom advogado. E talvez essa urgência fosse a do meu pai, hoje um humilde octogenário aposentado. Certamente ele pretendeu realizar em mim aquilo que não conseguiu ao cursar até o 2° do Direito, abandonando os estudos para sustentar irmãos em fase escolar e a mãe que acabara de enviuvar, isso quando era noivo de mamãe. Lógico, tal qual ele no começo tentei saciar suas vontades ao concluir os dois primeiros semestres numa faculdade privada. E sobre ela recordo-me do correr daquele ano, e lá estando aos poucos fui percebendo que não era a minha intenção tornar-me um homem das leis, ser o justo da balança, pois as aptidões para um bom advogado jamais tive. E assim concluí ao notar que o que me prendia naqueles bancos eram aquelas garotas com sorrisos malandros e toda a viabilidade de algumas trepadas gratuitas.

Bem, e já que estou aqui num jogo da verdade e de confessar a  mea-culpa é bom que eu seja mais íntegro e revele duas das principais verdades; A primeira é que à época o meu grande sonho foi o de ser motorista de caminhão. Claro, podem achar engraçado, mas eu me imaginava na boleia daqueles brutamontes como os Mercedes ou os FNM. E a segunda é que os dois semestres na faculdade trazem-me ótimas lembranças, notadamente as festas patrocinadas pelos filhinhos de papai que lá estudavam. Festas que sempre contavam com a presença das garotas do curso e outras levadas dos inferninhos que frequentavam. Festas celebradas em bairros nobres e em mansões de jardins suntuosos. E ali, entre brados da mocidade rolava whisky do bom, 25 anos, além de farta putaria. E uma coisa sempre levava a outra, então nos embebedávamos e semi desnudos nadávamos em suas piscinas de 10 por 15, para ao  fim ser as mesmas sacanagens de sempre, inclusive algumas trepadas relâmpago que, sem qualquer cerimônia se expunham nos gramados, banheiros de empregados,  ou, no melhor das hipóteses nos bancos traseiros dos carrões estacionados em suas garagens.

Porém este universo de devassidão não foi o bastante para segurar-me lá, e eu, obrigado a trabalhar para manter os estudos, e o pior, ganhando pouco, acabei por me estressar e mandar tudo e a todos à puta que pariu. E ao abandonar a faculdade, jovem e inexperiente, houve a certeza que me livrara de toda futilidade, além do massacre psicológico que me era imposto por  aqueles presunçosos professores.
Enfim, o que não faço é chorar o leite derramado, e eu exerço apenas a minha profissão,  e com ela me defendendo de unhas e dentes, pois sempre haverá gente melhor em serviços piores que o meu. Bem, deixando as lembranças de lado aguardo por mais 40 minutos com os olhos grudados na janela do 3° andar sem que surja qualquer novidade. Eu estava cansado, as putas também pareciam exaustas, e as minhas pernas doíam e estavam num estágio de dormência, enquanto elas, coitadas, arrastavam seus saltos no asfalto, acenando ou correndo atrás de cada todo carro que passava. Não demorou muito, e elas acabaram por sentar-se numa mureta do terreno da esquina.
Pelo meu lado as pernas formigavam causando-me incômodo, portanto bati vigorosamente as solas dos sapatos na calçada, e tão logo as penas se sentiram donas de si próprias caminhei uns 30 metros até o boteco mais próximo. Entrando pude sentir o cheiro a coisa podre vindo pelo corredor, certamente do banheiro que nele se findava. Olhei bem para as dependências do boteco, e ali numa das três mesas existentes uma negra bebia algo de uma forte coloração ferrugem, talvez “Fogo Paulista” uma bebida rampeira e de absurdo teor alcoólico. Aliás, não só a negra bebia, mas também os dois sujeitos que e sentavam ao seu lado.  Acomodei-me no balcão da frente sem descuidar-me da  janela do apartamento, pois a visão dali era excelente.
Fiquei sambando os dedos no tampo do balcão imitativo dum o mármore italiano enquanto espantava o pouco que sobrara da dormência das pernas. Eu olhava para o sujeito atrás do balcão.

-Por favor meu chapa, quero um conhaque, e meia cerveja quente e outra meia da gelada –  Pedi - O dono do bar me olha de forma estranha. Firmo os olhos em sua figura e ele parece carregar nos traços algo da herança portuguesa, fato que confirmo ao seu comentário inoportuno.

-Ai Jesus! Será que é mais um gajo para encher o rabo de pinga e me torrar as paciências? –  Ele reclamou  justificando a sua preocupação apontando o indicador para a crioula e para os dois sujeitos, assim como me dissesse: "Olhe a merda aí".  Evidente, mesmo que bêbada a mulher se ligava nas atitudes do português, e claramente se sentiu ofendida.

-Porra! Do que você tá falando portuga? Por acaso num to pagando a despesa? – Retruca aborrecida e  escandalosa.  E o seu protesto foi o suficiente para um dos sujeitos também se sentir  golpeado.

-Isso mesmo, Lustosa! A dama está pagando a conta, e a sua obrigação é servir a gente, e não ficar aí com esse papo furado! Um deles devolve. Foi o necessário para que o outro companheiro de copo criasse coragem e também se manifestasse:

-É isso mesmo, Lutosa! Está tudo lá no Código do Consumidor!  –  Apelou o segundo, inclusive o que estava em piores condições. que me obrigou a apurar os ouvidos  para entender as suas  falas embaralhadas. 

A fala enrolada do sujeito me obrigou a apurar ou ouvidos. Pensei por segundos sobre a veemência bêbada e me questionei; Será que o ouvi direito? Foi mesmo o Código de Defesa do Consumidor que o bebum alardeou? –  Puta que pariu! Era, não havia dúvida, pois mesmo com a dificuldade fora exatamente o que ele dissera.

-Código do consumidor é a puta que te pariu! - Vociferou o português. Ele estava irado, pois senti no timbre da sua voz.

Fiquei olhando para a cena e tive vontade de gargalhar; o bebum só podia estar doido, ainda mais ao enfrentar aquele português, nada mais e nada menos que fera de seus 120 quilos distribuídos em provável metro e oitenta e cinco de estatura  – Entretanto eu nada tinha com aquilo, e assim segurei a minha onda.  Todavia, o portuga que de bobo nada tinha, afinal, e aliado à sua experiente de balcão sabia e muito bem dos levantes e das malandragens dos bêbados, e tanto que sumiu das minhas vistas ao procurar algo debaixo do balcão.

-Ó aqui o bebunzada do carálios! Vocês vão querer encarar? – Berrou para eles surgindo com um daqueles cassetetes de borracha maciça, provavelmente auferido da Guarda Municipal, afinal, esses malacos arrumam tudo e por todos os preço.

Os bebuns, assustados olharam para ele e nada mais protestaram. Também olhei e achei a sua ameaça física algo desproporcional, mas nada comentei, pois a minha vida já era demasiadamente problemática  para arrumar novas aporrinhações. Com as bebidas servidas matei o conhaque numa tragada só. Depois o homem abriu ambas as cervejas e eu intercalava os goles entre a quente e a fria. Na extensão do balcão outras três ou quatro pessoas tragavam suas bebidas e me olhavam curiosos. Eu sabia que o meu jeito de beber chamava a atenção das pessoas, já que era um estranho ritual aquele que eu praticava. Óbvio, e isso não era ferramenta do meu ofício, pois o que menos um detetive necessita é que prestem atenção em sua estampa. Não, não foi essa a minha intenção, contrário, pois seria eu a me ater deveria aos mínimos detalhes de um flagrante, e nisso podia garantir, era bom e nada escapava aos meus olhos de lince.
Logo, fiquei por ali terminando as minha as bebidas enquanto ouvia as conversas fiadas daqueles três bebuns. E lá vinham eles, o que parecia estar em situação melhor:

-Hei, sabiam que noutro dia fui no enterro dum amigo meu? - Ele pergunta para a negra e o outro, e eles olham perplexo para ele. E o bêbado continua: - Sim, fui eu e um amigo meu, bebum também.Aliás, éramos todos bebuns, até o morto era, e eu nem sabia que ele tinha morrido, e assim que chegamos lá, olhei pra ele no caixão, e a mulher dele chorava muito. Perguntei para ela de que ele tinha morrido e a mulher dele apenas chorava, chorava, e aí respondeu “ Olha moço, ele morreu como um passarinho” - A crioula e o amigo ouviam a narrativa espantados, até que ela, curiosa,  perguntou num atropelo de palavras - "Como assim; o seu amigo morreu como passarinho? – Sim, definitivamente a negra mergulhara de cabeça naquela louca história de velório, tanto que deixou escapar da mesa o cotovelo direito que lhe sustentava o rosto.  O narrador da história cinematograficamente exprimia um ar condoído quando lhe respondeu: - Bem, nem eu e nem meu amigo entendemos  muito bem aquela história de se morrer como passarinho, portanto ficamos por lá olhando pro defunto até que surgiu do nada um outro amigo nosso,  bebum também, e nos reconhecendo perguntou para o amigo que estava ao meu lado: “Sebastião, que coisa, que notícia horrível! Por acaso você sabe de que morreu o Odorico?” – Bem, como a pergunta não foi feita para mim achei melhor ficar quietinho, e meu amigo ficou lá matutando o que responder  para o outro, até que se saiu com algo que lhe pareceu lógico; "Morreu duma estilingada!"  – Sim! acreditem amigos, foi isso mesmo o que ele respondeu. – A negra o olhava perplexa, o outro também, foi então que o narrador da história caiu na mais profunda gargalhada. E assim eles perceberam que estavam sendo sacaneados

-Duma estilingada é, seu filho da puta? Duma estilingada vai morrer tu, tá saben....  –  A negra foi interrompida por um grave barulho de algo que se chocava contra uma superfície lisa.

-Cês vão encarar? - Era o portuga ressurgindo com o cassetete em punho.

 Foi o suficiente para os três voltarem para as suas bebidas, e em silêncio. Depois olharam uns para os outros, e seus olhares eram tão marotos que não impossível conterem o riso, risos que logo após se transformaram em gargalhada, e para desespero do português:.

-Ai carálios, acho que  devo merecer! – Reclamou devolvendo o cassetete para o lugar de origem.

Eu ri, discretamente, era uma piada manjada, de bêbado, mas foi engraçado a naturalidade de ver uma piada de bêbado ser contada para outros bêbados. Peço mais uma cerveja e percebo as luzes da janela do terceiro andar se acenderem. Pouco adiantou a safada ter saído de casa com sua naturalidade morena e seus cabelos acastanhados, ter trocado de carro no estacionamento, e agora estar loira e fodendo com um zé mané num prédio de apartamentos de classe média baixa, e que nem elevador possuía. Eu não era aquilo que poderiam rotular dum Zé Arruela qualquer, e ela que fosse enganar outros otários, mas não eu, portanto corro para o prédio e subo os degraus pulando-os de dois em dois, e me escondo atrás de uma das pequenas coluna que dividiam todos os oito apartamentos de cada andar andar. Permaneci atento, e um pouco mais ouço vozes que brincam com a outra, e barulhos de saltos de sapatos que descem do pavimento superior. Uau! Foi então que a pude ver direito, carne e osso, aliás, pecaminosamente mais carne que osso. Pessoalmente o deslumbramento loiro da mulher resplandeceu mesmo que falsificado, porém o fato de estar tingida parecia deixar suas pernas mais apetitosas, ainda mais na posse daquele rabo que faria qualquer demônio gemer. Sem que me vissem, e antes que alcançassem o primeiro pavimento eu registrei o fato na minha ótima Polaroid comprada numa feira de segunda mão, isso no ano de 1975.

Assim que saíram pelo andar térreo desci e rumei diretamente para o bar. Já estava postado na porta do boteco quando os vi se separarem com um beijo e eles se dividiram e ela rumou para o seu automóvel estacionado um pouco mais adiante do cruzamento. Postada à frente dele a mulher abriu a porta e fez menção de entrar, no entanto não entrou. Em seguida fechou a porta, acionou o alarme e atravessou a rua vindo na direção do bar. Por questões da segurança do caso dei as costas para a rua, pois o que mais preza no verdadeiro detetive é o seu rosto jamais ser conhecido pelo objeto da investigação, já que obrigatoriamente ela teria que passar por mim. Repentinamente uma fragrância de um suave perfume feminino ganha o espaço em que estava, e sinto alguém tocar os meus ombros. Olho e lá está ela; a mágica loira dona do rabo descomunal

- Porfírio, que porra de detetive é você? - Ela me ri zombeteira

Eu nada disse. Os bêbados nos olham assustados, o portuga cola os cotovelos no tampo do balcão, e todos prestam atenção em nós. Não havia qualquer saída, e ela me fez sentir constrangido. Novamente os seus olhos faiscavam como os curtos circuitos que incendiam residências e estabelecimentos comerciais. Ela continua me olhando, e então joga os seus cabelos para trás e seus lábios carnudos e tingidos num batom grená se abrem devoradores:

-Porfírio, toma lá. É isso é para você!  Ah...e mande um beijo para a Aurélia! – Diz numa expressão  de quem sabe das coisas do mundo.

Um beijo para Aurélia? - Pergunto-me incrédulo. Caracoles! Eu estava amasiado com Aurélia há menos de três dias! Como ela poderia ter sabido?

Bem...depois abriu a sua bolsa de couro de crocodilo australiano e dentro dela retirou 8.000 pratas, as quais colocou em minhas mãos. Aliás, o valor que ela me dava correspondia à quase duas vezes e meia o preço que o seu marido me contratara.

-Entendeu tudo mesmo, Senhor Porfírio? – Questionou num induzido sorriso biscate – E agora ouça-me com atenção – Ela continuou ao chamar-me mais próximo. Então sussurrou para que os curiosos da mesa não a ouvissem; -Agora nós vamos inverter o jogo e o meu marido será a caça, e você o seu caçador. Há coisas importantes que quero que descubra sobre ele, e te aviso; essas coisas valem uma boa grana. Portanto senhor Porfírio, considere-se contratado, já que jamais levantaria suspeita. - Finalizou

-Sim, entendi tudo e muito bem minha senhora! Conte comigo, um criado ao seu dispor– Respondi da mesma forma que Humprey Bogart  faria, algo no estilo e olhares dos anos 50, truque que sempre causou algum efeito.

-Ah...E por favor, a Polaroid de 1975 agora é minha e fica comigo. Ah, claro, as fotos também, pois estão inclusas no preço – Disse-me ao retirar a mochila das minhas costas, lugar onde eu guardava a máquina Porém ela ainda não tinha terminado - E outra coisa Porfírio...Pare de me olhar desse jeito, já que não há nada mais cafona que este seu olhar! Modernize-se, homem! Há tantos caras interessantes por aí, Tarantino, Brad Pitt, Banderas, Pacino, De Niro, pô! Mas..Humprey Bogart não, pelo amor de Deus! – Disse-me num tom de gozação. Caracas! Aquela mulher devia ter parte com o diabo - Imaginei.

-E agora...finalizando... Aguarde minhas instruções, pois em hora apropriada farei contato com você - Sentenciou num sorriso que não mostrava a perfeição dos seus dentes. Em seguida me passou seu cartão de visita e lá constava o celular.

Poxa, nada mal! Eu acabara de arrumar uma nova patroa, e se os espiões mais competentes desse planeta f fizeram jogo duplo, triplo, quádruplo, por que um mero detetive não faria? Olhamo-nos por mais alguns instantes, e ela chamou-me mais intimamente ainda como se quisesse dizer-me algo no ouvido. Talvez o meu olhar de Humprey Bogart estivesse surtindo efeitos retardados.

-Porfírio, sinceramente, o melhor para você teria sido o motorista de caminhão, pois seria um péssimo advogado tanto quanto o sofrível detetive  que é. O diabo é que tu está acima de qualquer suspeita, logo, você é imprescindível –

Como? Motorista de caminhão?  - Por Jesus Cristo! - Sim, foi o que ela falou. Definitivamente, aquela mulher só podia ser coisa do mal, pois jamais confessei a alguém que meu sonho foi o de estar na boleia dum colossal  FNM. 
Bem, ela falava e a sua voz soava como veludo, e após escancarar a minha fantasia sorriu dum jeito ordinário, desses de quem sabe que está com dois pássaros voadores na mão.
Em seguida deu-me as costas e eu a vi rebolar aquelas nádegas de outra galáxia, e elas teriam enfeitiçado o próprio John Kennedy, sem dúvida. Pouco mais adiante ela parou em frente da porta do seu  Chevrolet Ômega importado, acenou-me com a mão, entrou e partiu.


Copirraiti16Dez2013
Véio China©

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Olhos de Vidro.

Eu tive tudo para ser feliz, aliás, em termos até que fui, entretanto, não mais estou aqui. Lembro-me daquele tempo e do apartamento, e de que nele havia um grande quarto, e na sala o conforto dum desgastado sofá de couro, e atrás dele uma ensolarada janela de vidros largos, onde em alguns dias do mês eu aproveitava os raios e banhava os meus pelos. O edifício em que morávamos deveria ter, talvez, uns 30 anos de vida, e dentro daquele dormitório com as pinturas descascadas jamais me foi dado o castigo da solidão, pois ao meu lado tinha amigos como o Pateta e o manso Leão da Montanha, personas inseparáveis e que sempre me foram gratas. Provavelmente estejam pensando a confusão que deveria existir entre tão distintas figuras, porém garanto; jamais ocorreram problemas de ordem física entre o Leão e eu, assim como nunca me favoreci das garras afiadas, mesmo que plásticas, para cravá-las nos fundilhos das calças do risonho Pateta, mesmo que eu o estivesse incomodando. Assim posto, é verdadeiro o quanto vivianos pacificamente e numa camaradagem respeitosa, e acima de tudo, engraçada. Contudo é bom frisar que não estávamos ali gratuitamente, arrematados que fôramos numa loja de brinquedos usados, ali na rua 25 de Março, em pleno pulmão de São Paulo.
E hoje,  passados pouco mais de 10 anos ainda se mantém em meu espírito a lembrança do dia que aquele senhor de óculos escuros nos comprou. Talvez à época ele já estivesse beirando a casa dos 50, e ele entrou na loja e nos viu sentados numa empoeirada prateleira de uma das vitrinas internas.

- Garota, quanto estão pedindo por esse botafoguense? –  Ele perguntou para a vendedora apontando o dedo para mim.

Talvez não se apercebera, mas eu era um Urso Panda, e não um jogador de futebol, e só um tempo mais tarde é que fui a saber que o termo "botafoguense" motivou-se na alva estrela solitária que trazia estampada no meio do meu .peito.

-Este urso está saindo por 20 reais, meu senhor! – Foi a gentil resposta da moça.

-Que merda! 20 reais por um bicho de pelúcia amorfanhado e de segunda-mão? – Grosseiramente o sujeito devolveu. Ela o olhou surpresa, pois algo dizia que poderia estar à frente dum legítimo chato de galochas.

Os seus maus modos e o achincalhe com a minha aparência contribuíram para me deixar pensativo, pois não há nada pior para um urso de pelos mofados saber por boca de outra pessoa que se está a caminho do velho e amorfanhado. Olhei para o sujeito com certa revolta, e meu senso de auto-preservação passou a estudá-lo, minucioso, linha por linha do seu corpo; Estava lá e era evidente o enrugamento da pele, alguns pés de galinha, os cabelos em franco processo grisalho, além da baixa estatura e um indisfarçável grau de obesidade. Claro, a inspeção me confortou, pois  seria do meu direito e faria justiça se lhe devolvesse, não os mesmos, mas predicados piores. No entanto sabia que seria perda de tempo, afinal, os ursos de pelúcias não falam, apenas pensam. Em seguida ele olhou para outros bichos de pelúcia que me ladeavam, e meneou negativamente a cabeça. Os seus passos iam e vinham, ansiosos; talvez ainda não tivesse achado aquilo procurava.

-Ah! E esse Leão? E o Pateta. Qual é o preço? – Perguntou lacônico ao notá-los na prateleira abaixo. Antes de responder a moça ainda tentou cativá-lo:

-Por favor senhor, poderia me dizer seu nome? – Óbvio, a sua intenção era de quebrar o gelo, suavizar as riscas daquela testa franzida. O sujeito a olhou de baixo à cima, e sisudamente respondeu.

-Mocinha, não estou aqui para que saiba o meu nome, mas apenas para comprar essa coisa! – Protestou numa tonalidade moderada batendo a ponta do indicador no vidro, e em minha direção.  

Definitivamente olhei para o homem, e ele não me parecia uma dessas pessoas que envelhecem à bordo das frases compreensíveis ou gentis. Diante da sua rudeza a moça apenas desviou-se do seu olhar furtando o sorriso que  instantes antes impregnava os seus lábios. Assim,  deu-lhe apenas a ciência dos valores:

-O leão está por 25 reais, e o Pateta, 30. – Ele ouviu calado e persistiu com o olhar no par de pelúcias. Após alguma avaliação cravou os olhos em mim e decidiu:

-Levarei os três.  

Sim! Não havia como negar, o fato de ter nos comprado me feriu em particular, pois me senti  discriminado, já que não coube ao Leão e o Pateta qualquer fator de depreciação, inclusive nenhuma pechincha no preço. Refleti sobre aquilo por instantes e percebi algo novo em minha natureza; a vaidade.Talvez Freud explicasse, o que não impediu que durante algum tempo eu sentisse  um certo grau de inferioridade com referência a eles, entretanto,  pouco mais tarde o fato foi esquecido. Mas, retomando o momento da compra recordo que o homem pegou a sua nota de compra, e dirigindo-se ao caixa quitou os 85 reais por três vidas de pelúcia. A vendedora ainda pareceu preocupada quando o sujeito disse que gostaria de dar uma palavra com o gerente.  Receosa ela apontou para o fundo da loja onde um senhor de aparência severa conferia algumas mercadorias.  Lembro também de ter ouvido o lamento da vendedora ao confidenciar para a colega de serviço tão logo o homem ter se distanciado:

-Poxa vida, Antonieta, hoje não é mesmo o meu dia de sorte. Fiz tudo para atendê-lo com delicadeza, e lá está o homem falando com o chefe. Certamente deve estar se queixando do meu atendimento. – Balbuciou para a outra num tom de desânimo.

Evidente, talvez estivesse certa, pois ela olhava para eles e percebia que o sujeito gesticulava ostensivamente para o seu superior. Depois, e ainda com os mesmos olhos ansiosos viu o cliente retornar e passar por ela meneando discretamente a cabeça. Assim, e com os passos apressados foi que o homem saiu da loja levando numa grande sacola plástica todos nós, seus futuros amigos do nada. E tão logo desapareceu pela porta o gerente chamou a funcionária, e ela foi ter com ele esperando o pior, talvez a demissão.

-Marta, o senhor que acabou de sair veio falar sobre você, e disse que ficou satisfeito com o seu atendimento. Parabéns, continue assim! – Disse a ela num tom de comemoração. A garota abriu um sorriso de surpresa e feliz voltou para a sua função.

Foi ali naquele momento que reparei também que o sujeito surfava a vida nos mares dos enfrentamentos e contradições. E esta era a sua marca, nada mais que linha mestra do seu perfil, pois há anos convivi com ele, e assim sempre foi, e assim sempre seria assim.
Agora, deixemos o passado atrás das velhas linhas do horizonte e passemos a falar das contemporaneidades que vivenciei ao lado dele. E começando vou contar-lhes algo que ainda não sabem; O meu verdadeiro nome foi dado por ele - “Doutor Panda”  - E assim me batizou por sempre me carregar pelos braços e  levar-me ao seu quarto afim que eu escutasse as suas histórias. Por motivos que jamais poderia elucidar, ele se apegou a mim, deixando de lado os meus amigos. Talvez fosse carência, essa carência dependente de atenções, essa que faz algumas pessoas, principalmente as solitárias, a agarrarem-se a algo. Portanto será comum vermos muitas dessas pessoas tratando os seus cães, gatos, e outros animais menos domesticáveis como se fossem membros do seu clã. Não que a comparação me seja pertinente, mas o meu dono houve por bem eleger-me como o seu bichinho de estimação, afinal, eu era o seu bom psicanalista, o analista que ele precisa, um urso de pelúcia isento de voz, mas com um  bom par de peludas orelhas para escutá-lo.

Ele estava muito dependente de mim quanto tivemos a nossa última conversa, aliás, a mais importante delas. E por ironia ela ocorreu numa noite onde me foi concedido e retirado o dom da vida. Ah vida...e por falar nela sempre a vida se reverenciará às pinceladas do tempo, para alguns, muito longa, para outros, essencialmente breve. Sim,  não a concebo assim como vocês; carne, pele, ossos e deslocamentos, já que a vida nada mais é que movimento e decisão. E decisão foi o que esteve  presentes naquela noite em que chegou chapado de bebida e pegou-me pelo braço e fomos para o  seu quarto. Ali, deitou-se colocando-me sentado em sua barriga. Ele estava muito mal, nunca o vi tão devastado.

-Porra! Por que você não fala comigo, Doutor Panda? Estava irritado e se embaralhava com as palavras.

Óbvio, no momento eu entraria numa fria ao reafirmar, e talvez pela centésima vez que, ursos de pelúcias jamais falam, mas, apenas pensam. Portanto fiquei olhando para ele, assim como também fizeram o da Montanha e o Pateta, ambos sentados à estante bem defronte da sua cama.

-Porque você está me olhando com essa cara de idiota? – Inquiriu ao olhar para a mobília e dar de cara com o amigo do Mickey.

Pateta persistiu com aquela sua cara de bobo e divertido. Depois olhou para mim com os olhares que só os brinquedos entendem, pois mesmo a resignação em seu olhar não evitava que eu captasse a bondade em sua alma, apesar de vocês jamais suporem que bichos de pelúcia possam levar uma. Sem respostas e ainda irritado, tirou-me de sua barriga, e colocando-me de lado levantou-se. De pé a sua coordenação era quase nula, mas mesmo assim pousou os olhos no Leão da Montanha e fez algumas micagens para ele. A relação desses dois sempre foi estranha, assim, como se um não confiasse no outro. Então para finalizar o show apenas rodopiou o corpo ébrio e obeso para o lado direito na direção onde estava o Leão, e exclamou:

-Saída pela esquerda! –

O tombo foi inevitável, e foi muito engraçado ver o velhote perder o equilíbrio e estatelar-se ao chão, arremessando o par de lentes escuras para debaixo da estante. Constrangido pelo tombo a lamúria foi inevitável:

-Que merda! Esse leão não serve pra porra nenhuma -Após, e com algum esforço levantou-se apoiando a mão direita na estante.

Lá da cama fiquei olhando para ele, e sinceramente nem sempre foi assim. Porém, com o passar dos anos algo foi se quebrando dentro dele, talvez a esperança, ou mesmo, o encanto. Recordo que logo que viemos morar aqui era comum ver algumas garotas zanzando pela casa. Muitas vezes eu as ouvi insistes, dedo na campainha, querendo ter com o escritor. Sim, não também não lhes contei; Ele era um escritor, autor de quase nenhum sucesso, é verdade, um desses sujeitos que escrevem sobre histórias sórdidas, coisas dos subterrâneos existenciais, e lido, principalmente, por alguns garotos desajustados, geralmente, universitários. Entretanto, por vezes a sua escrita tentava ser divertida, sarcástica, e isso chamava a atenção das pessoas, principalmente das garotas que o imaginavam um Che Guevara das letras. Todavia, muitas vieram e transitaram por sua vida, porém, nenhuma ficou. E foi no intervalo dessas carências que ele se apegou a mim. Talvez porque eu fosse o único a olhá-lo de forma única, penetrante, como se eu pudesse ler as entrelinhas dos seus pensamentos. Foi exatamente naquela noite de muito álcool que insistiu o seu olhar nos meus olhos de vidro:

-Seu filho da puta, ainda espero a tua resposta – E eu não pude fazer a não ser saber das suas angústias.

Depois de algum tempo, desistiu de mim e foi para a cozinha e voltou com um enorme copo de vodca.  Evidente, e o que já não estava bom, tinha tudo para piorar miseravelmente. Por meu lado, fazia de tudo para conter o riso, pois mesmo que não me ouvisse rir, a minha consciência me incriminaria, pois os bêbados não merecem zombarias, mas, comiseração.
E esse eu risse, certamente o meu riso estaria concentrado nos contrastes de suas pernas, onde algumas veias em alto relevo e duma coloração azul esmaecida lembravam as rotas de assalto entre o México e a terra do Tio Sam. Porém o mais engraçado não ficava por conta das pernas azuladas e flácidas, mas sim objetivava a sua cueca samba-canção verde-limão com bolinhas vermelhas. Aliás, ele tinha outras cuecas divertidas, como uma num tom azul-bebê com triângulos alaranjados, e outra num vermelho vivo, onde sobressaiam algumas nuvens brancas e um abrasador sol num tom amarelado. Todavia ele não abria mão das suas campeãs, e elas me divertiam a valer; uma, estampava o rosto e os seios de Brigitte Bardot. Para quem não sabe, ela era francesa, deusa nas telas dos cinemas nos anos 60. E a outra? Bem, a outra era ridícula, pois em azul pavão levava na frente a gravura dum peru, onde acima líamos “Glu Glu Glu” 

Enfim...para mim sempre foi normal aquele festival de aberrações, portanto olhei-o ao chegar no quarto com o copo de bebida na mão. Ele sorveu um longo gole, descansou o copo na mesinha de cabeceira e novamente ele se deitou e me colocou em sua barriga.  Definitivamente, naquela noite algo o incomodava terrivelmente:

-Vamos, Doutor Panda! Não desista de mim. Aqui estamos apenas eu e você, e talvez por ser inexperiente não saiba que na vida tudo é possível. A vida é repleta de mentiras, verdades. Há o feio e o bonito, sem esquecermos a água e o fogo. Mas...será que posso ser sincero com você? – Ele inquiriu.

Olhei pare ele, e dessa vez o sentia conflitante. Não era apenas o seu estado alcoólico, pois com aquele eu estava acostumado. Eu o percebia oposto a ele mesmo, assim como se no seu olhar nada existisse, como se a esperança estivesse a nado e contrária a correnteza. E as minhas impressões se confirmaram diante da sua quase súplica:

-Vamos Doutor Panda. Diga para mim por onde anda essa tal felicidade? Por acaso ela gosta de nos pregar peças? Será que ela se sente menos infeliz ao esconder-se de nós? – Ele insistia. 

Sua aparência estava péssima, e ele transpirava muito, e a melancolia era tanta que, se o escritor não houvesse morrido há séculos seria capaz de jurar que estava diante do próprio Shakespeare.
Bem, tanto quanto o “Ser ou não Ser” aquela questão sobre a felicidade me era difícil, pois para mim ela se resumia pouca, pois aprendi a me contentar com quase nada, com coisas tolas, mas que significavam muito para mim, assim como poder sentar ao sofá e jogar conversa fora com aqueles dois. Não, minha conclusão não era queixa, mesmo que, pouco ou quase nada tivesse aprendido com eles, mas levava a gratidão nos sorrisos límpidos do Pateta, desses calmos, serenos, e que jamais verão o lado ruim das coisas, ou mesmo que, vendo, jamais o admitirão. Quanto ao velho Leão da Montanha, era apenas zero, não havia as garras e nem os rugidos, mas apenas a melancólica nostalgia, a saudades dos tempos tenros, duma era que lhe foi dado a majestade, um cravar de garras e o fincar dos dentes.

E pensando nesses fatos por alguns instantes fiquei imaginando que talvez ocorria ao velho algo muito próximo da sina do Leão. Porém sempre é bom dividir responsabilidades, e também era necessário que meu dono assumisse as suas culpas, já que existiram boas mulheres na sua trajetória. Obviamente não estou me referindo aquelas garotas que chegavam chapadas de maconha ou bebidas, e que estavam ali simplesmente para serem fodidas por um escritor “underground”. Assim como também não levo em conta as cosias que inflavam o seu ego, suas alegrias transitórias ao se postar ao lado duma bela garota que lhe fizesse carinho na barba ou mordiscasse suas orelhas. Não, não são essas as referências; Falo do amor, dos sentimentos, assim como lhe foi doado por uma dona, talvez uns quinze anos mais jovem, e que esteve tantas vezes nesse quarto, num caso que durou pouco mais de seis meses. Lembro-me do início e que, entusiasmado por ela os olhos se iluminavam ao simples toque da campainha. Geralmente ela e o seu perfume de mulher vinham nas sextas-feiras á noite, deixando um rastro de beleza e do cheiro bom. E eles sorriam, pois se gostavam, e assim que ela chegava o velho pedia uma suculenta pizza e uma garrafa do vinho do bom, ou mesmo, se não comessem em casa saiam abraçados e na direção de algum restaurante próximo. Naquela época eu gostava do brilho impregnado em eu olhar, e ele era feliz, principalmente ao fim da noite, quando em lençóis limpos os gemidos e palavras de amor penetravam nos descascados das paredes.

No entanto, com ele o bom jamais perdurou, e Silvia também não, e tudo terminou numa noite que ela veio aqui e não o encontrou, pois ele tinha ido à farmácia à procura de medicamentos para uma daquelas meninas. E Silvia, encontrando a porta entreaberta ganhou a sala e deu de cara com três jovens alcoolizadas, todas aparentando um quê de vulgaridade. Claro, eram as fãs do escritor que surgiam do nada e nas horas mais impróprias, inclusive testemunhei ocasiões em que elas apareciam por lá e levavam bebidas para ele,  algumas ofereciam-lhe drogas, mas esse lance de entorpecentes jamais foi com ele, portanto as coloca para correr quando o lance redundava em maconha ou em papelote da cocaína. Entretanto, Silvia, jamais imaginaria tais fatos, e assim, instintivamente se dirigiu para o quarto, e ao se deparar com a jovem esparramada na sua cama acabou por ter um acesso de fúria, atirando ao chão os enfeites da estante. Sim, os meus amigos a olharam-na assustados, e sabiam tanto quanto eu que não houve qualquer traição do velho que, já que a garota e as amigas chegaram em estado de embriaguez, e ele foi até cuidadoso ao ceder o quarto e ir a farmácia. E foi assim que Silvia se foi, bateu a porta e jamais voltou. Depois do abandono eu o vi sofrer e sofrer, mas jamais a procurou para elucidar os fatos, pois o orgulho sempre foi o seu defeito maior.
E eram esses os fatos que recordava quando fui interrompido por sua voz pastosa. Dessa vez havia ódio em suas palavras:

-Foi essa merda que você pensou aí Doutor Panda! Não houve culpa minha, mas sim daquela desnaturada. Eu apenas tinha ido à farmácia... E agora é com você, já que isso te diz respeito; Orgulhoso é a puta que pariu! Ta?

Fitei- o com os olhos do inacreditável! Seria possível que estivesse acontecendo aquilo?  Por acaso ele estaria me ouvindo?

-Ouço sim, seu porra! E você pensa num tom exageradamente elevado, em alta frequência de pensamentos – Resmungou tão embolado que tive que me esforçar para compreender o fim da frase.

Deus do céu! Aquilo só poderia ser Delirium Tremens! Só não sabia se dele ou meu.

-E outra seu urso ignorante! Aprenda! Ursos não deliram e nem desenham nas aquarelas surreais.... Ursos, bem...ursos apenas hibernam! – Devolveu com a fala amolecida Mesmo perplexo diante do fato fui obrigado a rir.

-Ursos apenas hibernam! – Eu repeti e ri comigo por diversas vezes. Talvez eu tivesse rido alto demais.

-Que merda Doutor Panda! Quer interagir em baixa frequência! É isso, ou a estante! O que me diz? – Ameaçou

-Desculpe! Na próxima tentarei melhorar –  respondi sem graça, afinal, eu não queria ir para a estante.

-Vai melhorar uma porra, urso imbecil! – Ele berrou – Jamais imaginei que você me olhasse com olhos tão críticos – Ele disse. Era estranho, pois suas palavras agora eram de puro ódio.

-Desculpe, eu não pensei que.... –  Não me deixou terminar.

-Se arrependimento matasse, há essas horas eu estaria numa cova profunda – Deveria ter deixado vocês mofarem naquela maldita vitrina empoeirada. Mas não...eu tinha que ter compaixão...Ele ruminou chacoalhando os meus braços violentamente.

-Desculpe, desculpe, eu jamais imaginei que pudesse ler os meus pensamentos.

-Leio sim, leio agora, e não somente os teus, mas também os daqueles dois idiotas que cochicham na estante por acharem que não posso escutá-los. EU ESTOU OUVINDO VOCÊS –  Berrou. Olhei para ele e agora os seus olhos me causavam pavor.

-Hey, não xinga meu amigo não! Não xinga a gente não! O imbecil é você! – Surpreendentemente Pateta reagiu em nossa defesa., e mesmo que ele estivesse bravo, ninguém exporia a sua raiva de forma tão divertida.

-É, isso mesmo! Penso exatamente como o Pateta! Se há algum idiota aqui, esse idiota é você! – Juntou-se a nós o Leão da Montanha - E quer mesmo saber seu escritor de meia pataca? – O Leão continuava a desafiá-lo– Você é tão imbecil que nem conseguiu cair para o lado certo quando disse: Saída pela esquerda! Aprenda seu ignorante; quando sair pela esquerda, jamais tombe para a direita! – Finalizou o montanhês com um sorriso vitorioso..

-Ah, é assim que me agradecem cambada de viados? Ao acaso é um lavante, é a revolução dos bichos de pelúcia? - Que medo! - Devolveu ao gargalhar zombeteiramente. Repentinamente sua expressão reassumiu o ódio.

-  Todos verão do que o imbecil  é capaz -   Gritou atirando-me ao chão. 

Em seguida ergueu-se, trôpego, se equilibrava nas pernas, mas mesmo assim ainda conseguiu desferir um chute nas minhas costas. Eu pude sentir a dor. Depois, com a parte interna do pé direito empurrou-me para próximo da parede, e dirigiu-se à estante e recolheu os meus amigos com inequívoca rudeza. Por fim e com a dupla nos braços catou-me no canto, e num grande abraço acolheu-nos no peito e nos  levou à janela.

-Então vejam o que esse imbecil é capaz de fazer! – Sua voz soou como um estouro de canhão ao atirar-nos por através dela. Estávamos no 13o andar.

Nada mais poderia ser feito, e ao sentirmos no corpo o vento da noite percebemos que seri o fim, caminho sem volta, rota da morte. E mesmo despencando sorríamos uns para os outros enquanto a brisa gélida  acariciava as felpas dos nossos corpos, resvalando suavemente nos olhos de vidro. E foi diante dessa cumplicidade que nos demos as mãos, velhos companheiros unidos até o ato derradeiro e diante da insensibilidade do asfalto que nos aguardava. Seríamos destroçados pelas rodas dos automóveis, ônibus, caminhões? Não sabíamos, e só gostaríamos que tudo fosse tão rápido quanto as pernas de Usain Bolt, a bala humana.

-Saída pela esquerda! O Leão urrou e sorriu resignado.

E o Pateta, aquele que jamais deixou de sorrir persistiu gargalhando, provavelmente sem saber dos motivos, mas achando ótima a sensação do vento lhe tocando as faces.
As horas sempre se acometem rápidas, e a manhã logo chegaria, e ao acordar como se fosse dum pesadelo, o velho traria na boca o amargo sabor da bebida e solidão, e seríamos por ele procurados e ele nem se lembraria daquilo que fez e o porque fez,  pois assassinamos a consciência não uma, mas muitas vezes, e a partir da segunda, todas nos parecem iguais.
Foi assim que tudo aconteceu, e mesmo morrendo ainda me houve tempo para sorrir e perdoar.
Era um ciclo que chegara ao fim.

Copirraiti27Nov2013
Véio China©



domingo, 17 de novembro de 2013

O velho e o Mar (By Véio China)


Os sentimentos do pescador, um verdadeiro lobo do mar, naquele dia se concentravam nas tormentas e no infinito das águas azuis, que faziam dançar o seu barco como se fosse dum papel pouco encorpado. Sim, fora avisado pela guarda costeira dos perigos, porém não deu atenção, pois perdidos dentro de si havia o cheiro das tripas dos peixe que, tal qual a natureza humana se misturavam em suas entranhas. Ele navegava solitário, já que e aprendera compactuar com as levezas dos mares calmos, assim como agora defendia-se das poderosas ondas que, bravias e sucessivas pareciam pretender partir ao meio o "Gladiator" seu velho barco de pesca.
Naquela tarde de mar revolto ninguém saíra para pescar, afinal, bom pescador é aquele que respeita o mar, pois sabe que as águas não aceitam desafios. E havia nele toda a compreensão para todos esses ensinamentos, porém, ele sorria. Sorria para o instante, sorria das suas peripécias e maestria ao desafiar o oceano que aguardava por um só por um dos seus deslizes para sepultá-lo de vez naquele cemitério de vagas. Mas também o fato não o impressionava, pois ele não estava ali para pescar, mas sim para morrer, já que lhe parecia romântica a ideia de ir-se tragado pelas águas, pois para ele seria como estar sendo velado no quintal de casa.

Claro, poderia ser tudo mais simples e mais rápido; a bala nos miolos tornaria tudo tão definitivo, mas, o pavor de causar algum transtornos para Helga, a sua boa vizinha de trailer, deixava-o incomodado. Ah Helga! Uma pessoa de coração imenso, e que, apesar da cegueira, ainda encontrava alegrias para viver. Sempre se perguntara por que Helga descobria os infindáveis motivos que permitissem sua batalha perdurar, mesmo que sozinha, aliás, não somente só, mas junto duma modesta pensão deixada pelo falecido marido ferroviário. Lembra de tudo que ocorreu há cinco anos; do rapaz que deu naquela praia dirigindo um trailer e o estacionou ao lado do seu. Lembra ainda que a mulher desceu pela porta tateando as paredes do veículo, e que depois de algum confabulo com o jovem motorista veio até si e pediu autorização para cravar vida ali. "Eu não sou dono da areia, dona! Nem do mar" - Respondeu a ela. Ela sorriu, sim, mesmo que estivesse com óculos escuros pode perceber o sorriso denunciado nos cantos dos lábios. E assim ele pediu para conhece-lo, e contornando seu rosto com as pontas dos dedos foi que travaram o primeiro conhecimento. E de lá para cá nasceram dois irmãos, e ele gostava de voltar do mar e dar a ela um b om peixe, e sentar-se na soleira do trailer para ouvir as boas histórias da velha Alemanha, país natal de Helga.

Fora isso não havia muitas lembranças, salvo a da visita do seu único filho e de quando se viram pela última vez, talvez há uns três anos e meio.
Foi num fim de tarde de domingo quando emborcava o último quarto da sua garrafa de vodca, e foi acordado pelas palavras ditas por alguém de rosto jovial:
“Oi pai, tudo bem com você?” – Assustou-se, e entre encantado e surpreso conseguiu apenas responder um “Tudo bem!”. Porém não houve nem tempo de apresentá-lo a Helga, e  Dustin não ficou mais que 30 minutos e se foi tal qual como chegara; sem deixar qualquer endereço ou um número de telefone.  Agora ele pensava naquilo; Talvez a culpa tenha sido sua. Talvez não tivesse demonstrado a necessária alegria em vê-lo, talvez a história teria sido diferente e ele tivesse ficado para jantar o melhor dos peixes que um pescador conseguisse preparar.
Então, praticamente com quase nada a se falarem foi que viu a silhueta do filho descer os degraus do trailer e se tornar apenas um ponto caminhante nas areias e desaparecer no horizonte ao fim daquela mesma tarde.

E fora assim naquele mesmo dia que ele decidira da um basta em tudo, portanto estava aqui. Era doído recordar-se da mãe de Dustin e de quanto era bonito o seu sorriso. Dilacerava reviver aquela noite que, voltando do mar não encontrou ninguém no trailer. Depois disso sua vida não buscou realizações, e ele se deixou levar por uns poucos amigos (alguns deles falecidos) e de algumas rameiras de beira de cais Por fim, recordou-se dos homens e da natureza humana e de quanto algumas dessas pessoas possuem o dom de desintegrar qualquer tentativa duma existência pacífica e feliz.

Vivia nesse conjunto de lembranças quando foi acordado pelo surgimento de raios que chicotearam o ar e um vento gélido o fez tremer nos ossos; Seria possível ver o que via? Sim! Não havia a menor dúvida, pois vinda do horizonte ele divisou a formação de uma descomunal onda, talvez a maior da sua vida.
Novamente sorriu, já que sabia que era a onda da sua vida. Repentinamente o céu se acalma e não há mais raios e nem os ventos da tormenta, mas apenas o vagalhão que se aproxima calmo e colossal, e vai ganhando corpo até formar um paredão como se fosse um edifício de alguns andares. E ela veio e “Gladiator” surfou na sua crista, porém o leme já não respondia a qualquer manobra dos seus braços. Evidente, quem seria ele pra enfrentar a imposição do oceano? Não, era pouco, quase nada, mas não se entregaria assim, sem qualquer luta,  dignidade, pois o que pouco houvera em vida não ia lhe faltar na morte. E foi então que onda quebrou-se em cima e o barco despencou e desgovernado num mergulho que beirou ao desespero, foi à pique. Livrando-se do barco os seu braços tentaram se debater junto às outras ondas, agora menores, mas já não havia mais qualquer resistência no corpo exaurido, portanto,  submergiu.

E o seu corpo afundava e o ar se rareava nos pulmões enquanto percebia a beleza em algumas das exóticas criaturas marinhas. Podia notar a beleza e o bailado dos peixes das tantas espécies, e de como tudo que estava sob a água se movimentava de forma exata e disciplinada. E a cada instante o corpo ganhava as profundezas, pois o soube ao golfar o último ar. No seu rosto insistia o sorriso sereno, e um desejo moribundo. Sim! Estava á porta da morte, e para um moribundo nada se nega, pois foi o que lhe ensinaram em sua existência.
Ainda restava alguma vida em seus olhos quando ela veio; linda,  maravilhosa, seios fartos e  mamilos generosos. Ao fim do estonteante corpo da criatura não se viam pés, mas a graciosa nadadeira que fazia aquele ser quase humano flutuar com a mesma leveza de um balão à gás. E então ele a admirou, e ela sorriu para ele e estendeu-lhe as mãos alvas e delicadas. Ele, encantado as pegou e ambos sorriam docilmente ao iniciaram o bailado do adeus. Sutilmente, percebendo que não mais havia ar em seus pulmões ternamente se desvencilhou das mãos sedosas e cerrou os olhos, colocou posicionou a mão direita junto ao coração e disse um adeus para Helga.
Ao tocarem o fundo do oceano havia nele um sorriso agradecido.
Era um belo e meigo sorriso preenchido de paz.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

Amor...aí vou eu! (4000 km para um boi de cara sonsa)

Era uma dessas noites mormacentas do verão de fevereiro, essas que fazem o suor do rosto gotejar e o lenço ser mantido no bolso traseiro da calça. A noite tinha lá os seus encantos e eu estava com amigos numa mesa de bar, aliás, na última delas. As fortes luzes do lugar apinhado de gente elevavam a temperatura, inclusive a sensação  de estar mais quente dentro que fora do bar. Eu e os camaradas continuávamos conversando e cercavam-nos  meninos e meninas bonitas, jovens que pareciam estar de bem com a vida vestidos em perfumes  importados e roupas de grife. Evidente, não era só, além das flagrâncias e visuais os  acompanhavam  os gestos espalhafatosos e vozes entusiasmadas, e eles alegravam o ambiente. Claro, o boteco nada tinha de espetacular ou sofisticado como esses que funcionam nas avenidas dos  bairros mais nobres, porém em nada se assemelhava aos milhares de pés-de-porcos espalhados pela cidade. Gosto de falar sobre o bar, pois curiosamente ali é o lugar onde retroajo no tempo, algo assim que talvez lembre o filme “De Volta para o Futuro”. Geralmente essas viagens me fazem recordar uma época distante e de algum romantismo, é verdade, mas que também me devolve muitas durezas.
Porém, hoje, quando olho para as suas acomodações deduzo que tanto o estabelecimento quanto eu fomos mais simples, ou menos complexos, assim como eram os bêbados que ali entorpeciam suas almas de aguardente barato. Agora o local foi amplamente reformado nas alvenarias, e a fachada com  tijolos aparentes e telhas coloniais emprestaram a casa um certo tom campestre, onde o  atraente letreiro em neon vermelho e letras brancas pisca o nome do "Planeta Chico"  num indiscutível estilo country.

Sim, são os novos tempos, logo, dispersando das cores do passado juntaram-se às inovações seis  modernos freezers com portas de vidro, desses que são cedidos pelas cervejarias. Claro, a brutal concorrência entre essas companhias as obriga esmerar em produtos de alta tecnologia e qualidade, assim como  no caso dos freezers, aparelhos com designer futurista, onde no topo notamos pequenos painéis de Led divulgando cada qual a sua marca. Certamente é um aparato visual dos mais interessantes, letras piscando, te chamando "Ei, estou aqui, esperando, sou sua deliciosa loira gelada"  - E isso...bem, isso funciona.
Entretanto para o Chico foi pouco, e outras novidades foram incorporadas ao bar além das reformas e dum novo cozinheiro e suas mágicas introduções ao cardápio. Refiro-me a um enorme telão em LCD que, para nossa infelicidade (dos velhos amigos) porém para o delírio geral  exibia clipes musicais da  MPB assim como outros tantos do enfadonho circuito sertanejo universitário. Diga-se, tais exibições se tinham primordiais para o Chico e para o filho mais novo, já que o velho truque do "popular à qualquer custo" sempre  trouxe ótimos dividendos.
E sobre o tal gênero musical é bom destacar que, no telão, as constantes presenças de Luan Santa, Michel Teló, Paula Fernandes e do tomateiro Leonardo, e outros sofríveis, somados a fatores ainda não declinados contribuíram para impregnar no local um ar  pretensamente pop e casual, ingredientes  insossos sim, mas que fizeram o bar decolar.

Porém nem tudo é, foi ou será surpresa no Chico. Bem, quero me referir a velha-guarda do lugar, indivíduos como nós de prazo de validade à míngua, cinquentões irrecuperáveis e desbotados dos ares da vanguarda recente. Nós os veteranos sempre fomos os preteridos, assim como no caso dos vídeos, pois se impostas  as nossas certezas, deuses como o Zeppelin, Floyd, Purple teriam o lugar cativo nas lista dos mais vistos . Entrementes e mesmo que gostassem de nós sabíamos que nos tinham por um jogo de cartas vencido, sem  votos, trolhas mofadas como a "Voz do Brasil", coisa que hoje  ninguém sabe o que é ou pra que serve. Portanto minoria absoluta (cinco ou seis votos entre duzentos ou trezentos possíveis)  cabia-nos apenas tamborilar na mesa os dedos descompassados nas vãs tentativas de acompanhar os ritmos dos sujeitos mencionados.
No entanto é bom que se diga; éramos tão autênticos quanto nossas barbas e rostos marcados pelas noites mal dormidas, o que por si só não permitia que minorar nossas importâncias, já que empunhávamos o brasão da remanescência, concedendo ao bar um certo resquício de tradição. Contudo e apesar das carteiras remidas jamais super valorizamos o legado que deixávamos, assim como  não fechávamos os olhos para o processo de  reciclagem com a qual a juventude  nos brindava.

E o importante reporta-se à  mútua camaradagem, o fato desses garotos interagirem conosco de jeito pródigo e respeitoso, mesmo que não abrindo mão de suas piadas ou gozações  - “O tiozinho vai tirar água do joelho?” geralmente perguntavam quando me viam na fila do mictório, ou, - “Uauu tio! Cê tá gostosão hoje” –  ao flagrarem-me bem trajado e no uso do inseparável cheiro do meu Paco Rabanne. Porém não poupavam-me em situações mais amargas onde a nostalgia acometida pelo vício etílico não me era impune - “Hey tiozinho, cê ta carentão hoje? Tu ta precisando é dum bom rabo, uma dona tudo de bom. Sacou cara?” - Eu ouvia seus conselhos e críticas, já que provavelmente não gostavam de me ver bebendo solitário e macambúzio, acariciando o rótulo da minha cerveja como se fosse o rosto de Catherine Deneuve. E eu apenas sorria e eles devolviam em dentes alvos numa cena que sacramentava a cumplicidade havida entre os bons companheiros, assim como no filme Goodfellas, do Scorsese.
Também não me seria impróprio confessar que as garotas mais novas gostavam de interagir comigo, e vez ou outra, algumas delas ao me notarem sozinho e introspectivo traziam uma cerveja e sentavam em minha mesa para desabarem suas agruras. Quando não,  trocávamos ideias e elas falavam de suas famílias, namorados, estudos, e sobre mais coisas do cotidiano. Enfim,  não há  exagero ao afirmar que sempre me foi fácil cativá-las, não porque me percebessem na pele de algum Don Juan tupiniquim, não, longe disso, mas talvez porque o meu jeito calado e observador induzisse-lhes algum tipo de proteção, ou que o a minha suposta experiência tivesse muito a lhes ensinar, não sei ao certo.

Todavia nada disso importava naquele momento, pois há duas horas eu e os três dinossauros estávamos na mesa de sempre, um local pouco distante das outras pessoas, gozando assim de um certo grau de privacidade. E ali sentados consumíamos  cervejas e cu-de-burro (suco de limão com sal) E as Serra Malte se denunciavam na fila indiana de vasilhames vazios que se acumulavam no canto da parede. Olhando os cascos perfilados, talvez alcançássemos a marca dos 22 ou 23, número que por si apontava que trafegávamos inexoravelmente na estrada da embriaguez, e ela se evidenciava nas vozes de tons altos, papos de temas imprecisos, alguns sem qualquer nexo, porém isentos de censura.

-Ô Fred, por que tu andas como essa cara de boi sonso? –

Claro, a pergunta tinha certa pertinência, afinal eu estava apaixonado e com compromisso. Cecília era o nome da garota morena e de talvez uns 28 anos, pernas roliças e bem torneadas. Eu a conhecera na internet, numa comunidade que versava sobre literatura, e onde percebi a sua sensibilidade não só para os livros, mas para com a vida. Dali revezamos mensagens, trocamos telefones e cá estávamos nós. Era bom ser atingido por aquele sentimento que nos deixa abobados, onde nada interessa, mas somente a mulher amada. E o amor pode chegar de repente, e você deixar de dar a mínima para o que acontece ao redor, e o mundo continua girando e você jamais nota, aliás. Sim, sei que pode estar pensando; Nossa! que papo bobo esse do mundo! Sim, talvez eu até concorde, porém faço uso do movimento de rotação para explanar o emblemático sentimento do amor, pois às vezes ele te pega e você não sabe. Todavia, antes mesmo que lhe dê a resposta toca o meu celular. Atendo mesmo que diante do bestial alarido dos frequentadores. Olho no visor o número que me chama, e para evitar a dispersão coloco meus discretos fones de ouvido.

-Amor, cadê você? – Ela pergunta com a voz arrastada – Também ouço vozes do outro lado da linha, e são vozes femininas, entretanto a surpresa da ligação não me faz perguntar onde ou com quem estava.

-Oi amor! .Estou aqui no bar com os amigos, petiscando um bom filé e tomando umas brejas – Respondo carinhosamente com a voz ébria. Os amigos me encaram e entreolham entre si.

-Ih, não falei?  Olha o Fred outra vez com aquela cara de boi lambido – Insiste o Lélio. Estar apaixonado tinha desses inconvenientes; todos percebem e querem tirar uma lasca.

-Quero te ver agora! – Cecília ordena com voz semelhante à de alguém que acabou de acordar. A tonalidade de sua voz é incerta e as frases persistem enroladas, porém, mesmo ébria ela fala dum jeito todo especial, e aquilo me faz imaginar o esturro carinhoso duma onça para um parceiro que chegou com a caça nos dentes.

-Ah é? Então é pra já, vamos dar um jeito nisso – Exclamo.

Bem... vocês devem estar imaginando; o sujeito irá largar os amigos e as bebidas, pegar o carro e sair voando para a casa da gata. Errado! Apesar de concordar que numa situação normal assim também suporia, porém temos que dar mão à palmatória e aderir às modernidades que pulverizam distâncias.  Então abro a mochila e coloco o notebook sobre a mesa, sem não antes solicitar ao garçom que passe o pano seco pelo local. Julinho o garçom também sorri, o que me leva deduzir que estar apaixonado nos dias de hoje é nada mais que representar no palco o papel de palhaço para uma platéia entendiada.

-Amor, estou desligando agora. Já nos vemos. Beijos, saiba que te amo! – Confirmo

-Bye, estou esperando por você amor meu – Ela devolve, antecipa-se e desliga.

Ligo o notebook e conecto nele os plugs dum eficiente headphone que me custou os olhos da cara. Olho para o canto direito do monitor e procuro por conexões de rede e um leque de 12 possibilidades surge. Parece ser meu dia de sorte e no segundo nome da lista a conexão se estabelece, provavelmente o sujeito deve ter esquecido de configurar a senha. Entro no Skype e lá está Cecília no aguardo. Repentinamente surge a solicitação para o webcam e eu aceito. - Puta que pariu! - Ao abrir a imagem Cecília está cercada por seis ou sete garotas. Elas olham diretamente para o webcam e riem à beça com taças rubras nas mãos. Vinhos, sim, certamente consumiam vinho.

-Nossa Cê, como ele é bonitão! – Ouço uma falar. Firmo a vista e percebo que foi a mais baixinha do grupo que, encoberta que estava pelas estaturas das que estavam à sua frente, propiciando a ela apenas a possibilidade do frenético agitar de braços para que a notássemos.

-Obrigado, moça! - Agradeço num sorriso tímido, meio sem graça.

-Hey, hey! Não é com você não. É com esse loirinho que está à direita logo atrás de você! – Ela protesta, estridente.

Claro, se ouvisse aquela voz num telefone juraria que estava falando com uma guriazinha dos seus 12 aninhos. - Puta que pariu de novo! - Ela silencia e olhos para trás e os amigos estão às minhas costas, aliás, eles e os copos de cerveja. Que merda!- Rumino - Tiro os fones dos ouvidos.

-Que zorra é essa?! Sumam daqui! Não posso nem namorar sossegado? – Bronqueio. Como resposta sou saudado com sonora vaia - “Uuuuuuu” -

Do outro lado as garotas persistem falando alto e gargalham, e elas me lembravam dum bando de hienas excitadas.

-Amor, que porra que é essa? Que está acontecendo? – Pergunto invocado ao sentir certa pressão em minhas costas. Novamente olho para trás e era a barriga de Cesar que, curvado sobre mim pretendia ver algo mais.

-Sabe amor, é a despedida de solteira da minha amiga Lucinha. Essa aqui ó! – Ela diz puxando para si a garota que se estava do seu lado direito.

-Oi Fred! – Lucinha se apresenta com voz mais enrolada que a de Cecília. Por Deus, estavam todas embriagadas!

-Ah Fred, não liga para a Denise não! Ela é a mascote da turma e nem sabe o que fala. Tenha certeza, ela te achou bonitão sim. E saiba... você é bonito mesmo  – Cecília finaliza e sorri ao abaixar a cabeça na direção do foco da webcam.

-Oba! Obrigado! Você está sendo generosa! – Agradeço outra vez, agora ainda mais sem graça.

-Fred, fica sem graça não amor, tu não és de se jogar fora, porém convenhamos, o loiro é um espetáculo! Um Deus nórdico!  – Lucinha exclama divertida e sorri.

Sim, Lucinha era uma boneca e aparentava uns 24. Nela o vestido justo e vermelho e de decote generoso prenunciava aquilo que eu poderia denominar como uma possível grande trepada. Lucinha está ébria e se curva ainda mais na direção do olho do webcam e isso me possibilita uma visão estupenda dos seios amassados pelo talho do vestido. Eles davam toda a pinta de saltarem dali, rogavam por liberdade incondicional, nem eu sei ao certo. A cena desencadeou um frenesi de sensações despudoradas, e o suficiente para ouvirmos a voz do Junior, aliás, não só a dele, mas da quadrilha que se mantinha às minhas costas.

-Tira! Tira! Tira!

Lucinha percebeu o frisson que causou. Eu olhava para Cecília e a via impassível, feição ébria, sem se dar conta das coisas do momento. Lucinha queria show, atuar, portanto puxou minha namorada pelo braço a fazendo levantar-se, apossando-se do assento.

-Tira! Tira! Tira! – Persistia a ladainha da matilha de lobos carentes, atrás de mim.

Lucinha ria, colocava o dedinho na boca e brindava-nos com um olhar de donzela travessa . Era o sinal, para a largada, luz verde para o bólido de Formula 1 queimar o asfalto. E assim se inicia o grand-prix da sensualidade, e ela desliza o indicador pelo meio do decote e acaricia suavemente a tez entre os seios. Sim, era apenas um jogo excitante, e as garotas riem diante a reação da corja, até que uma delas grita –“ei Gostosãoooo”- e a corrida continua louca e desenfreada, a bebida que embebeda lá,  embebeda aqui, e Lucinha, o bólido, enfia os três dedos da mão direita no bustier  e lentamente o força para baixo. “Uhuuuuu” delira a cambada de canalhas.

– “Tira! Tira! Tira!” - Eles pedem aos berros. E ela persiste queimando o asfalto nas ruas de algum principado, estreitas, perigosas, sensuais, enquanto os dedos agem para que o pano ceda aos poucos como as esmolas que regulamos para os mendigos.

Foi o bastante para as garotas participarem da insanidade da corrida, e logo imitam Lucinha e fazem bocas e caretas, e aos trejeitos alisam os seios por cima de suas roupas. Os peitos de Lucinha, agora estão quase descobertos, e eles são magníficos, e ela insiste em fazer o pano ceder até que se torne visível o início da aureola do seio. Porém, surpreendentemente sobe o pano do tecido e nos fulmina com uma gargalhada de gente à-toa– “Uuuuuuu” os meus amigos deliram e vaiam desencantados, eles querem mais – Evidente, eu não podia vaiar, mas um “Uuuuuu” anônimo e silencioso reverbera no peito, afinal eu me excitara tal qual a primeira vez que beijei a boca de uma mulher. Lá, do outro lado da tela as garotas continuam rindo e persistem nas cenas de um cabaré de terceira. Era óbvio, sabia que estavam gozando de nossas caras, justo nós uns carentes pobres diabos.  

No breve momento que a libido cedeu à razão penso naquilo tudo e suponho que se fôssemos nós nos lugares delas, a essa altura estaríamos desfilando de samba-canção colorida, afinal todo macho que se preza é altamente exibicionista. Lucinha queria mais, muito mais, então se levanta, da cadeira, distancia-se metro e meio do webcam e remexe os quadris como se fosse uma passista da Portela. Depois executa meia volta e de perfil soergue o vestido palmo e meio acima dos joelhos e exibe suas torneadas pernas. Mas ainda não se satisfaz, portanto gira o corpo até ficar de costas e o seu vestido está lá no alto próximo à calcinha, e ela chacoalha as estupendas nádegas como cansou de fazer num passado próximo a ex- bunda número um do Brasil, Carla Perez nos programas do Faustão. Olho para tudo e me pergunto como terminará aquilo, entretanto as meninas não compartilham da minha apreensão e continuam rebolando, e agora viram as costas e sobem seus vestidos, e sinais daquilo que sugeriam ser as cores de suas calcinhas surgem e elas insistem e gargalham enquanto os tais "Uhuuuus” da corja  persiste, alto,  algazarra que chama a atenção dos clientes e causa certa apreensão ao velho Chico que preocupado nos olha lá do caixa. Tudo está fora de controle, e elas continuam plagiando Lucinha, e rebolam e os “Uhuuus” persistem indomáveis até que repentinamente decretam o fim da corrida. Ninguém gargalha e nem remexe os quadris ou mostra os seios, e Lucinha abandona a cadeira e as garotas somem da cena e Cecilia reassume o posto recolocando seus fones de ouvido.

-Amor, peça para esses vândalos saírem das tuas costas, por favor? Quero ter um particular com você.

-Cambada, vocês ouviram o que a dona do time ordenou? Portanto... Fora todo mundo! – Exclamo, ao virar o corpo e dar de cara com os sacanas.

Eles parecem desalentados e abandonam as minhas costas, exceto o Cesar que, idiotamente persiste num “Uhuuu” solitário, talvez de protesto. Será que o pobre infeliz imaginasse que aquilo ia findar num strip-tease completo e gratuito?

-Cai fora sujeito problemático!  - Apresso-o. Cesar me olha e o “Uhuuu” silencia em sua boca e então ele sai de onde estava e retorna para a sua cadeira logo à minha frente.

Ajeito-me na minha enquanto os devassos retomando a tagarelice voltam a mencionar os fantásticos peitos de Lucinha. Evidente, Cecília não fez parte daquilo. Olho para ela, e ela está meio constrangida, porém sinto que há fogo em seu olhar. Ela meneia os ombros, pressiona os lábios um no outro e diz:

-Amor, você eu não quero que passe vontade.

Dito, seus olhos escorrem para o meu lado da tela e ela se certifica que estamos a sós. E vem o momento da surpresa, pois delicadamente pega o fim da malha do top que deixa os braços e parte do colo nu e o levanta.  A cena me deixa perplexo, pois Cecília não vestia sutiã.  Depois me olhou com lascívia e eu não desgrudei os olhos do seu maravilhoso par de seios. Cecília tinha peitos lindos e fartos. Suavemente ela toca um dos mamilos e ele desabrocha como se fosse flor brindando a vida. Ao longe ouço vozes e os risos das garotas, o que significa que elas estão retornando. Tão de repente quanto mostra Cecília oculta seus seios ao deixar cair a malha, cobrindo o peito.

-Amor, eu quero você hoje e sempre! Você não faz ideia de quanto te amo. Estarei em casa por volta da uma da manhã, quando acabar aqui. – Ela diz daquele jeito que me deixa louco

Aí sorri para mim, diz “boa noite” e um “te amo”. As vozes das garotas estão agora se fazem mais próximas e eu consigo distinguir algumas delas quando Cecília comunica:

-Meninas, estou me despedindo dos rapazes.

Foi o decisivo para que as meninas saíssem em desabala e colocando-se diante do webcam. Depois uma delas gargalhou e voltou a bolinar o corpo. As outras também riram e a imitaram.

-Chame os meninos! Chame os meninos, elas pediam em coro, algumas delas até assobiavam.

Porém de palhaçadas estava farto, portanto não chamei ninguém e apenas me despedi delas tocando os lábios com a ponta dos dedos, atirando um beijo coletivo. Por fim desliguei a webcam e pensei sobre aquilo e olhei para meus amigos, e eles, mesmo embriagados persistem falando dos peitos de Lucinha. E fico lá, parado, inerte, apenas os olho e suas bocas falam, não se calam, cães vadios tendo sonhos eróticos com filé mignon. E aquilo me faz retornar para dentro de mim e admitir o fato de não transar na real por um bom tempo um bom tempo, não que não houvesse a oportunidades ou pessoas disponíveis, mas sim porque agora as relações amorosas agora não me pareciam tão urgentes. Obvio, eu tinha prazer e fornecia prazer, e era assim era entre eu e Cecília, mesmo que virtualmente, já usávamos do possível . Claro, fazer amor e à cor é e sempre magnífico, entretanto nesta vida eu fizera amor tantas vezes e saíra de algumas relações tão ou mais  vazio de quando entrara.  Agora o que eu precisava era alguém que me inteirasse e que me fizesse sentir que entre nós não haveria interregnos existenciais. O que ansiava era ter a oportunidade de viver a mulher e a delicadeza que se desfruta em cada folha do seu ser. E essa hoje era a minha maior verdade, talvez procurada  com o desespero de alguém que necessita o mais íntegro prazer de estar com alguém, e sorrir, e beijar, e fazer amor compactuando cumplicidades. Enfim, alguém que me fizesse compreender que é possível uma excepcional noite de amor ser sucedida por outra ainda melhor. Logo, Cecília poderia ser essa criatura, apesar dos mais de 4.000 km que nos separavam. Havia entre nós muitos traços comuns, e ela simplesmente me deixava louco na hora H, apesar de vingar ao terminar, um gosto amargo de monitor LCD.

Saímos de lá algo além da meia noite. Despedimos na porta do bar e cada qual seguiu o seu destino. Rodo por ruas desertas enquanto em outras alguns poucos automóveis trafegam. Depois de bons 30 minutos estaciono o Palio Weekend numa vaga descoberta garage ao lado da porta de entrada da casa. Saio do carro e abro o capô e retiro um dos cabos de vela, afinal nem todos os ladrões da cidade andam com cabos de velas sobressalentes. Entro na residência e desfaço-me da camisa e calça social e conecto o notebook sem  necessitar dessa vez a senha ou a conexão de alguém. Sei o que procuro, portanto abro a página do site e passo os olhos pelas promoções. Achada, retorno ao lugar onde despejei a calça e a camisa e volto com um cartão magnético em mãos.  Forço a visão, pois as letras do site são miúdas. Forneço o  número e código segurança do meu cartão e efetuo a transação - Era um negócio com uma companhia de peso.

-Manaus, já me sinto pelo caminho! – Exclamo e sorrio para a aranha indolente que no teto praticava algo parecido com bungee jumping.

Agora em meu poder havia uma passagem aérea de ida e sem volta para o Amazonas. E isso me conforta, pois agora quero viver para o óbvio, ver apenas o que pretendo ver, gozar a vida do jeito e forma que deveria ter vivido e não vivi até aqui. E é justo, pois suponho que também sou filho de Deus.
Penso pouco mais sobre as questões das relações virtuais  enquanto a multifuncional emite o localizador da minha passagem. Foi ali que consenti que a distância maior de 4.000 km jamais deveria ultrapassar o tamanho das minhas indefinições.

Continuei no notebook e espionei o meu e outros perfis no Facebook até me sentir entediado.
Entretanto a pergunta não se calava, e eu olhava para a tela e para o jogo de xadrez que acabara de buscar numa das pastas do Windows. Sim, um jogo de xadrez. Permaneci olhando para o monitor até que decidi colocar o dedo sobre a peça branca para dar o inicio ao Match. Sorrio idiotamente ao acreditar que   pudesse ganhar da máquina, mas nunca ganhei, e isso me irritava, não que me considerasse alguma sumidade ou dotado de inteligência privilegiada,  não,  mas tinha sim um bom raciocínio,  embora muito pouco para digladiar com aquele programa. Sim, um software abastecido por um campeão. dizem,  Bobby Fischer, divindade no universo enxadrístico dos anos 80, um computador humano dotado de fantástica massa cinzenta á municiar os engenheiros de Bil Gates com milhares de combinações vencedoras.
Enfim, verdade ou mentira,  com Bobby ou sem Bobby adianto meu peão duas casas pelo centro do tabuleiro e o maldito PC responde abrindo o cavalo da sua dama. Levo outro peão perpendicularmente ao meu na intenção de defendê-lo do hipomorfo, e em resposta campeão adianta o seu peão à frente da torre do Rei. -"Que raios de jogada seria aquela?" - Surpreendo-me. Eu não sabia, e o que sabia era que mais uma vez poderia estar entrando pelo cano; Tudo bem! - Resignei-me, estava pra lá de acostumado.
A casa onde foi parar o peão adversário piscou nervosamente; era o sinal para que eu fizesse o meu movimento. Fico olhando para as frenéticas piscadelas e elas me lembram os incandescentes letreiros de alguns inferninhos da boca do lixo.

-Vá te foder, Bobby! Espere! - Resmungo para o computador

Sem que me haja qualquer motivo olho para o alto e uma aranha solitária parece surpresa com minha bravata. Levanto da cadeira e olho para o teto e ela parece desconfiada, pois talvez tenha o bom senso de jamais confundir moscas e abelhas. Enfim, esperta e até com receio que um desavisado pé do meu sapato  involuntariamente seja atirado para o alto acaba por dar o fora dali escalando um pequeno espaço da teia,  e esconde-se no interior do globo da luz. Penso na cena e na fuga malandra e outra vez sorrio.
Momentaneamente desvio minha atenção da aranha, do tabuleiro e questiono-me à meia voz:

-Meu Deus, serei o azul do Caprichoso? Cecilia será o oposto, vermelho, do Garantido? -

-Não sei... -  Murmuro introspectivo, assim como concluo também não saber se ela ficará feliz com a surpresa, pois não há garantia para nada nesse mundo, excetuando a morte. Penso na morte por mais alguns segundos e me recordo do Azul e a minha predileção pelo Caprichoso. Evidente, concordo, tudo é uma questão de cor, azul, vermelho, um ganhará e o outro perderá. Porém não quero arriscar, vou no campeão,  vou no perdedor, serei aquilo que Cecília for, ela é a bola da vez e eu estou cansado da voluntária escolha de jamais colocar a pele em jogo e abrir mão da grande bolada.

-Amor...aí vou eu! - Exclamo para uma aranha sonolenta. Peço desculpas a Bobby e desligo o computador. Procuro uma toalha de banho, e saindo do quarto carrego também um dos meu inseparáveis pijamas curtos. Eu gostava deles, coisa de macho, sem dúvida. Ele era em azul marinho e a blusa com gola em V  estampava bolinhas brancas num tecido que nitidamente imitava a seda.

-Sim! Nada mais elementar... pobre, limpo e Caprichoso -

Concluo comigo ao abrir o registro e sentir os efeitos duma ducha Lorenzetti com mais de 10 anos de uso. Os furos por onde sairiam os jatos estão entupidos, já que há mais de meses não os desentupo. A água que se arrisca sair pelo furinhos goteja  fervendo e me machuca a pele.

-Merda! Merda! Merda! -

Xingo três quando poderia ter xingado apenas uma. Talvez fosse frescura ao extremo.
Sorrio novamente. - "Será que haverá antropófagos nas florestas do Amazonas?" - pergunto-me. "Vá a merda!" Respondo para o imbecil que se fez a pergunta.
Talvez fosse nada mais que pura  ansiedade.


Coporraiti24Set2013
Véio China©

sábado, 24 de agosto de 2013

A Balconista

Era um ótimo dia de céu azul e nuvens brancas. Eu estava no parque e aproveitava o sol da manhã para zanzar pelas alamedas e observar os pombos. Vez ou outra marcava ponto por lá e eles me entretinham, e eu olhava os seus pézinhos lépidos e  bicos frenéticos ciscando o chão nervosamente à cata de miolos de pão e outras bobagens que lhes atiravam. Eu achava engraçado a avidez na qual se entregavam aos alimentos, pois provavelmente deveriam supor que tudo lhes seria comida, inclusive as embalagens plástica vazias deixadas por todos os cantos do parque. O fato me causava certa inveja, não daquele amontado de lixo deixado por um povo sem a mínima civilidade, mas do sistema digestivo daquelas aves que, metabolizavam tudo. Fiquei por lá mais alguns minutos observando seus trejeitos e a forma como interagiam, e não percebia qualquer hierarquia entre eles, mas sim a predominância da lei do mais forte, inclusive a de um deles em especial que, estufando o peito e movendo abruptamente as asas se apossava dos nacos maiores dos famintos companheiros. Evidente, nós os humanos também vivíamos numa sociedade parecida apesar de existir entre nós certa preposição hierárquica. Óbvio, oficialmente há o ordenamento, mas a evidência não é o estado da ordem de fato, mas sim a predominância da lei do gatuno, da coisa espúria, do poder que corrompe e é corrompido, mesmo que os partícipes das milionárias negociatas jamais as admitam. Portanto, se assim ocorresse com as aves seria de questionar se haveria entre elas alguma forma de constituição, e em existindo não seria espanto rezar em suas cartilhas o maldito blá blá blá de sempre, a teoria do "somos todos iguais perante a lei", claro, coisa que só inglês consegue ver.
Bem, perdido na estupidez desses pensamentos passaram-se mais de 15 minutos, e eu me sentia enfadado, portanto resolvi me mandar dali antes que mandasse tudo e todos a puta que pariu. Ao abandonar o parque me lembrei de algo importante, logo, rumei para a drogaria mais próxima. Eram dez horas em ponto quando encosto o umbigo no balcão.

-Moça, por favor, duas Jontex lubrificadas – Peço para alguém na posse dum sorriso comercial.

Evidente, eu estava constrangido, pois nunca havia visto naquela farmácia a figura feminina atrás dum balcão. A resposta veio com outra pergunta, fulminante, descabida. Novamente cravo os olhos na garota, e ela não deveria ter mais que 16 anos, a mais linda querubim num corpo do demônio.

-Pe..Eme ou Ge? – Fulmina-me com expressão maliciosa. Eu a olho desconsertado enquanto a garota dedilha os malditos envelopinhos de preservativos colocados num expositor  atrás de si e na parte interna do balcão. Seus tons e olhares me incomodam, e não sei bem o que fazer. Tento a saída clássica

-Por favor, pode me chamar o farmacêutico? – 

Sim, solicitei a presença do dono, já que fatos como aqueles traziam à tona  a minha convicção que homens de negócio deveriam fornecer cursos prévios aos seus funcionários, elucidando dúvidas dos clientes sobre os produtos. Todavia hoje em dia ninguém quem investir  em nada, imaginam que tudo é custo, mesmo que o investimento em treinamento evitasse acontecimentos absurdos como aquele. Talvez ela nem fosse a culpada pela chacota sobre a questão do tamanho, afinal, quem poderia afirmar que seu último emprego não fora no balcão duma loja de confecções? Para a nossa sorte o dono da farmácia acabava de sair por uma porta lateral ao balcão, dessas, estilo vai-e-vem, que comumente vemos nos filmes do velho oeste.

-Por favor, Adamastor, estou envolto numa pequena questão. Pode me dar um minuto da sua atenção? – Solicito-lhe

Adamastor, o farmacêutico do bairro, sujeito sacana e irremediavelmente mulherengo me olha surpreso.
E já que Adamastor é o foco da vez não é impróprio comentar que ele, segundo as más línguas da vizinhança, vivia cercado de problemas, inclusive com o fardo de três pensões alimentícias pagas para suas ex-mulheres. 
E isso me deixava admirado com a sua resistência e fôlego financeiro, pois não é surpresa que grandes redes de drogarias esmagam os pequenos comerciantes ao dominarem o mercado de medicamentos e congêneres, portanto era um milagre que ainda estivesse de portas abertas. Adamastor persistiu me olhando e se manifestou:

-Claro, um minutinho, por favor! – Foi a resposta. Então se locomove lentamente, entra pelo corredor do balcão e ao passar por detrás do bumbum da garota estaciona o corpo, adianta o quadril mirrado e se encaixa no traseiro da menina num movimento amplamente canalha.

Ao presenciar a cena concluí que poderia estar nascendo ali mais um grande prejuízo financeiro e moral para Adamastor, apesar do fato não constituir novidade diante seus eternos problemas com o universo feminino. Olhei para ambos, Chapeuzinho e Lobo Mau, e nele os mais de 60 gritavam desconexos diante daquele rostinho de anjo e corpo do mal. Balancei discretamente a cabeça, pois talvez a idade estivesse prejudicando seu discernimento à ponto de não perceber que entrava numa fria. E o pior; as coisas poderiam ficar  piores, pois a pedofilia, aliciamento ou prostituição de menores eram encaradas com certa rudeza pela legislação.


-Qual é o seu problema, Juvenal? – Ele pergunta ao se livrar da maciez do jovial traseiro. A mocinha meneia levemente as pernas e o bumbum e mostra seus dentes alvos, brindando-nos com um sorriso vagabundo.

-Bem..não há problema algum comigo, Adamastor! Apenas queria dois malditos pares de preservativos Jontex - Respondo para ele - Ah sim...lubrificados, antes que me esqueça – Concluo ainda constrangido. Ele olha para mim, indiferente.

-Ora Juvenal! Para isso poderia ter perguntado à Moniquinha, e ela o atenderia com toda presteza – Devolveu com perceptível  má vontade. Depois emendou: - Ah, não estranhe a brincadeira, pois a instruí para perguntar ao cliente sobre o tamanho do seu preservativo – Pequeno, médio, ou grande. P.M ou G, captou? - Completou num risinho sacana. 

Não, eu não havia captado, portanto olho para ele, incompreensível, expressão que deveria estar lhe questionando algo do tipo: "Você ficou doido, homem?". Ele continuava me olhando, e eu podia notar o ar zombeteiro. Por fim, talvez incomodado pela minha sisuda fisionomia achou por bem explicar o porque daquilo tudo:

-Sabe, Juvenal, é apenas uma toque de bom humor junto ao cliente. Foi a forma mais light que encontrei para quebrar o clima da timidez costumeiramente estabelecido entre os homens e atendentes mulheres.

Ah... agora captei!– Exclamo idiotamente enquanto Moniquinha insiste no sorriso cretino. Olho para ela , para a sua boca de lábios grossos tingidos por um batom provocante, vermelho, quase sangue,  e parece que ela quer me engolir numa só bocada. Ainda demonstrando impaciência, Adamastor solicita.

-Moniquinha, por favor, continue atendendo o meu amigo Juvenal – 

Daí, ainda de má vontade me faz um sinal de até breve batendo na testa os dedos da mão direita em continência. Daí da dois ou três passos, estaciona novamente no rabo da garota e a encoxa. Feito, some pela porta de cowboy.

A moça outra vez se posta à minha frente e retira dois pares de camisinhas lubrificadas do expositor. Sem desgrudar dos meus olhos coloca-os num envelope,  faz a nota e me entrega.

-Pode pagar pra mim, Juvenal – Diz num tom forçado, assim como dessas atrizes  em início de carreira que se imaginam no mesmo status duma Fernanda Montenegro ou Marília Pera. Depois se dirige para o caixa. Penso naquilo por segundos e estranho o seu tratamento e a falta da palavra “senhor”

Vou ao guichê e tiro algumas notas da carteira e as empurro pela fresta do vidro. Ele confere e me dá  o meu troco. Agradeço com um movimento de cabeça e preparo-me para sair da quando novamente sou interpelado por ela.

-Sabe Juvenal, acho que deveriam mesmo implantar esse negócio de P.M.G.

-Hã, como assim? – Questiono. A garota não esquecera daquela bobagem toda. Ela segue adiante.

-Ah, assim, veja...Certa vez sai com um japonês, e pra minha surpresa ele tinha um treco imenso, deveria ser o jegue de Pequim. Num outro lance saí com um cara super musculoso, de academia, bonitão, saradão, e ele me deu um porre de caipirinha de vodka e me levou prum Motel. Nossa! Fiquei ansiosa, excitada, mas foi fria; Ele tinha um pingulinho que, mesmo estando duro coube na palma da minha mão –  Exclamou com os dedos polegar e indicador paralelos e com pequena distância entre si. Aí riu debochada.

Realmente a garota era surpreendente. Olhei para a mocinha que fez de Pequim a capital do Japão, e murmurei um “hum rum”. Antes de dar-lhe as costas ainda ouvi a sua última questão

-Juvenal, desculpe, mas estou muito curiosa a seu respeito – Confessou num tom estranho, intimista assim como o dos amantes.

-E que curiosidade seria essa,  moça? – Questionei, desconfiado e surpreso.

-Bem...bem.. –  Depois de algum embaraço ela arranha a garganta, e assim que percebe que nada atrapalhará a tonalidade da voz, pergunta: O seu é... P...M ou G? 

-Pequeno, médio ou grande....pequeno, médio ou grande - Desconsertado balbucio as palavras, e continuo olhando para ela, e ela, mais que nunca me parece ser uma trepada inexperiente, mas das boas.

Sem que lhe forneça detalhes Moniquinha persiste com o sorriso devasso, e ele macula  a santidade do seu rosto. Foi meu momento de lamentação, assim como também o de Adamastor há 20 anos num buffet próximo dali ao receber os clientes do bairro para a comemoração dos 15 anos de sua  farmácia. 
E o seu lamento naquela noite não deve reviver em sua memória, como deve ter esquecido das dolorosas porradas que ganhou do pai duma ninfeta de saia justa e pernas grossas que se encontrava na festa. Claro, a culpa coube aos seus atos desastrados e à mão boba que insistiu em aliciar o rabo da jovenzinha que, de era à-toa só tinha a pinta. Foi a hora do "deixa disso", de braços apartando os valentões, e só restou a Adamastor aproveitar os cubos de gelo do uísque vagabundo para consolar o enorme hematoma que se formou no olho esquerdo. Terminado o fuzuê, ouvíamos o farmacêutico murmurar "Eu não tive culpa, não tive culpa". Sim, não tinha culpa o safado, e definitivamente ele era um grande cara de pau, pois o mais provável foi o  bumbum ter se locomovido por livre arbítrio até a  sua mão espalmada.

Pois é!  Agora eu também lamentava, um lamento que não era só meu, mas também do meu amigo Sidenafil  religiosamente carregado comigo num dos bolsos da calça. Aquela tentação juvenil estava brincando com fogo, e eu, com meus 55 e barbas grisalhas jamais seríamos tão otários quanto o Adamastor. Pigarreio e olho atentamente nos olhos que se borram duma maquiagem azul e lilás que, combinam com os cabelos tingidos fortemente de ruivo. 

-Olha moça... Espero ansiosamente por essa mesma pergunta daqui dois ou três anos. Tudo bem? – E pela primeira vez abro-me num sorriso franco e honesto.

Como minha resposta ela gargalha estridente e requebra um samba como se fosse a passista campeã do carnaval carioca. Não há música, mas há as pernas dela e um sapato de salto 8, réplica ded marca famosa. E Moniquinha persiste requebrando...requebrando, até cessar a dança e o sorriso desaparecer dos seus lábios grossos.
Definitivamente aquela garota era louca, além duma descomunal porta de cadeia.

Claro, gora não havia qualquer dúvida; Adamastor estava ferrado!


Copirraiti23Ago2013
Véio China©