domingo, 29 de abril de 2012

Marcela, Eu, e um fim de semana na roça;

Eu e Marcela continuávamos a nos corresponder normalmente, dessa vez por celular. Tornou comum falarmos diariamente por horas, algo quase parecido com a dependência química do drogado.
Eu podia sentir a emoção em cada palavra que trocávamos, cada carinho ofertado em cada poema que recitava para ela. Marcela adorava poesias, flores, pássaros. Adorava o sensível ao truculento, testemunhado em muitas das fotos que publicava no seu blog, onde além das fotografias registrava  poemas de ótimos e desconhecidos escritores, desses que não vivem da fama e nem do status conseguido no mercado literário, prém,  donos de uma nova forma de sentir e poetizar.
Eu relembrava o dia que nos conhecemos na fila de supermercado e do quanto ela era fã do Velho Zina, o personagem central do meu único e fracassado livro. Permanecíamos ao telefone e eu recordava que desde aquela época ela nunca mais me chamara pelo nome, mas sim pela alcunha carinhosa de “véinho”

-Véinho, vem cá! Estou pensando em me dar um belo fim de semana e...

-E... – Retruquei

-E... bem...To pensando em ir pro meu sítio. Acho que nunca te falei dele. É um lugar lindo, herança de uma tia. Acho que você adoraria passar o fim de semana por la... Quase todas as minhas fotos foram tiradas nele....

Um sítio? Ora, eu não sabia que Marcela tinha um sítio. Claro, havia suas fotografias de vales, montanhas, gente humilde, dessas da roça, mas supunha que fossem marcas de suas andanças por um mundo seu que não o meu.

-Bem... sei não se vai dar pé! Domingo tenho jogo pelo campeonato paulista de bocha – Balancei os ombros numa espécie de “ta difícil”.

-Por Fróid, campeonato de bocha é foda, véim! Só comigo que acontece essas coisas!  – Ela protesta num tom de desencanto.

Pelo visto a contrariedade foi tanta que eu podia ouvir-lhe a respiração nervosa após o obstáculo colocado. E pra falar a verdade talvez nem fosse uma boa idéia e eu simplesmente não estava acostumado com o reino rural, e o máximo que conhecia dele fora em criança  quando passei uma ou outra férias numa fazenda de cana e açúcar onde meu tio era o contador do escritório.

-Ah véinho! Larga de má vontade. Você vai adorar, aposto! Dá pra pegarmos um sábado todinho. E não se preocupe, no domingo na hora marcada estaremos de volta para o seu campeonato de... de ....bocha.

-Hum... você acha que dá mesmo? – Pergunto tentando disfarçar a ansiedade.

Talvez fosse o receio de estar ao lado dela por mais tempo que o gasto com a sessão de cinema que por vezes  íamos, ou às peças de teatro que tanto queria ver, e assim mesmo depois de muito insistir.
E essa apreensão nada tinha ver com as vacas que talvez estivessem zanzando pelo pasto. Porém, a possibilidade de ficar bem próximo daquela garota avivava em mim uma esperança desenfreada, afinal eu a queria bem mais que longas conversas por celulares ou as rápidas sessões de cinema e teatro. E outra, e isso sim me preocupava; Ela não sabia que me apaixonara por ela e que ansiava por cada uma de nossas conversas como se fosse detendo à espera da clemência do governador que evitasse a cadeira elétrica.  "Cadeira elétrica?" - Sussuro comigo mesmo e depois rio da comparação única e sem fundammento.

-Bem... Acho que vai  ficar  muito em cima da hora. E se a gente deixasse pra semana que vem?  – Propus para não parecer demasiadamente interessado.

-Semana que vem uma pinóia! Tem que ser agora, nesse momento! – Ele responde com um daqueles seus gritinhos eufóricos- Te dou duas horas pra arrumar as coisas, passo por aí e te pego.

Por todos os santos! – Pensei - Eu jamais conhecera alguém assim tão louca e impulsiva. Enfim, sexta feira, nenhuma idéia sobre o que escerver, era pegar ou largar.

-Pego! Ops, quero dizer, então vamos, va! – Disse-lhe como se fosse minha única opção.

Desligamos o telefone a uma hora da tarde e Marcela recomendou que não ma atrasasse, pois queria chegar antes do anoitecer. Lá íamos nós para Minas Gerais, precisamente para o sul, coisa duns 350 km de Sampa.
No horário marcado Marcela estava na frente do meu prédio, calça jeans, justa, camiseta floral ao estilo baby look, além das escuras lentes do seu habitual Rayban. Olhei para ela, para sua rebeldia, para toda a sua juventude e foi inevitável compará-la a Bonie, a famosa personagem que junto de Clyde atemorizou boa parte dos bancos americanos.
 Às pressas eu fizera minha mala e nela jogara duas calças, camisas de mangas longas, camisetas, bermudas, e três pares de meias brancas, afinal sempre tivera predileção por aquela cor.

-Véinho... onde você pensa que vai?

-Ué! Como assim? – Ela olhou meticulosamente para mim e riu. E eu fiquei me perguntando o que podia de haver errado com o meu terno da Garbo. E olha que eu nem havia colocado a gravata de seda, vermelha.

-Véio, tu é uma figuraça! – Ela disse num tom de gozação enquanto eu acomodava a mala no porta bagageiro do veículo.

Chegamos ao seu sítio no fim do entardecer em impressionantes três horas de viagem. Até hoje me pergunto como alguém podia ter o pé tão pesado e dirigir daquele jeito irresponsável. Não houve  paradas, sequer um café, um biscoito, ou o necessário esvaziamento da bexiga. E o pior, por duas ou três vezes cheguei a pensar na dama de negro e que ela  viera me buscar tal a fúria e velocidade daquele modelo esportivo de ótima pegada. Na última delas eu disse um “Deus, perdoai esse pecador” arrependendo-me  por cada pecado que não cometi quando os pneus gemeram numa curva de alta, talvez a uns 140 por hora. Ao descermos do carro o suor escorria pelo meu rosto pálido, descorado, e uma vontade enorme de ir ao banheiro me agoniava.

-Ta tudo okey com você, véinho? – Ela pergunta ao estirar o corpo e espreguiçar as costas.

-Claro, claro! Ta tudo bem comigo, sempre to bem! - Era bom que ela soubesse que ali tinha um  macho,  pedigree de ranço italiano, apesar das malditas cólicas intestinais.

A noite chegou  e nela conversamos um bocado. Falamos sobre nossas vidas, expectativas, alegrias e tristezas. Falamos sobre o amor e de algumas marcas que ele sempre deixa em nós. Era mais que provável que eu e Marcela fossemos dois sujeitos a espera de algo bom, e isso se percebia em nossos olhares. Estávamos nos tornando demasiadamente sensíveis quando por volta das 22 horas, ela sentencia que ia dormir. Sim, Marcela cultivava hábitos normais, vida normal cercada de coisas normais, exceto eu.
Assim que ela se foi me dirigi para a varanda e admirei a noite.
No céu salpicado de estrelas algumas reluziam mais que outras. Não havia o barulho dos motores, os irritantes sons das buzinas e nem das pessoas discutindo no apartamento ao lado. Não havia o odor da poluição misturado aos sabores da minha devastadora insônia. Eu me entregava à escuridão e ela me dava mais que os faróis dos carros ou as luzes de saída de incêndio, ofertando-me pequenos vaga-lumes que piscavam no noite como se as fossem diminutas lâmpdas numa árvore de natal .

E era esta a atmsofera onde sorvia os cheiros do mato, da  terra orvalhada,  e a eles se misturavam o ar gélido que  impregnava minhas narinas, talvez afetando a sanidade dos meus pulmões tão afeitos à degradação da cidade grande. Naquele silêncio entrecortado  apenas pelo estritor dos grilos  ajeitei-me na cadeiras de balanço e no vaivén dos seu movimento traguei um, dois, três, quase meio maço de cigarros,  ato injusto de macular a perfeição que me cercava ,já  que vingava dentro de mim a natureza dum homem descuidado das coisas do campo.
Permaneci por ali  pensando na vida, questionando as fantástocas  maluquices de Marcela e no que o tempo poderia estar tramando para nós. Quando nada mais houve a pensar coloquei os dimintos fones de ouvido do celular e fiquei ouvindo as canções do Genesis,  safra  de 76, uma de minhas bandas favoritas. As canções em mp3 transportavam nostálgias, e talvez fossem 4 horas da madrugada quando os olhos pesaram e me retirei para o quarto. E foi deitado, revirando-me na cam que adormeci sonhando com carneirinhos de lãs brancas e grossas, quando...

-Véinho é hora de acordar! Seis e meia! – Ela sentencia adentrando o  quarto com estardalhaço.

-Hããã... Eu sou inocente, juro! - Respondo sonolento,  balbuciando  idéias embaralhadas, e  sem saber ao certo o porquê o último carneirinho não ultrapassou a cancela

-Inocente uma ova, véio! Borá levantar e acabar com essa moleza porque temos coisas importantes para fazer! E rápido porque ja estou terminando o café! – Ela exclama e depois bate a porta e sai.

-Por Deus! Que vida miserável é essa que fui arrumar? – Rumino um tanto mal humorado ao olhar as horas no celular –

Porém a cama estava tão quente e gostosa que cinco minutinhos a mais não fariam o mundo se acabar. Assim decidi viro para o outro lado e me agasalhar até o queixo com a maciez dum grosso cobertor com fibras antialérgicas.

-Não é possível! Não acredito no que estou vendo! –  Outra vez ela me acorda junto à porta e com a mão na cintura.

Só que dessa feita a voz é autoritária. Olho  novamente para o celular e percebo que os cinco minutos que me dei não duraram nem quatro, aliás, três minutos e vinte segundos. Raios! A vida sempre seria um oceano de incompreensão - Deduzí irritado.
Ela sai do quarto e eu me levanto e olho no espelho. Os cabelos fartos atrás e inconsistentes na frente estão espetados. A feição é cansada e as olheiras me marcam como a um vampiro acordado em hora imprópria para o breakfast. Olho novamente para mim e rio da cueca samba-canção azul marinho com  motivos amarelos do Piu-Piu que me fora dada por uma ex namorada - Ai amor, eu achei tão linda! - Judite me dissera à época. Assustado olho na direção da porta; Ninguém dessa vez. Ufa! Ainda bem que Marcela não me viu! – Sorrio sem jeito,  espreguiço o corpo e caminho  para o banheiro onde toalhas felpudas e coloridas me aguardam. Tomo um banho, escovo os dentes e penteio os cabelos. Enrolado na toalha apresso os passos no corredor e entro no quarto e me visto. Assim que saio  persigo o  cheiro do queijo e de café que sufocam a casa. Entro na cozinha no momento que ela retira do forno duas dezenas de pequenos pães de queijo.  Olho para a mesa e  pergunto-me se seria  hóspede dessas pousadas de algum gabarito. Na mesa guarnecida por uma bonita e branca toalha de linho se acomodam diversas frutas, broas, leite, frios, até uma embalagem do Sucrilhos Kellogs, além da  tradicional aveia Quacker.  Olho para Marcela e ela irradia frescor, juventude.

-O véinho dormiu bem?  - Me pergunta com olhos avivados.

-Claro, claro! Dormi como uma pedra! –  Confirmo bocejante - Era bom que ela soubesse que ali  estava um fantástico "estou pronto pra todas"

-Veinho, bora parar com essa moleza! Engula logo esse café e vamos cuidar do pomar. Temos que aparar os galhos de algumas árvores para que elas produzam bons frutos.

Concordando sentei à mesa e servi-me de café preto e do pão de queijo enquanto ela me inspeciona. Permaneci olhando para ela e os seus lábios repuxados num dos cantos da boca me diziam que algo não estava bem.

-Véinho, sinceramente? - Ela me promove a pergunta com seriedade no olhar - Depois continua: -   To vendo que você ta legauzinho com a camiseta do Doors, bermudas de ginástica em tactel, mas... por favor, tire os sapatos e essas horrorosas  meias brancas. Aqui na roça se anda com os pés no chão que é para sentir a força da natureza,  para permitir que ela entre em você...

-Okey, okey! –  Concordei depois de me inspecionar e verificar que aquilo era ridículo.

Voltei para o quarto e reapareci descalço. Antes de sairmos ela retirou o enorme sombreiro que estava preso a um prego na parede da sala e o enfiou em minha cabeça

–Foi o presente duma amiga que esteve no México! - Confirmou diante da minha surpresa - Depois concluiu: -Sol em demasia queima  miolos dos seres  urbanos! – Concluiu apontando o indicador para um sol  das sete e vinte da manhã, Evidente, poucas horas depois o astro rei se tornaria inclemente. 

Com aquela coisa medonha metida na cabeça voltei para o quarto e novamente me inspecionei no espelho. O que vi me deixou profundamente revoltado.

-Puta que pariu cara! Tu ta parecendo o Pancho Villa de Goiás! - Porém não era bom contrariá-la.

 Depois olhei para os meus pés e pros dedos branquelos e lamentei -

-Putz grila! Eu devia ter comprado um  All Star!

Com tudo pronto saímos, travamos a porta da sala e atravessamos a varanda. Ah, que maravilha aquele ar puro nos pulmões - Assenti ao exalar a pureza do oxigênio do campo até arder-me as narinas. Entusiasmado desci os quatro lances da escada de madeira  e caminhei no chão de terra. Poucos passos dados, e...

-Ai, ui, ai, ai –

-Nossa! Que gemeção é essa véim?

-São esse maledetos e pontiagudos pedregulhos – Reclamo olhando com mais atenção o terreno que pisava.

-Ara véinho, larga de frescura, vá! – Ela exclamou e disparou na minha frente dentro de bermudas jeans e uma comoda camiseta rosa.

Marcela deslizava por entre as pequenas pedras como se elas fossem a maciez do veludo. Eu a olhava se distanciar e via a leveza da garça naquelas pernas bem torneadas e no bumbum  arrebitado. Via mais, via poesia em seus movimentos,  nos cabelos loiros que esvoaçavam ao vento, matéria transformando-se numa deusa de poderes estranhos, que me dobravam, que eclodiam na imensidão do meu amor - Ah... se ela soubesse como eu gostava dela! Ah... se soubesse!-
E Marcela continou rápida até chegar adiante e me chama com seus gritinhos estridentes e quase juvenis:

-Venha logo véinho, Rápido, venha!

E eu fui, e as pedras ainda me incomodavam, mas eu era macho, muito macho, bom que jamais esquecesse disso. Assim que nos encontramos andamos na direção de um pé de laranja, próximo.
Que beleza! Eram enormes, apetitosas, apresentando uma coloração avivada, abóbora.

-Véinho, pegue uma pra gente! – Ela pediu retirando um pequeno canivete que trazia dentro da mochila.

Olhei para a laranjeira e as frutas estavam tão próximas e baixas que seria a maior moleza pegar meia dúzia delas, quem sabe até mais. Cheio de estilo me coloquei ao lado de umas encorpadas e levei a mão ao galho, com vontade, avidez, um prazer enorme de livrá-la do julgo dos galhos: Eu haveria de dar a Marcela a mais atraente delas.

-Ai, ui, ai! Puta que pariu! – Gemi novamente

-Que foi véinho, que aconteceu agora? – Ela perguntou assustada.

-Porra, Marcela! Por que você não falou que essas merdas são cheias de espinhos? –

-PQP digo eu, véio! To começando me arrepender de ter te trazido. Você reclama de tudo! – Ela devolve com raiva. Logo depois esquece o tom azedo e abre um dos seus lindos sorrisos.

-Ta certo meu véinho! Você não está acostumado com essas coisas do campo! –

Então ela se aproximou e inspecionou o ferimento e constatou que um espinho ferira a palma de minha mão, ocasionando um pequeno veio de sangue que me escorria na direção do pulso.
Marcela olhou atentamente o ferimento e em seguida retirou da mochila um lenço limpo e um frasco com líquido e o derramou desinfetando o local.

-Aiiiiiiiii! À puta que pariu de novo! – Estrebuchei atirando o sombreiro para longe.

E la se foi o Pancho Villa, primeiro no ar, depois rolando á merce do vento, se ralando na terra, sendo esfaqueado pela sorte. O que Marcela despejara em meu dedo era álcool, álcool do mais puro grau, do mais ardido, do mais corrosivo. Desta feita não fora tão macho e nem ela se abalara com os meus dengos mas,  apenas riu e depois gargalhou. Eu também sorri ao ver o  Pancho Villa se acalmando ao estacionar num aclive do terreno.
O decorrer do dia foi mais ameno apesar do sol escaldante. Eu estava feliz por poder compartilhar cada um dos momentos. Andamos pelas redondezas, atravessamos, vales, riachos, tiramos fotos; fotos minha e dela sentados em pedras, deitados na relva, mergulhados em cachoeiras. Nós estávamos no paraíso, ela,  Eva, eu,  Adão. Um paraíso onde eu torcia para que não surgisse a serpente e amaldiçoasse tanta felicidade. Aliás, surgiu uma, não a serpente, mas uma pequena cobra que me fez correr o que não deveria ter corrido, afinal,  mais assustada que eu  esgueirou-se  rapidamente embrenhando-se num mato próximo.

E o paraíso sorria ante um sol que secava nossas roupas molhadas, testemunahndo a alegria e a cumplicidade de um amor que, agora indisfarçável parecia brotar. Nos tornamos sorrisos, gentilezas, e eu nem mais sentia as pedras me incomodarem os pés. Quem sabe eu não fosse tão urbano quanto imaginava.
Depois de secos fomos ver algumas de suas vacas no sítio vizinho. Foi então que soube que Marcela aplicava boa parte das economias nos seus estimads bovídeos. Aliás, o vizinho nunca tivera o que reclamar, afinal era regiamente recompensado pelo serviço de guarida e pasto. Após andanças e a constatação da perfeita saúde de suas vacas a fome fazia roncar meu estomago quando voltamos para a casa por volta das cinco da tarde.
Ao chegarmos cada um tomou o seu banho e depois nos dirigimos à cozinha onde Marcela preparou-nos um espetacular espaguete ao sugo.

Já caia a noite quando estacionamos na varanda. Novamente a escuridão nos brindava com os faróis dos vaga-lumes e o cheiro de mato parecia mais perfumado que nunca. Instintivamente coloquei meu celular para tocar algumas músicas. Ao som do Nokia um rosário de sucessos de minha fase progessiva foi curtido, ali, sentados um de frente para o outro relembrando o dia, rindo bastante ao recordarmos o caso da cobra. Foi então que Marcela levantou-se da cadeira e disse que voltava logo. Não passaram dois minutos e la estava ela com um bom vinho entre as mãos. Vinho rubro, encorpado, dádiva de Deus acompanhada de duas taças que cintilavam tímidas ao serem refletidas pela lâmpada presa ao teto. Aberto o Bourbon enchemos nossas taças e bebemos  nos olhavando fixamente. A noite parecia especial, e a garrafa se foi e em pouco menos de meia hora e ela voltava com outro vinho. Vinho que descia fácil, deixando na boca um gosto de pecado diante da sua voz, que,  ligeiramente ebria dizia que as faces estavam em brasas. Contrário, eu precisava muito mais daquilo  para que isso pudesse me acontecer. Novamente Marcela se levanta e diz:

-Véim, vou buscar um negócio! – A sua voz soou divertida e a marota.

Foi engraçado vê-la perder o equilíbrio ao levantar-se da sua cadeira de balanço. Com alguma dificuldade ela acertou os passos, atravessou a sala e rumou para o seu quarto. Na sua volta algo de estranho acontecia já que um cheiro forte, de erva,  alastrava-se por todos os cantos da casa. Eu conhecia o  odor ácido e levemente adocicado. Surpresa!  Era a legítima cannabis sativa!

-Óia aí veinho! Esse unzinho é pra nós! – Ela disse num sorriso instigador e esticando o braço, oferecendo-me o cigarro que se consumia entre os dedos da sua mão direita.

Relutei em aceitá-lo ja que recordei anos antes e da  última vez que eu dera um tapa num treco daqueles tinha ficado mal, talvez até por tê-lo misturado à bebidas como o absinto e a vodka.
Porém agora não havendo o poder daquelas bebidas peguei o cigarro e dei duas fortes tragadas retendo a fumaça nos pulmões. Em seguida ficamos intercalando aquele pacau enorme, consumindo juntamente com os goles de vinho. Talvez estivesse pela nona ou décima tragada quando me surgiu a  vontade de gargalhar. E gargalhei, gargalhei até não mais poder e querer.
No fim, como se acometidos de insanidades gargalhávamos sem que houvesse qualquer motivo aparente, uma piada do tipo que o país se livrara dos corruptos e corruptores. Mais uma vez os sorrisos cessaram quando Marcela me fixou demoradamente.

-Véinho, sabia que você e sua barba branca são parecidos com um macaco prego da cara branca? - Os seus olhos críticos cerraram-se e  ela riu-se a valer. Depois com a fala enrolada e reticente esnobou-me: - Vou ser mais exata com vossa majestade.. és um perfeito Cebus Capucinus.

-Heim? Que diabo é isso de Cebo Caputino? – Sorrie questionei diante de seus risos que pareciam não ter a intenção de ceder. Passados alguns segundos o riso cedeu e ela fez o possível para manter-se sóbria:

-Uai, véim! O dito cujo é um macaco, um lindo espécime de pelos negros que tem na parte superior do corpo os pilosos levemente róseos e esbranquiçados! – Assim que terminou a explanação imergiu numa nova gargalhada.

-Ai meu Jesus Cristinho!  É muita maldição!  Pro meu azar, esqueci que essa diaba além de fotógrafa é zoóloga! - Lamentei-lhe serrando os dentes, fazendo caretas.

Repentinamente o seu riso aniquilou-se por completo e nos tomamos do silêncio do pensamento. Eu parecia não sentir o corpo e nem os pés que  teimavam em tamborilar o piso de tábuas largas. Eu olhava para Marcela e ela era tão linda e seus olhos reluziam tanto que ofuscavam a lucidez e mais tenra claridade do mais bonito dos luares. No celular as mp3 sucediam e Stairway to Heaven do Zeppelin, tocava. Ante a melodia fui tomado por uma vontade indômita de beijar-lhe a boca, de possuir-lhe o corpo, de ter o amor daquela mulher. Tentando manter-me firme levantei da cadeira com o máximo cuidado e estendi a mão na sua direção. Eu queria que ela segurasse em mim e se erguesse. Aliás, quaria bem mais que aquilo;  Queria que ela fosse meu mundo, o meu universo, e, provavelmente,  a minha única razão de viver.
Marcela docilmente se apoiou-se em minha mão e impulsionou o corpo de forma tão abrupta que ao levantar-se se estatelou no chão levando-me consigo.  Após o susto e literalmente vencidos pela lei da gravidade nada restou a fazermos se não nos flagrarmos em nova e estrondosa gargalhada. E nós gargalhamos até doerem nossos estomago, até não mais haver o motivo para o riso, até compreendermos a magia do momento.

Agora, próximos o silêncio dos olhaos nos unia. Eu podia sentir o estremecer do seu corpo ante o toque dos meus dedos. Podia sentir-lhe as formas  ao percorrê-la com a palma da mão, acusar-lhe  as pulsações do coração  e verificar que ele batia tão descompassado quanto o meu – “Querida senhora, pode ouvir o vento soprar? – Plant gemia naquela parte da canção.. 
E era bem isso; Eu queria ser o vento e sussurrar coisas em seus ouvidos.  Queria ser vento e soprar  seus cabelos, refrescar-lhe a delicadeza do corpo. E foi naquele instante,  no piso de tábuas largas que as  bocas se uniram na paixão do beijo, e as línguas se digladiaram furiosas quando, imprevível as luzes da varanda se apagaram deixando-nos a merce das estrelas e dos sussurros das árvores e do vento. E assim foi, testemunhados por vaga-lumes que  nos possuímos ante as preces do amor. Com tudo concretizado acariciamos nossos corpos e sorrimos como dois colegiais flagrados em  atos de amor. No ar apenas a sensação que a paixão em nossos olhares que jamais morreria.

Depois, passado algum tempo entramos e fomos tomar banho. Debaixo do chuveiro ela ria bastante e pedia para ensaboá-la. Eu esborrifei o sabonete líquido por todo o seu corpo e o massageei com delicadeza. Ela fez o mesmo e nós estremecíamos a cada toque das nossas mãos, como se para elas tivéssemos pertencido sempre. No final, já enxaguados,  secamo-nos e rumamos para o seu quarto onde o conforto de uma ótima cama  nos aguardava. Ficamos ali debaixo do edredom cochichando mimos,  tateando a pele, aquecendo-nos na umidade da noite até que o cansaço nos fez adormecer.
Domingo, oito horas da manhã acordamos. Os mesmos sorrisos e beijos estavam lá.

-Bom dia meu macaquinho prego da cara branca! – Ela brincou enquanto me beijava a boca, sorrindo como uma garotinha que acabara de ganhar a sua primeira Barbie.

-Bom dia “Marijuana”! – Devolvi na mais inequívoca alusão à noite passada.

-Ah seu filho duma puta! – Ela exclama com olhos sacanas ao atirar no meu rosto o travesseiro de penas de ganso.

Em seguida ela ri, eu rio, e nos engalfinhamos outra vez. Ao abandonar o corpo de Marcela eu estava  completamente extenuado.

-Ah garota! Você ainda vai me matar! –  Sussurrei-lhe,.

-Calma véinho, há muito tempo para você morrer!  Talvez nem morra, desconfio até que você seja imortal! - Ela exlama jocosa. Eu sorrio um tanto sem graça e  torço para que  ela esteja certa, não quanto á imortalidade, é óbvio.

Levantamos e ela rapidamente prepara o café para nós. Estávamos famintos, e a mesa farta, como de costume,  era o premio mais que merecido, não para mim, macaco de peito branco ou a zoologa impertinente, mas para nós e os vorazes felinos que nos  tornamos..
Terminado o café  fui para o meu quartos e arrumei s as malas perguntando-me porque diabo havia levado tanta roupa – Deveria vser mania de pessoas à caminho da velhice? –  Divaguei com certa austeridade e sem saber o que me responder.
Tudo pronto,  ajeitamos nossas bagagens no carro e fechamos a casa.
Com Marcela e as chaves na mão  dirigindo-se para a porta do motorista, protestei:

-Mocinha, negativo! As chaves na mão do papai aqui. Saiba que pretendo chegar vivo em São Paulo!

-Ah meu amor, você disse que o jogo começa ás duas da tarde, é isso? - Ela me questiona, incompreensível. Eu não entendera o porque da pergunta.

-Bem....Sim..é isso mesmo,  Marcela - Respondo confirmando.

-Ueba! Então nem se incomode com isso, véinho! Com você ao volante chegaremos à Sampa no horário que estourarem a champanhe para os vencedores! – Exclamou num tom divertido porém sarcástico.E isso me fez pensar -  Caracas! Apesar de pegar pesado,  ela está com a razão! -  Tive que concordar.

-Torneio, estou a caminho! - Digo entusiasta diante a sua surpresa. Depois alardeio sentando-me imediatamente no banco do passageiro:

-Benzinho, ajeita o banco, o espelho retrovisor  e pau na máquina!   

Ela sorri. Naquele instante sem saber os porquês suponho o inferno e os motivos de satã, pois se nos acontecesse algo sabia que nele eu estava garantido. Penso nisso por mais alguns breves instantes e até que os imaginários vaga-lumes me raptam os pensamentos.
Talvez dormissem no momento que a garota dos óculos Rayban sentou-se ao volante e o carro partiu gemendo os quatro pneus. Segurei-me fortemente e depois travei o  cinto de segurança. Eu amava a menina dos pés pesados mesmo que houvesse dentro de mim o medo das próximas curvas e daquilo  que me colocava em xeque: Até quando conseguiria acompanhar o ritmo?
Refleti e previ algumas complicações pelo caminho. Porém, eu era o capitão. E um capitão só abandona o seu barco quando uma última onda o dá por submerso. E além do mais era muito cedo para se saber de todos os caminhos.

E assim num dia perfeito  a velocidade imposta deixava para trás a estrada que pelo retrovisor era nada mais que tempo pretérito. No cd player apenas uma canção que falava de amor enquanto o azul do céu se adornava de nuvens alvas  que,  quando em quando formavam figuras.  Assim como num quebra-cabeça eu olhava para as nuvens e tentava juntar as partes faltantes de um tigre siberiano quando no topo brilhou a sua majestade sol,  incandescente, transpassando nuvens,  aquecendo meu coração ao mesmo momento que, o vento num compasso de amor soprava os nossos rostos, delicadamente.

Copirraiti 29Abr2012
Veio China ©