quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Reminiscências Contemporâneas (Hippies, Black Blocs & Iphones e muito mais)

Olhando em seus olhos logo percebi que seria um desses garotos que jamais saberão o que é o mar.
Talvez estivesse lembrando do mar por estar vindo dum domingo de praia e de um ótimo quarto de pousada. Como todo bom paulistano  procurei esquecer o solado dos sapatos sociais raspando no concreto e fiquei os pés  nas areias macias e cravei a vista tão distante quanto a idade podia me permitir, já que sempre me causou inveja essas lanchas de rico  ancoradas próximas á praia. Entretanto como jamais fui um comandante ou lobo domar retornei a São Paulo na segunda de manha e cá estou eu numa estação de metrô  às seis e meia da tarde, hora de rush, instante que o deixei  junto de suas parafernálias urbanas. 
Logo,  ele e eu e outros milhões de usuários somos trens de metrô e estamos na estação Estação Sé apinhada de gente, enfim, uma raça humana que, plagiando o gado retorna para os seus lares.Talvez o garoto não soubesse, mas eu fora tão jovem quanto ele, desses sujeitos normais   que se flagram nas feiras livres consumindo porções de yakisoba e pastéis de palmito. E como não sabia dos pastéis, não haveria de saber que eu fora um sujeito posto à prova pela vida, apesar de minha inequívoca vontade de progredir. Porém, mesmo que houvesse a vontade, a verdade  é que nunca dei muita sorte com qualquer coisa, inclusive com os empregos,  pois  raras foram as respostas dos curriculum vitae que enviei pela existência toda. E o fato  não me espanta, pois talvez à época os engomadinhos daqueles escritórios de poltronas confortáveis acreditassem que eu fosse meramente um preenchedor de formulários.
E por falarmos em fichas para emprego lembro uma daquelas ocasiões que levantei ainda de madrugada e peguei dois ônibus lotados para tentar uma boa vaga numa multinacional. Bem, ao fim de duas horas e meia espremido como laranja prestes a se tornar suco, desci próximo da empresa, mas acabei me dando mal, já que não conhecendo o lugar adentrei por numa viela com casas desocupadas, talvez até pelo fato de algum grande empreendimento estivesse sendo planejado para o local.
Então continuei seguindo pela viela com os passos apertados, e era mais que certo que  alguns dos meus concorrentes  já andavam pelos corredores da empresa entregando suas qualificações. Lembro que ao passar pelas casas eu as olhava rapidamente, porém  não tardou e  vigorosos passos de dois sujeitos logo se aproximaram. Assim que me alcançaram alinharam-se  um de cada lado - "Devagar irmãzinho!" Um deles disse ao surgir com um calibre 22 na mão direita e retirado às pressas por debaixo do seu enorme camisão de flanela. Bom, exposto à arma de bandido, que poderia ser até plástica, não me surgiu outra ideia que não a de me ajoelhar na tentativa de salvar a minha pele. "Por favor, não me mate" - Roguei com os mesmos olhos piedosos dos mendigos -

Claro, nós os comuns sempre tivemos medo, muito medo, portanto nada mais previsível que nos subjugamos à ousadia dos marginais, ou às suas eventuais armas de PVC ou de ferro pintado.
Sem saída e naquela circunstância só me restou venerar o marginal como se fosse ele  o Jesus Cristo, afinal, eu jamais acreditaria que e o  filho de Deus atirasse contra um dos seus irmãos.
O que se postava à esquerda e que parecia ser o mais calmo olhou para mim e me mandou levantar do chão com uma frase que nunca mais esquecerei. Ele disse - "Calma irmãozinho, não matamos ninguém antes da hora do almoço. Apenas me passe o que tem nos bolsos e estará tudo bem" - Depois ainda enfiou no meu bolso o dinheiro da passagem e me mandou andar. E eu andei, andando, trêmulo, passo após passo até novamente sentir as pernas firmes e me dirigi à empresa que, até hoje não me convocou para uma segunda entrevista ( E olha que lá se vão mais de 32 anos) 

Sim,  são coisas como estas que me deixam farto da vida. A impaciência se torna fúria, não só com a bandidagem estabelecida, das armas ou da política,  mas também com  aquele garoto que destilava ódio em sua expressão, a qual respondi com uma fisionomia acabrunhada, dessas que dizem o quanto andamos de saco com todos. Talvez alguns me julguem ranzinza, mas se há coisa que não suporto são esses olhares  que te olham como estivessem vendo um monte de estrume E era essa a impressão que ele me causava, e eu o achava imbecil, e odiava o fato tanto quanto os gatunos que nos rouba, lesam,  e agem como se fôssemos uns otários, e que estão fazendo um grande favor ao nos assaltar.
Sobre isso, e apesar de ser revoltante engolir sapos, é bom que saibamos da necessidade de, vez ou outra nos munirmos de  paciências, pois há ocasiões que as esperas são sábias ao apontarem que a existência não se sublima no valor das posses, no calor do sol,  ou nas fases da lua. Não, definitivamente não, pois a vida é muito mais que palavras bonitas ou  os mimos num rosto de mulher, pois também resplandecemos nas dificuldades, nos patamares difíceis e nos degraus mais altos,  já que existirão coisas que poderão nos marcar, assim como o amor bem feito com a mulher que se quer, mesmo que no derradeiro murmúrio da madrugada.

E assim é a vida e o exercício continua, e não será fácil para quem quer que seja, pois às vezes ela nos maltrata e coloca-nos para fora da cama ás 5,30 da manhã através do despertador que tocará irritantemente, e fazendo lembrar que há trabalho lá fora. Portanto você se levantará e irá ao banheiro e constatará que a sua respiração embaçou o espelho, e isso significa que há  batimentos em seu coração, apesar duma aparência horrível. Depois é só tomar a ducha, escovar os dentes, pentear os cabelos e sair para a rua sabendo que a vida está de olho em você, mesmo que não sejam aquelas as sua últimas horas, assim por dizer; o dia da tua paz definitiva.
Todavia é esta isenção de paz  que não me deixa acomodar para as coisas  que não fazem sentido,  assim como a prostituição e um bando de garotas com o rabo de fora   congestionando as esquinas com  michês de 50 pratas.
Evidente, há outras tantas aberrações, e uma delas é este desprezível quebra-quebra generalizado que vivemos, assim  como a abundante bandalheira praticada,  e tão comum às pessoas poderosas.  E a maior das verdades seja dita, pois a sociedade pensante está anestesiada, prostrada diante da anarquia que  reina absoluta, estupefata  com governantes que afundam um país à custas das esmolas clientelistas.
Sim, por outro lado também estou perplexo com os atos desses garotos mascarados, e eles  poderiam estar produzindo, estudando, amando, ou sei lá o que nais, porém, tempo perdido, já que  não se despem da violência ou do vandalismo, pois  lhes deve parecer "um negócio da China" depredar não só o patrimônio privado, mas igualmente o público, um evidente “foda-se” às instituições.
E isso me deixa puto da vida, pois talvez os black blocks tenham nascido numa época imprópria, pois a minha era foi duma geração submissa, mas que acabou herdando o mundo, e tudo num piscar de olhos. E essa herança não nos veio de graça,  foi com luta, com protestos, mas sem que promovêssemos destruições ou aniquilássemos pessoas. Todavia isso é uma outra história, coisas do meu tempo e duma velha guarda fascinada pela retórica dos grandes pacifistas, e que fazem lembrar do mundo jovem dizendo  NÂO à guerra do Vietnã, além do repudiar o preconceito e as questões racistas.
Logo, o garoto do metrô jamais imaginaria que esse foi o quadro pintado na minha geração, e que daquele ponto em diante foi um juntar de  forças, inclusive com os imensos dinossauros da mídia, gente assim como os Beatles, Rolling Stones, Morrison, Dylan, e tantos outros,  para enfim chegarmos onde chegamos, praticamente a lugar algum. Enfim, algo de errado aconteceu lá atras, e mesmo ansiando por mundo melhor e mais justo os jovens da época se perderam pelo caminho, dispersaram santificando e consumindo drogas que mataram não só a eles, mas também muitos de nossos ídolos.
Finalizando o resumo diria que fomos o estardalhaço jovem que pouco ou quase nada soube fazer com o poder da própria voz.

Ah, e já que estou passeando pelo passado volto aos pequenos detalhes daquela época e relembro a Praça da República e as feiras hippies, e à um domingo especial, onde ao percorrer as curtas alamedas ouvi e pela primeira vez o inacreditável Jimi Hendrix. Ainda me era um tempo intermediário, dividido entre o garoto que saia da infância para ganhar a juventude, e eu à época no cargo de office boy e junto do meu tênis Rainha  percorria que nem louco as ruas de São Paulo enfrentando filas, encarando ônibus lotados, desafiando enchentes que, por vezes me tinham-me pela cintura. Ah, e como esquecer dos almoços à preços módicos num imenso salão no centro da cidade, lugar mais conhecido como o  "Bandejão da Juventude Católica". E tudo me parecia tão claro e justo, e no fim do mês havia aquilo que eu julgava a recompensa, então corria à Galeria Pajé, e meus olhos se mantinham  frenéticos, era como  procurassem uma miss, talvez até a de São Paulo, mas não era uma garota de corpo escultural o motim do meu desejo, mas sim uma calça de um jeans diferenciado e de sucesso global; Levi Strauss era a marca. E ela me deixava feliz, e com ela dobrada no interior duma sacola plástica é que deixava no bolso do comerciante todo o meu salário do mês, pois usar uma daquelas era  sinal de status, e as garotas amavam os garotos enturmados.

Sim, é verdade, e uma coisa levando à outra relembro o romantismo do tempo e a excitação ao tocar a mão da namorada, a ansiedade nos dedos umedecidos de suor, depois o rubor corando meu rosto ao toque mais ousado, sem esquecer do coração que batia afoito, afinal era tão fácil se apaixonar naquela época. Talvez nem acreditem, mas essa coisa da ansiedade sexual me foi cobrada pouco antes das calças favoritas. Sim, surgiu na frequência das missas dominicais celebradas pelo Padre Damião. Talvez eu estivesse na casa dos 12 ou 13, o que não apaga de minha memória as pernas jovens no interior das recentes minissaias, um mundo de hábitos novos, e essas pernas ali na presença de Cristo me deixavam agitado. Entretanto nem nesses momentos escapei impune, já que persistiam em mim os resquícios duma severa educação cristã, ensinamentos que foram ministrados num colégio de padres que estudei até os 10 anos. E sendo eu o pecador carregava tantas culpas, e elas precisavam ser redimidas, portanto me aproveitava de estar na casa do Senhor e caminhava até ao confessionário, e lá acertava as minhas contas com um daqueles que me diziam ser o representante do Pai aqui na terra. E assim eu saia de lá leve e carregando na consciência a obrigação de rezar não sei quantas Aves-Maria e  Padres-Nosso, e agora eu podia tocar as asas dos anjos, pois quase nada devia a Deus.
E quando divago sobre o fim da infância e o início da fase jovem faço-me as mesmas perguntas de sempre: A minha alma já estava perdida? E por onde andariam os meus amigos da "divisão dos menores" do Liceu Salesiano de Campinas, junto das lembrança de tudo que vivenciei por lá?
Eu nunca mais soube, mas deduzo que muitos estão por aí com suas famílias, avôs em situações estáveis, instáveis, talvez em asilos, ou mortos, nem eu mesmo sei.

Bem, depois do colégio interno e já em Sampa adentrei a fase musical e só pensava em canções e nos cabelos iguais aos dos rapazes de Liverpool. E sobre as canções muitas delas me marcaram (Poucos devem lembrar de Vandré e a Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores) Não há como negar, e já naquela época demonstrava algum inconformismo, e isso se percebia nos meus gostos musicais, nas revistas em quadrinhos que devorava, principalmente aquela produzida por gente que tirava um barato do autoritarismo, portanto, do Regime Militar, já que esses jamais excluirei da lembrança (beijos, Fradim, Bode Orelana, Graúna, Henfil, Jaguar e Ziraldo)
E estando em tempos difíceis o normal era aceitar que o pior andava à espreita, assim como nos dias
de hoje,  pois o o mal destrói como traição entre marido ou mulher. Todavia o tempo foi caminhando, e ao fim daquela década o Regime jogou pesado coibindo manifestações, principalmente as estudantis. Mas elas persistiram e foi um festival de borrachadas, e a polícia, sem dó ou piedade desceu o cassetete na juventude. Com o movimento de rebeldia (principalmente dentro das faculdades) vieram grupos e foi formada a célula guerrilheira e um projeto que supomos clamar por liberdades e direitos civis.
Convenientemente se anota que as camadas mais esclarecidas apoiaram  irrestrita  tais movimentos (mesmo estando longe da militância) e fomos muitos os que acreditaram em seus ideais, e eu,  mesmo sendo jovem e inexperiente apoiei, pois jamais acreditei em liberdade tendo os militares e os atos de força no comando do país.

A guerrilha desenvolveu e em que pese as patentes militares envolvidas, mas la estava o anonimato dos nossos heróis perdido entre as matas, lutando por algo que nem mais sabia o que era. Evidente, houve o rastro da morte, e alguns se foram até pelo próprio e desconhecido habitat que enfrentavam. Passou-se pouco tempo e os militares dizimaram a guerrilha, afinal, a maioria daqueles garotos jamais tinha tocado numa arma de fogo.
Depois de vencidos muitos dos guerrilheiros se exilaram por aí, e é neste ponto que reside a triste ironia dos fatos; Alguns desses sobreviventes estão hoje por cima da carne seca. E a decepção fica por conta de agora sabermos que foi a guerrilha mentirosa, combatentes acoitando entre si um bando de falsos revolucionários.
E agora tudo me parece tão claro apesar da ficha ter demorado para cair, pois a mentira é tão contundente, e os pseudos guerrilheiros tinham por único objetivo a tomada do poder e se dar bem na vida, um poder que, diga-se, hoje  se mostra quase tão totalitário quanto o dos tempos militares..
Logo, muitos de nós nos dias atuais têm a consciência que pagamos demasiadamente caro por termos acreditado e colocado no poder a ignorância demagógica de um semi analfabeto. Assim é que nos sentimos, impotentes,  e eles se multiplicam e dividem o produto das falcatruas entre si num vilipêndio do erário público que mal deixa as digitais dos dedos inescrupulosas, mas que sabemos;  transferem boa parte dos seus golpes milionários para seletas carteiras abarrotadas de testas de ferro.

Bem, como política é algo que me causa nojo, a deixo de lado e retorno ao garoto de olhar duro, e ele continua me olhando, empinado, e seu nariz parece ter alcançado o mesmo status das nuvens no céu.
E esses olhares atravessados aconteceram pelo nosso resvalo acidental à porta da saída do metrô. Evidente, velhos carregam guarda-chuvas nas mãos, e não Ipods ou Iphones. E o estrago se fez no instante do choque, porém meu guarda-chuva escapou ileso. Ainda na intenção de ajudá-lo me agachei e peguei o seu aparelho, sem não antes notar que o vidro frontal do Aplle havia se espatifado, e duas ou três peças juntas da bateria se esparramaram pelo piso. Olhei atentamente para os pequenos pedaços e se eu fosse alguém confiável na área de assistência técnica de celulares lhe diria sem constrangimento que talvez o caso fosse o da perda total. Entretanto o momento e as circunstâncias não me pareceram apropriadas para alertá-lo, portanto silenciei.

-E aí tio! Tu vai ressarcir o meu aparelho? – Ele perguntou aproximando o rosto, resvalando seu tórax em meu peito.

-Como assim? Você está ficando louco, guri? – Respondo. O que mais podia dizer?

Logo o bonitão percebeu que do meu mato não sairia coelho

-Tio, quer mesmo saber? – Ele me fulminou. Eu sinto sua ira

-Quero! É justo que digas! – Devolvi, afinal é assim que nos fortalecemos para a democracia.

-Tu é um babaca reacionário – Ele devolveu com todas as letras. É estranho, mas os jovens de hoje sempre acham que os sujeitos com mais de 60 anos são reacionários, de direita, fascistas, ou do TFP e outras barbaridades. Eu apenas sorri para ele.

-E tu, sabes o que acho? Tu és nada mais que um filho de camundongo! – Replico com um risinho de desdem impregnado nos lábios.

O garoto apenas me olhou, e agora o seu ódio era mortal. Talvez estivesse lá pelos 20 ou 21 anos, um touro de academia, a montanha de músculos talvez adquirida nos anabolizantes, "ou não", como sempre dirá o sábio Caetano.
Seu olhar continuava desafiador, porém eu sabia que se tratava de reles pressão psicológica, pois poderia me trucidar se assim o quisesse.
Mas não o fez, talvez porque seus músculos pensassem, talvez pelo Estatuto do Idoso, ou por ter desconfiança que acabaria se metendo em mais complicações das que provavelmente estava.

-Garoto, escute! Vamos colher lagostas e mergulhar com as sereias? – Propus para ele num tom amistoso, fornecendo um sorriso mais que aceitável

-Hããã? Você está louco, velhote? – Foi a sua resposta-pergunta. Tudo bem, inclusive eu a previa.

Antes de desistirmos olhamos um para o outro pela última vez.
Ele, talvez pensando na reposição do aparelho, e de como chegaria no pai com a melindrosa conversa que um bando de “reacionários" quebrou o seu Ipod" intencionalmente ao darem conta da vermelha estrela petista cravada no peito da negra camiseta (à esquerda,bem  próxima ao coração)
Eu, por meu lado apenas abandonei as dependências do metrô e olhei para o firmamento à procura de tempestade.
Como o céu estava repleto de nuvens negras que não desaguavam suas lágrimas, pensei nas lagostas e nas tais sereias que, por aquela hora poderiam estar me aguardando nas profundezas do mar.
Eu apenas sorri quando voltei com o corpo e o vi recolhendo os pedaços do aparelho para guardá-los em sua mochila de grife.

De fato! Aquele Mister Qualquer Coisa jamais saberia o que era o mar.

Copirraiti16Fav2014
Véio China©