sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Cicatrizes


I - Desempregado metido a escritor

Eu andava às voltas com dois dos meus maiores problemas: por mais que tentasse, nunca fora o suficientemente bom com empregos, menos ainda com as mulheres. E dessa forma eu resistia heroicamente naquele mês às custas da última parcela do meu seguro desemprego, que mal dava pra comer e pagar o quarto onde morava.
Já não me bastassem essas adversidades, eu incluíra outra no rol que, um tanto adormecida aflorava nos infindáveis períodos dos meus desempregos: acháva-me escritor. E essa fixação me fazia zanzar por aí à cata de editores e redações de jornais, na esperança de ser publicado, o que me permitiria sobreviver e quem sabe, talvez, me sobrar o suficiente pra um daqueles frangos domingueiros – eles haveriam de reconhecer o escritor que eu era – Mas, apesar da aparente auto-confiança, impreterivelmente ouvia-lhes a sentença da mesmice de sempre:

-Sr. Jeff – Era assim que eu gostava de ser chamado – Os seus textos nos parecem interessantes, porém, um tanto distantes da nossa linha editorial. Assim que precisarmos de algo nesse gênero contataremos o senhor – Diziam com sorrisos incertos, vestidos em ternos de cortes executivo.

Incrédulo eu me perguntava; Como deixaram de agarrar uma oportunidade dessa? – Como não sabia o que me responder conformáva-me para depois penitenciar-me da própria culpa: Nós, que nos imaginamos escritores, julgamo-nos uma espécie de seres especiais, gênios que percebem o mundo de forma inteligente e egocêntricos o suficiente para não vermos nada à nossa frente que não sejam os encaracolados pentelhos do saco. E isso nos tornava uma mentira, sonhadores tapeados, arrogantes o suficiente para fazer que nenhum emprego estivesse à nossa altura. Portanto, assim, não foi diferente comigo ao me custar serviços não tão nobres que, recusados afastaram-me das caçambas dos caminhões, dos aventais e minha pança resvalada em balcões.
E assim, mentiroso, eu me sentava diante da velha Remington e insanamente martelava as teclas como se a qualquer momento fosse surgir a idéia para uma história genial, capaz de me tornar num best seller: Evidente mais um dos meus enganos: nessas horas a verdade prevalecia e a idéia nunca vingou.
Também, não foram poucas as vezes que exausto diante do "carroção" eu me rendia ao sono e tinha pesadelos absurdos: Num deles, a máquina ria sarcasticamente das minhas estórias para depois assassiná-las ali nos rolamentos metálicos do seu cilindro. E até nisso não havia qualquer engano: até a máquina de datilografia sabia que eu era um blefe.

II – Conhecendo um anjo

E são nessas horas, justamente em fases de marés bravas que as mulheres se aproximavam de mim. Recordo-me que uma deliciosa jovem surgiu do nada ao nos esbarramos casualmente na fila do caixa do “Bullet Café” . Eu estava lá graças ao dinheiro de uma estória bizarra que acabara de vender para um semanário de bairro. Nela, eu retratava as traições entre os animais , principalmente o da hiena que, ao dar a cria, confessou ao parceiro que ele nada tinha a ver com os filhotes que acabara de conceber. E ele, diante da rudeza do golpe deprimiu-se, e não suportando a zombaria dos pares, achou melhor morrer, e gargalhou, como nunca, até a chegada da morte. Um texto absurdo, mas que para mim funcionava como fábula: Um ponto de vista crítico aos seres covardes que nos tornamos quanto a nossa falta de reação a todos tipos de maracutaias que nos impõem, e sem que isso nos abale e nem nos faça tomar qualquer atitude: simplesmente rimos e comemos a merda que nos fazem engolir.

Bem, o fato é que gostaram e isso me fez estar naquela fila e conhecer Sheila. Acontecido o esbarrão ela me olhou um tanto curiosa – devia estar se perguntando o que poderia estar fazendo um sujeito como eu, perdido ali no meio daqueles jovens perfumados – Talvez tenha sido a minha cara amarrota e o terno puído e em desalinho, ou quem sabe, a culpa tenha recaído nos meus óculos de lentes escuras, apesar das 10 da noite. Eu não sabia, apenas continuava fitando-a e percebendo que a amiga que a acompanhava parecia não compartilhar da mesma curiosidade puxando-a insistentemente pelo braço e encarando-me com cara de poucos amigos. Sem alternativas, sorri-lhes amistosamente antes que desaparecessem no meio dos rostos alegres dos freqüentadores.
Ao ir, Sheila me olhou persistente e lançando os cabelos para o lado, disse-me:

-Estou indo para o Saint Germain!– Comunicação feita, novamente sorriu e se foram a tempo de ainda vê-las saindo do café. O Saint Germain era um desses bares de jovens de classe alta, onde o dinheiro pago por uma única cerveja me faria comprar umas três ou quatro nos botecos próximos de bairro.

Pensativo, avaliei os prós e contras de ir naquele bar. Talvez, chegando lá, ela, arrependida, nem me desse bola, ou se na paquera de alguém fizesse que não me conhecesse. “Há de se correr riscos” – disse decididamente para mim ao dar a partida no carro e rumar para onde ela dizia estar.


III – O desempregado encontra o Bar

Chegando lá, escolhi uma mesa pequena, de canto, e pedi uma cerveja. Eu tragava a segunda garrafa quando algo começou a me irritar: os garotos falavam demais, riam excessivamente e demasiadamente alto. Nervoso, pedi mais cervejas: eu me pegava tal qual a hiena que morrera por com a merda que a fizeram engolir - Eu não necessitava engolir nada e estar ali fora opção – Aceitando definitivamente o fato eu a procurei insistentemente, passando os olhos por todos os rostos sorridentes mas não a achava, num lugar que a cada minuto se abarrotava mais. Então pensei na minha irritação e se haveria outros motivos que me faziam intolerante: talvez fosse o fato de não ser um deles, de estar me tornando velho, uma espécie de Charles Bronson tupiniquim , ridículo, esquecido, pateticamente vestido num par de lentes de sol apesar das 11 da noite. – supus–

Assumida a intolerância, jamais deveria deixar me esquecer que eu fora um jovem igual aos que estavam ali, e que, como eles, gostava de badernas e das farras com os amigos. Claro, os tempos foram outros: mais tranqüilos, menos competitivos e avassaladoramente mais romântico. Porém, o deles, apesar de toda agitação, jamais seria como o meu – concluí num sorriso vitorioso –

E perdido nessas avaliações e emborcando copos após copos foi que senti a nostalgia me invadir: o álcool finalmente surtia efeito e me fazia compreensivelmente fixar-me nos bicos dos sapatos. Sobre mesa, cinzas espalhadas, caídas de um cinzeiro abarrotado de pontas de cigarros, e eu persistia fumando e eles se amassavam nos cantos da minha boca e expeliam uma nébula fétida, escura, que bailava no ar e misturava-se ao cheiro adocicado das madeiras que revestiam o lugar, quando recordei a minha vida, os meus amigos e as poucas e boas garotas que tivera: “Por onde andarão? Será que ainda vivem?” – questionei-me–


IV – Reencontrando o anjo

Eu também não sabia, apenas persistia ali pateticamente quando uma sombra ofuscou a claridade da luminária presa ao teto. Levantei o rosto e dei de cara com Sheila me fitando desafiadoramente. Devolvi o olhar – o que poderia querer uma garota daquelas ? – Insisti novamente - Eu não fazia a menor idéia e nem via muito sentido naquilo– “Talvez tenha se cansado dos garotos perfumados” – tentei me convencer como se fosse necessário justificar o fato de tê-la ali – Como as conclusões não me vinham achei melhor não mais especular os motivos - “O importante, seja qual a razão, é que ela me escolheu” – disse para mim ao sorrir anônimo e satisfeito -

-Oi! Posso me sentar aqui? – Perguntou-me ansiosa, puxando levemente a cadeira que estava do meu lado.

-Claro! – Confirmei sem me levantar

Era mágico ter aquela garota na minha frente. No corpo de curvas perfeitas um vestido amarelo, vivo e curto o suficiente para deixar à mostra o milagre de um fantástico par de coxas . Ela ainda procurava por onde começar:

-Nossa! Você me lembra um ator de cinema. Ô, ô, ô! – Dizia, estalando os dedos, tentando lembrar o nome do sujeito. Como não fazia progressos resolvi ajudar:

-Charles Bronson? –

-Não! Você não se parece com Charles Bronson – Exclamou convicta, porém persistindo no estalar de dedos.

Então pareceu lembrar-se:

- Ah! É o Freeman! Você se parece com Morgan Freeman – Exclamou freneticamente como fosse a lembrança mais importante do mundo. Como resposta obteve de mim a minha expressão de incredulidade - “Caracas! Deve ter algo de errado com essa garota!” – disse comigo mesmo - “Freeman é negro, alto e magro. Eu sou branco, médio e um tanto encorpado” – concluí ironicamente –

Porém, deveria haver algo que nos aproximasse e então continuei procurando o que me assemelhava a Morgan Freeman:

-Ah! Já sei! É a barba grisalha! Sorri-lhe compreensivelmente enquanto Sheila se ajeitava na cadeira.

Sentada, pediu sua bebida e começamos a fazer os primeiros contatos.
E foi conversando que nos conhecemos melhor. E então me falou do último ano de jornalismo, se confessou fanática por computadores, roupas de grifes, bares da moda e todas essas coisas dos jovens. Eu a olhava extasiado e tentava aceitar o fato dela ter se interessado por mim. Eu me revigorava diante de Sheila que poderia ter no máximos uns 22 ou 23 anos – “ o que essa menina quer de mim?” – me perguntei novamente - Talvez eu sentisse algum complexo , talvez eu achasse que me faltasse algum contraste e então tentei me esquecer disso enquanto conversávamos e bebíamos: e aquela menina bebia muito e após a emborcar a 4ª ou 5ª dose da sua vodka favorita deu de implicar com minhas lentes negras:

-Cara, tu ta uma figuraça com esses óculos! Só que ele é feio demais! – Ria, quem sabe curiosa dos motivos que me faziam usá-lo. Pensei em justificar-se em qualquer bobagem, mas me pareceu tão ou mais idiota do que o próprio fato de o estar usando, que achei melhor deixar pra lá.


V – O anjo perdido

Novas bebidas vieram e já fazia um bom tempo que estávamos conversando, tornando-nos cada vez mais íntimos e cúmplices quando me falou do pai. E falando dele tive a impressão de sentir-lhe certa amargura: era filha de um desses figurões que vivem metidos na mídia. Como retribuição, de mim soube apenas que eu era um duro e metido a escritor. Continuamos conversando, porém seu olhar estava distante, e a sua alegria parecia não ser a mesma de momentos e o que me fez tentar não deixar a bola cair e entrar num papo sobre literatura e me surpreender ao saber que curtia o Jack Kerouac. Pra mim surpresa, já que ela me parecia uma dessas garotas românticas, mais fanática por Sidney Sheldon do que Mickey Mouse. E isso pareceu animá-la e com o sorriso retornado comentei que gostava de algumas das coisas que havia escrito, mas que meus favoritos eram Céline, Fante e Buk. Ela estremeu ao ouvir o nome desse último:

-Está falando de Charles Bukowski, por acaso? – Perguntou assustada

- Claro! - Confirmei

Antes mesmo que eu tecesse qualquer comentário sobre o por que da minha predileção, Sheila exclamou algo que me fez gargalhar:

-Eu não faria amor com aquele “Velho Safado! nem que ele fosse o único homem do universo!

Ainda eu gargalhava quando concordei com ela:

-Nem eu! – respondi.

Definitivamente parecia-me que ela havia esquecido das introspecções de momentos antes, e um tanto“tocada” sua voz ecoava pastosa que as vezes não me permitia entendê-la, perfeitamente. Olhei no relógio e me surpreendi com o horário:

-Caracas! São duas e meia da matina! -

Ela me olhou e com ar de desinteresse se manifestou:

-E daí que são duas e meia da manhã? –

Não respondi, apenas continuei fitando aqueles olhos negros e sua feição de anjo perdido. Com o rosto apoiado entre os dois cotovelos me perguntou:

-Cara, cê ta de carro aí? –

- Estou! – confirmei.

Então fez charme e naqueles lábios carnudos me convidou:

-Vamos dar umas bandas por aí? Só não vou com o meu porque não estou legal pra dirigir. Passei um pouquinho da conta! – Disse num sorriso ébrio, sinalizando a sua condição através de um pequeno vão entre os dedos indicador e polegar.

Sorri, aceitei o convite e concordei com ela; não havia a menor condição de pegar um volante. Enfim, era tudo o que eu queria e precisava.
Pedimos a conta que ela fez questão de pagar com o seu cartão de crédito – “ A próxima é sua ” – me disse ao assinar o boleto - grana jamais seria problema pra Sheila – Quanto ao seu carro, resolveu que ele permaneceria no estacionamento do bar e pelo jeito já estavam acostumados com esse desfecho -

-Amauri! Mais tarde eu venho buscá-lo – Disse ao eficiente gerente do lugar. Amauri concordou e sorridente nos viu sair para o estacionamento onde meu carro também se encontrava. Ao chegarmos, abri-lhe a porta do passageiro e ela exclamou alto:

-Que porra é isso? – Claro! se referia ao meu Gol 1989.

-Um automóvel – Respondi um tanto sem jeito.

-Cê ta louco meu! Isso não é um automóvel. Isso é uma carroça! – Contestou gargalhando.

-Bem! É isso ou nada! – Tentei impressioná-la.

-Bora! – Ela concordou entrando no veículo.

Tão logo sentou, passou o dedo indicador pelo painel e se surpreendeu ao vê-lo impregnado de um pó negro e pegajoso.

-Porra, Jeff! Que seja velho, até que vá. Mas, imundo desse jeito? Pelo amor de Deus, né!

Não respondi. Sentado, notei-a com o canto do olho e percebi que batia as mãos espalmadas no colo do vestido na tentativa de retirar a poeira que se levantou ao sentar-se. Aquilo me deixou meio constrangido e ela percebeu e tentou consertar:

-Ahhhh Jeff! Não liga não, vai! É que sou chata, mas com você eu vou pra onde quiser – Disse meigamente, virando-se para mim espremendo os seios no meu braço direito. Depois, bruscamente virou o meu rosto na direção do seu e me beijou selvagemmente.


VI – O anjo, o motel e o recepcionista

E a beijando, eu senti o sabor de todo o álcool que desprendia de sua alma. Senti o gosto da língua, entrando e saindo da minha boca, colando na minha como se fossemos dois pedaços de carne crua, dois órfãos miseráveis e desejosos; ficava claro que aquela noite seria especial e seria findada com uma bela trepada. E pensando nisso me ocorreu a dúvida; ou um motel ou meu quarto de pensão. Pensei por instantes e decidi por um motel já que as paredes do meu quarto eram demasiadamente finas e indiscretas. Resolvido, rumei para um que já conhecia de outras paradas; um local simples e de pernoites em bem em conta. Certamente aquém do que Sheila gostaria ou estava acostumada, mas, era o que meu dinheiro poderia oferecer. Além do mais, fazê-la ou deixá-la pagar por um motel de primeira seria demasiadamente constrangedor. Ao entrarmos, se tornou indisfarçável a falta de classe do lugar, que ficou evidente mediante a observação do atendente ao lhe dar o meu documento: ele olhava descaradamente para as coxas de Sheila, que sentada com as pernas abertas não se dera conta que o vestido subira, ficando rente à calcinha:

-Aê heim “tio” Tu não é fraco não! – Disse piscando um dos olhos, maliciosamente.

Achei uma desgraça aquela observação.

-Vá se foder, cara! – Respondi enquanto pegava as chaves da suíte número 13. Antes de sair fui obrigado a ouvir outra das suas observações idiotas:

-Hum...cuidado com o número 13! Dizem que não dá sorte!– Disse num tom de chacota.

Olhei-o com indiferença. Podia novamente mandá-lo se foder ou mesmo descer e dar-lhe umas boas porradas, mas, seria pura perda de tempo, e tempo era coisa que não queria perder. Saí dali e rumei para o estacionamento da suíte ouvindo as gargalhadas e gozações de Sheila:

-Aê heim “tiozão”! O cara foi campeão com essa!

Estacionado, descemos e entramos no quarto e ela quase perdeu o equilíbrio ao tocar com força uma das pernas na outra. Antes mesmo que eu a fechasse a porta, Sheila se despiu e ficou unicamente de calcinha e sutiã. Eu olhava fixamente para o meu presente e novamente me perguntei o que me fizera merecer. Sheila exalava sexo e aquela lingerie branca e transparente aprisionava seios fartos que pareciam clamar por liberdade e se verem libertos daqueles bojos de rendas delicadas. Tudo, absolutamente tudo se acomodava nela e no seu corpo, perfeito, natural e bronzeado.

-E aê tio! Gostou de mim? – Perguntou desafiadoramente enquanto desfilava, requebrando como manequim.

-Dá pro gasto! Dá pro gasto! – Devolvi, olhando para as curvas da sua bunda, firme e arrebitada

Como era de se esperar, ao tentar girar esbarrou novamente as pernas e sem conseguir manter o equilíbrio, estatelou-se dessa vez sobre o desgastado carpete do quarto. Caída, esforçou-se para se levantar mas não conseguiu. - Procurei não intervir - Num novo esforço atingiu a borda lateral da cama e apoiada nos dois cotovelos impulsionou o corpo e conseguiu manter-se em pé.

-Tá vendo, tio? – Riu-se ao se despachar, atirando-se na cama e procurando no “radio-toca fitas” uma estação Fm. Repentinamente, um som de guitarras distorcidas invadiu o ambiente e me irritou; ela, pelo jeito, encontrara a sua estação favorita.

-Que merda é isso? – Perguntei tapando os ouvidos.

-Merda? Cê ta louco tio? Esses caras são os “Simple Pain”! – Respondeu, cantarolando a música enquanto deitava de costas pedalava as mágicas pernas no ar, como querendo acompanhar o ritmo frenético e insano das guitarras.

Eu, por meu lado, procurei e encontrei o cabide fixado atrás da porta. E achado, me despi, ficando de cuecas para depois dobrar a calça e a camisa e as guardá-las nele, tomando o cuidado para que não se amarrotassem ainda mais como se isso tivesse alguma importância Assim que a música terminou, ela me percebeu quase nu. Novamente eu ouvi as suas gargalhadas que começavam soar bem familiar:

-Mas que porra ta fazendo esse pintinho aê, tio? Exclamou.

O “pintinho” que ela se referia era a figura de um pinto, a cria da galinha que estampava a parte da frente da cueca. -Eu ri desajeitado – Ela me fora dada de presente por uma das garotas da firma onde eu trabalhava; foi por gozação num amigo secreto de fim de ano. E, além do mais, se eu tivesse bola de cristal e previsse que uma noite daquela aconteceria, jamais vestiria a tal cueca. Bem, o fato é que ela ria e eu, tentando me livrar da sua zombaria convidei-a para tomarmos banho:

-Não,Jeff, agora não! Vá na frente que depois eu tomo. Gosto de tomar sozinha – Respondeu embolado e sem que quase a entendesse.

Entrei no chuveiro e fiquei por lá uns 20 minutos com a água escorrendo pelo corpo. Naquela noite eu queria estar bem desperto - eu merecia –
Ao terminar, me enxuguei e enrolei a toalha na cintura e voltei para o quarto. Ao entrar, Sheila ressonava alto e do canto da sua boca um ínfimo filete cristalino escorria lentamente na direção do queixo – “Enfim o álcool te venceu, garota!”– sorri - Mas, mesmo assim, vendo-a desfalecida, continuava sendo mágico desfrutar aquela beleza toda, perceber os seus cabelos longos e perfumados, uma obra de arte em forma de mulher.

-Sheila! Sheila! – Tentei acordá-la, tocando-a sutilmente com a mão.

-Hã, quê! – Foi a sua resposta. Ela tentou abrir um dos olhos para depois cerrá-lo novamente.


VII - Volúpia

E a situação me fazia vê-la como refém, rendida aos meus impulsos mais profanos, e daquilo tudo que eu quisesse fazer. A idéia de tê-la sem o seu consentimento me excitou. Rapidamente me desvencilhei da toalha e subi para a cama e comecei a beijar os dedos dos seus pés, um por um. Ela, incomodada, apenas os mexia.
Extasiado, destravei o fecho do sutiã, libertei os fantásticos seios; eram lindos. Com um suave toque de ponta de língua toquei o seu mamilo que se enrijeceu e a fez sussurrar algo que mal compreendi. Novamente voltei para as pernas e com a boca fui subindo dos pés e em direção do seu órgão.
A minha língua salivava ao se deparar defronte da calcinha. Extasiado, puxei sutilmente o elástico, separando-o da carne e até que o seu sexo surgisse. Ela sussurrou novamente e dessa vez ouvi os “não, não,não”. Aquilo não me deteu, ao contrário, excitou-me ainda mais a visão. O elástico ao ceder, deixou exposta a sua vagina e uma mistura de cheiro de sexo e desodorante íntimo impregnou-se em minhas narinas, espalhando por todo ar em volta. E então, enfurecido como o leão que mata para não morrer penetrei-a bruscamente com a língua. Ela, ao sentir-se penetrada, estremeceu e depois choramingou algo que pude entender:

-Não, papai! Por favor, não! A mamãe pode estar por aí. Por favor, não faça isso! – Ela balbuciava, aflita, remexendo as pernas, pressionando uma contra a outra como pretendesse lacrá-las

Aquilo me surpreendeu e achei que naquele instante ela pudesse estar no meio de um terrível pesadelo.

-Sheila! Sheila! – Toquei-a mais fortemente, sacudindo seus ombros.

Ao contato do novo toque sussurrou como se estivesse confessando seus pecados num confessionário:

-Tá bom papai! Não me bata! Por favor não me bata. Não conto nada pra mamãe - Concluiu, com os olhos fechados e deixando perceber duas pequenas pérolas rolarem nas suas faces.

Foi aí que eu pude perceber tudo: não era somente um pesadelo, era quase real. Foi ali naquele momento que dei conta do que se passava: o pai de Sheila a molestava.
-“ Há quanto tempo isso deve estar ocorrendo?” – me perguntei - Eu não sabia - Só percebi que naquele momento ela sofria. Ainda, sem saber como agir, acariciei suavemente a testa e os cabelos:

-Calma, filha! O papai não vai te machucar. O papai nem vai te tocar – Disse-lhe sussurrando docilmente num dos seus ouvido.

Repentinamente ela se acalmou, sua respiração ofegante foi se normalizando e ela virou para o lado e após remexer-se uma ou duas vezes e dormiu em paz Assim que via tranqüila deite-me por cima do edredom e fiquei pensando por algum tempo em tudo o que ocorrera. Passado um bom tempo meus olhos pesavam e então o sono veio e me pegou.

Acordei sobressaltado diante de uma Sheila que animalescamente sugava o meu pau; demasiadamente ereto e naquele ritmo eu gozaria rapidamente – sabia disso – Então, Instintivamente rolei para o lado e ele escapou da sua boca.

-Qualé, Jeff? – Olhou-me surpresa – Vêm aqui, vêm! Eu quero esse “pintinho” pra mim!

Eu nada respondi e apenas olhei pelo vão da porta e a claridade da luz do dia denunciava que já amanhecera.E foi ainda mais desapontada que ela me viu vestir as roupas. Provavelmente sentindo-se humilhada, fez o mesmo.
Silenciosos abandonamos o quarto, entramos no carro e rumamos para a recepção: Para o meu azar, o mesmo imbecil ainda se encontrava por lá – “provavelmente é o final do seu turno” – praguejei comigo – Olhando-o rudemente pedi a conta e paguei. Assim que me devolveu o documento ouvi-o falar:

-Aê, heim tio! Assou um peixão! – É e sempre será assim; idiotas, dificilmente ficam com a matraca fechada!

O sangue me subiu e pensei em sair do carro e dessa vez, mas isso não faria melhorar a situação em nada. Olhei com indiferença para ele e aquele jamais seria um lugar de classe e a culpa era só minha. “ O que esperar de um pernoite de 45 pratas? Suíte com cascatas naturais? Faça-me o favor, senhor Jeff!” – justifiquei-me para depois me conformar–

Dando a partida, olhei para o espelho lateral e percebi que Sheila permanecera com o braço esticado para fora da janela e fizera um sinal para o imbecil, direcionando o polegar para baixo num evidente sinal que a noite havia sido um fiasco.
Surpreso, rapidamente voltei-me para o espelho retrovisor e vi o desgraçado estremecer numa gargalhada – ele entendera o significado do gesto de Sheila –
Aquilo me aborreceu e, momentaneamente, pensei em me vingar de ambos: jamis poderiam imaginar o quanto eu poderia ser ferino. Pensei por instantes e controlei a raiva: vingar de quem e pra que? Do idiota? Da Sheila?
Não, definitivamente não. Ele era apenas um pobre miserável que batalhava em empregos de 500 pratas, com direito à panetone de fim de ano. Apenas um sujeito desesperado tanto quanto eu, tentando levar meia dúzia de pães e um litros de leite para as crianças no café da manhã. E quanto a ela?: Oras, Sheila era simplesmente a vítima.


VIII - Cicatrizes

E era essa a idéia que eu fazia ao abandonamos as dependências do motel. Ainda calados fui engatando marchas, comendo asfalto, rumando na direção do estacionamento. Olhava-a pelo rabo do olho e ela permanecia calada, séria. Eu torcia por aquele anjo de mau humor.. Torcia por aquela garota e para que em algum ponto de sua vida surgisse alguém que curasse suas feridas. E que curadas, nada mais restaria que não fosse aquelas profunda cicatriz cravada em sua alma. Torcia para que nunca se visse fraca e que enfrentasse esse golpe e se tornasse forte e o suficiente para perceber que travara a mais dura das suas batalhas, que se ferira mas não morrera. E esse alguém, por mais que eu quisesse ser eu, jamais poderia sê-lo. Ao seu favor conspiravam toda a sua juventude e a misericordiosa possibilidade que lhes é dada de se refazerem dos revezes da vida e conviverem com suas cicatrizes. À meu, quase nada, a não ser a experiência de saber ficar calado e não complicar ainda mais as coisas. E esse era um desses momentos.


Evidente, eu não era o seu pai, mas naquele momento não haveria nada que me fizesse sentir como se não fosse. E aquilo doeu em mim ainda mais que as dores da máscara de ferro que me visto e só me faz complacente com as próprias desgraças. Definitivamente, eu estava cansado de tudo aquilo. Estava cansado de ser meu acusador e juiz. Havia vida afora de min. Haviam dores maiores que as minhas: dores que não se curavam com pinceladas de merthiolate mas que, não sendo próprias jamais compartilharia. Eu não queria ser o salvador do mundo ou a besta do apocalipse. Eu queria apenas viver. Não queria mais me sentir enojado com as desgraças, não queria ser mais um atleta insensível, mesquinho e preocupado unicamente com os 100 metros rasos das suas próprias emoções.


IX – Redenção

Ao chegarmos, meus olhos marejavam e eu me esforçava para não piscar e nem deixar a lágrima cair, mas o seu humor não a deixou notar. Ao saímos do carro e ela acenou para o senhor que tomava conta do local. No pátio apenas o seu carro aguardava, solitário.
Lentamente ela caminhou até lá, e entrou e deu a partida. Com o carro em movimento veio rápido na minha direção, ali parado junto ao portão de entrada. A quase 2 metros do meu corpo freou bruscamente e depois deixar o carro rolar suavemente até postar-se do meu lado. Parada, eu a vi procurar por algo no porta luvas do carro. Assim que o achou, retirou um pequeno estojo embrulhado em papel de presente. Olhou para mim, sorriu e me entregou. Mais surpreso que assustado eu o abri na sua presença: um importado e caríssimo óculos de sol - Eu não tinha condições de ter um daqueles -

-Era o presente do meu irmão. Hoje é aniversário dele! - Disse, justificando o presente-
E além do mais, esse seu é pavoroso! – Completou, cerrando os olhos e meneando negativamente a cabeça num sinal de desaprovação.

Eu agradeci pelo presente, retirei os óculos, coloquei no rosto, me vi refletido no vidro esverdeado do carro, e gostei de como ficou em m mim.

-Até qualquer dia, tio! – Exclamou, divertida, assoprando-me um beijo escapulido do centro da palma da mão

-Até qualquer dia, beleza! – Respondi com uma certa tristeza na alma. – eu havia jogado fora a única chance – eu sabia disso também.

Então, bruscamente pisou no acelerador e o motor rugiu forte e alto como era de se esperar de um BMW conversível. Assim que a marcha automática entrou em 1ª, o carro deslizou suave, esperando que o tráfego permitisse entrar na via. Passado o último veículo, Sheila acelerou e entrou. O seu último sorriso ainda foi o mesmo e se manterá forjado na minha lembrança para sempre como lembra o gado o ferro que o marcou.

E então, o carro seguiu em frente até não lhe perceber mais a forma e nem ouvir o barulho do motor. Ao se aproximar da esquina era somente algo
quase abstrato e de uma cor prateada. Com a luz de seta ligada, Sheila dobrou à esquerda para nunca mais vê-la.

Talvez estejam certos em afirmar que a vida é feita de novas chances.

Talvez eu não esteja errado por não acreditar nelas, jamais .



By Véio China,
ago/2008