quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Sindicato dos Mendigos


- E aí companheiro, como foi a féria de hoje?

-Xi..uma porcaria, 15 mangos no máximo.

-E a minha então? Hoje em dia os caras não estão nem aí pras nossas necessidades básicas!

-Iés mai best head! Nunca estão aí com a gente -

-Parceiro, a situação não pode continuar do jeito que está. Mais um mês e vamos quebrar – Concluiu o primeiro, afrouxando os ombros em desânimo.

Esses eram os inseparáveis Dallas e Betoven que, juntos há quase 20 anos faziam parte da história e do folclore local. Amigos fiéis reconheciam-se de olhos fechados, como de olhos cerrados identificariam quaisquer umas daquelas íngremes vielas percorridas de forma fatigante. Pedintes e sabedores que jamais sobreviveriam das esmolas nunca recusaram qualquer trabalho que surgisse, mesmo que carregando as pesadas sacolas de supermercados para madames e a custo duns poucos trocados.

Em fases que a falta de oportunidades desafiavam suas sobrevivências era comum vê-los aparando os jardins das casas mais imponentes, ou efetuando pequenos reparos em portões de madeira, cercas de arame farpado e até chuveiros elétricos. Figuras populares, os apelidos caiam-lhes na medida: Dallas, por jamais separar-se de um encardido e amassado chapéu de cowboy, além de sempre ter nos lábios alguma frase cuja pronúncia vagamente lembrava o inglês. Betoven, assim no bom português sustentava o cognome não por o terem pelo imortal predecessor pianista, mas pelo simples fato da sua cabeça descomunal dar a impressão de ser soldada ao corpo obeso e atarracado por um desses maçaricos de fundição.

Com efeitos, a observação do companheiro deixara Dallas reflexivo. Há bom tempo ele fazia não notar a velhice que agora chegara, denunciada no reflexo no espelho que apontava para sua pele cada vez mais enrugada e os cabelos quase que amplamente esbranquiçados. Porém não Dallas não se movia na mesquinhez e também se preocupava pelos outros mendigos que como eles vagavam a esmo pelas calçadas de cimento cru. Sim, Betoven estava coberto de razão – Eles afundariam se algo não acontecesse ou se permanecessem de braços cruzados, deixando-se enterrar vivos – Dallas ruminava todos esses pensamentos quando embaralhado pelas cinzas das reflexões a idéia tanto amalucada surgiu:

- Ôu mai gódi! E se nós fundássemos um sindicato, Betoven?-  Perguntou Dallas após uns bons minutos de reflexão

-Como assim? Um sindicato? – Questionou o surpreso amigo.

-Sim, um sindicato! Por que não? Precisamos de algo que nos alimente mais que as ilusões – Concluiu Dallas, abandonando de vez a introspecção que se metera.

Por sorte ninguém presenciara a sua insólita propost que, se ouvida levaria o pessoal supor que se tratasse dum quadro de humor para um programa de televisão. Porém não se tratava de um humorístico e nem de piadas sem graça. Todavia Dallas se expandia, dando formas ao objeto de sua alucinação:

-Pensando aqui na a sigla...Hummm...SIMESP, o Sindicato dos Mendigos de São Paulo – Disse com o braço direito estirado enquanto sua mão acariciava suavemente o ar ao ir de um lado para outro como se apresentando ao amigo a fachada do prédio sindical.

-Poxa, o nome é imponente! SI MES PE – Confirmou Betoven ao saboreá-lo em sílabas. Depois completou: Bem, poderíamos, além de promover a primeira assembléia geral na frente à Paróquia do Bom Menino Jesus, pedir ao padre que abençoasse o nosso movimento. O que acha?

-Iés mai béste head! Você está coberto de razão. Nessas horas sempre é sempre bom ter Deus a favor – Consentiu Dallas ao ajustar no corpo um desgastado sobretudo de lã que lhe fora dado pelo padre, fruto de uma das campanhas do agasalho promovidas pela paróquia.

Ainda pensavam sobre aquilo enquanto retornavam para dentro da casa algumas tralhas que estavam largadas junto à entrada. Bem, na verdade aquilo não era propriamente uma casa: era mais um tipo de depósito fechado com madeiras compensadas, pregadas a alguns rufos de sustentação. Ali, debaixo do viaduto onde moravam não havia esgoto e nem água encanada, mas apenas enormes garrafões de plásticos que eram abastecidos nas torneiras dos quintais dos vizinhos próximos. E não havendo água, os banhos quando lembrados se tomavam num minúsculo banheiro externo junto à moradia do vigário, na igreja.  Banhos que para a comodidade dos pobres pedintes eram tomados em água quente, pois até o chuveiro elétrico o padre providenciara. Porém por vezes de nada adiantava o pequeno luxo já que o pároco vivia ralhando para que mantivessem seus corpos limpos e asseados. Jamais se constituiria exagero afirmar que o padre Zezinho, mais que um servidor de Deus, representava para eles a família que há muito deixaram de ter.
Bem, com as tralhas acomodadas no barraco e numa noite extremamente fria eles friccionavam as mãos ininterruptamente à procura de algum aquecimento enquanto névoas se expeliam de suas narinas. Mas também não era somente o frio, havia a fome quando Betovem propôs:

-Dallas, vamos la na paróquia filar a bóia? – Peguntou ao amigo ao vestir um esgarçado blusão  numa cor de um laranja queimado, onde um Homem-Aranha se estampava nas costas.

-Ah, não mai frend! To de saco cheio da sopa do Padre Zezinho – Rejeitou Dallas –

Na verdade Dallas estava enfastiado do caldo de legumes grosso e insosso que distribuíam aos pobres da comunidade. Porém, ele pensava e parecia ter outros planos praquela noite:

-Que tal uma comida chinesa, Betoven? – Perguntou ao companheiro circulando lentamente o estômago com a mão direita.

-Hum...boa pedida, heim! – Entusiasmou-se Betoven - No Ping Lee ou no Tai Wuan? 

Dallas após pensar por instantes, decidiu:

-Vamos ao Ping Lee. No Tai Wuan ultimamente andam demasiadamente miseráveis. Parece comida pra quem está de regime.

Definido por um dos chinêses saiu à passos largos acompanhado com dificuldades por Betoven: geralmente no inverno a sua perna esquerda se acometia de artrose reumática. Dallas percebendo que o companheiro ficara para trás folgou o passo até ser alcançado pelo amigo. Caminhando com mais lentidão foram surpreendidos por fortes relâmpagos que riscavam os céus denunciando que a chuva não tardaria. O vento rajou forte ao atravessarem um descampado terreno da Prefeitura, justamente onde um dia se erguera um bonito e florido parque, mas que hoje em completo abandono só servia para abrigar lixos, bugigangas como a carroceria de um detonado Fusca 62 que se encontrava por lá. Atravessando a praça seguiram por alguas ruas até darem ao Ping Lee. Pararam diante do restaurante e olhando através das imensas janelas de vidros da fachada e perceberam que a casa estava lotada. Ficaram zanzando na frente de uma delas quando foram interropidos.

-Psiuuu! Caiam fora! – Bronqueou o manobristas do restaurante incomodado com a presença dos mendigos.

Dallas olhou-o com altivez, porém estava acostumado. Ao saírem dali para ganhar a rua sem saída ao lado e que servia para entrega de mercadorias, assim como de entrada de serviço,  Betoven até então silencioso apontou o dedo médio para o alto e o mostrou ao guardador de carros. Sim, era uma ofensa, mas o rapaz, atabalhoado com o acúmulo de serviço fez que que não percebeu. Entrando pela viela caminharam alguns metros até se verem defronte a escada que acessava o restaurante. Subindo os cinco degraus e bateram suas mãos na pesada porta de ferro sem que fossem atendidos. Insatisfeitos, estocaram-na com mais vigor até que foi aberta por um senhor vestido numa túnica grená de botões dourados. Todos se olharam, pois se conheciam muito bem.

-Dallas, Dallas! Chang aposta vinte Manaus que Dallas veio filar bóia de chinês, né? – Disse num tom de ironia. O senhor era Chang, o proprietário do Ping Lee.

-Claro que viemos seu Pequim! Eu e meu sócio somos parte de sua publicidade. É como se fossemos outdoors ambulantes divulgando o seu estabelecimento pela redondeza. – Respondeu Dallas como se estivesse justificando o pedido do jantar.  O chinês o olhou com um ar malandro do tipo "que conversa mais fiada". Dallas sabia  que deveria ser mais convincente com aquele chinês parada dura.

- Sabe Chang... Sempre que nos perguntam onde se degusta a melhor comida chinesa da cidade... – Dallas foi bruscamente interrompido pelo chinês:

-Chang sabe! Cês falam pra freguês que é no Ping Lee, não é? – Presunçoso completou o chinês

-Certíssimo Mister Pequim!  Inclusive orientamos não irem ao Tai Wuan, um restaurante que não zela pela boa qualidade da comida, higiene, essas coisas assim - Disse Dallas num tom de enfado

-Ah é? - Surpreedeu-se o dono do Ping Lee.

-É sim! Sempre temos a máximo prazer em indicar o seu estabelecimento porque aqui, além da ótima comida o atendimento é espetcular. Coisa de primeiro mundo – Dallas mudou o tom e respondeu no bom e charmoso estilo de outrora.

O malandro tentava impressionar o Sr. Chang, enquanto o Betoven meneava positivamente a imensa cabeça em confirmação às colocações do parceiro


-Ta bom, ta bom... convenceram Chang! Chang já volta – Comunicou o chinês ao dar meia volta e desaparecer juntamente com um estranho gorro para o interior do restaurante.

Passados não mais de 10 minutos, Chang voltava equilibrando duas refeições, uma em cada palma da mão. Chamou-os:

-Bom, aqui está comida do cara de pau do Dallas, e do puxa-saco Betoven. Hoje esses dois malandros vão comer melhor comida de Chang – Disse-lhes num ar de soberba, narrando os seus dotes culinários.

Claro, podíamos perceber os brilhos nos olhos dos esfomeados. Betoven mordiscava e lambia os próprios lábios enquanto Dallas acariciava a barriga. Porém  teriam que esperar mais alguns minutos, afinal Chang ainda não terminara a apresentação dos seus pratos.

-Vejam, aqui temos aqui um maravilhoso arroz branco. Ao lado do ótimo arroz um encorpado yaksoba feito com pimentões de Mogi Mirim. Percebam agora esses dois camarões rosa empanados em farinha de rosca de Minas Gerais. Para completara bóia desses dois miseráveis essa suculenta e apetitosa porção de frango xadrez. Nunca falaria para ninguém que o segredo do espetacular frango de Chang é uma finíssima erva aromática de Caruaru– O chinês narrava pomposamente identificando cada item do cardápio.

Tudo seria ao nível da narrativa se não fosse a simplicidade dos pratos já desgastados e dos talheres plásticos que acompanhavam. Evidente, Dallas e Betoven não eram clientes preferenciais, desses que pagam suas próprias refeições. Assim que o chinês proferiu a última frase apenas um dos malandros se deu ao trabalho de inspecionar se cada uma das iguarias relatadas estava por lá. – Conferidas, estavam todas lá – Porém, Dallas de bobo nada tinha e um tanto observador por ter sido um exímio freqüentador de ótimos restaurantes notou que a comida servida pelo Sr. Chang nada mais era que as sobras das refeições dos seus clientes. Fato notório inclusive porque remexendo sua porção de arroz lá estavam misturados pequenos pedaços de tilápia à doré e de lombo frito.
Antes de Chang dar-lhes as costas e recomendar que tomassem cuidado com os pratos e que se desfizessem dos talheres plásticos ainda ouviu uma última solicitação de Betoven:

-Seu Tókio, não dá pra liberar uma cervejinha?

Chang nada respondeu afinal o pobre mendigo nem sabia onde ficava o Japão. Assim apenas virou as costas e sorriu sem que vissem.  Um pouco adiante o chinês entrou porta de serviço e não mais voltou - Definitivamente aqueles dois eram os clientes mais sacanas que o dono dum restaurante chinês poderia desejar –
Assim que se viram sozinhos desceram os degraus da escada e sentaram no primeiro degrau.

-Dallas, esse nosso Sindicato será dos bons? – Perguntou Betoven enfiando abruptamente o garfo à boca onde se notava a misturas de parte de arroz, frango e macarrão.

-Claro Betoven! O Sindicato será o melhor deles! – Rpondeu servindo-se de um pedaço do camarão empanado, atacado na primeira garfada – E, olhando para frente e para o alto como se novamente vislumbrasse o edifício sindical, devaneou:

-O SEMESP terá  a sede com seis andares. Lá no último andar estarão às salas da diretoria. Numa delas você cuidará da parte burocrática, das assembléias, assistência médica, e principalmente da manutenção da nossa sede de campo.
Na outra cuidarei das questões relacionadas à parte jurídica e dos direitos dos nossos associados. Sentarei á mesa de negociação e intermediarei junto com os representantes dos ricos sindicatos patronais os novos pisos salariais e a diminuição das contribuições sindicais. – Dallas sonhava não para si próprio, mas também para Betoven. Ele gostava das reações do amigo, daqueles seus olhos que brilharam ao vê-lo tratar dos seus tantos temas com afinco e entusiasmo. E assim continuou:

-Para os garotos dos semáforos e lavadores de pára-brisa talvez possamos estudar algo junto ao sindicato das montadoras de veículos, final, os carros são deles. Para os guardadores de carros quem sabe consigamos algo interessante com o sindicato das tecelagens; acho bacana qando colocam aqueles coletes sinalizadores. Porém teremos que propor para a categoria que deixe de roubar os toca CDS dos cientes. Agora, a classe que quero dedicar maior atenção é a dos mendigos – Dallas delirava para a felicidade de Betoven–

-Principalmente os da 3ª idade. Pra esses vamos lutar pra que nunca falte o prato comida e o remédio da pressão. Quem sabe possamos firmar algum tipo de convênio com o governo. Poderíamos propor ao pessoal da Receita Federal a isenção de parte dos impostos das indústrias desde que ajudassem a manter as casas de repouso. – Depois concluiu:

-Talvez Betoven, talvez hoje estejamos vislumbrando o projeto que ocasionará a maior revolução social já vista nesse país! - Exclamou com um estranho brilho no olhar.

O fato engraçado ficava por conta de Dallas se entusiasmar a tal ponto que repentinamente parecia acreditar no fato mais que o próprio parceiro, e se mantinha tão compenetrado na oratória que simplesmente se esquecera da comida - Até o frango xadrez parecia surpreso com a retórica–
E Dallas prosseguiu. Simplesmente ele se tornara uma máquina de calcular ao prever aposentadorias, reajustes, proporções de tempo de serviço, limites de idade, planos de assistência à saúde, incluindo-se neles as próteses dentárias e pontes de safena. Dallas falava da Previdência e o que poderia ser subsidiado pela União. E Dallas exprimia principalmente o projeto mor: a digna aposentadoria para todos velhos que, maltrapilhos ou não se tornarem mendigos.

Sim, Dallas sempre fora um sujeito extremamente arguto apesar de nunca ter cursado faculdade. A princípio um corretor da Bolsa, posteriormente sócio duma Corretora de Valores, a convite de um amigo que respondia pelo capital. Sim, e Dallas era habilíssimo nas negociações, e dono de um convencimento fácil tornou-se um sujeito de sucesso aos 30 e empobreceu aos 38, destroçado pela trama do mesmo sócio. Diante do rombo ardilosamente arquitetado pelo inescrupuloso sócio se viu desmoralizado perante o mercado de capitais. E assim com a sua corda puxada foi expelido para o esgoto como se fosse um fétido dejeto qualquer – Depois disso nunca mais conseguiu um emprego que valesse a pena, afinal era um sujeito marcado. E não foi apenas isso; Com o fato veio o abandono da mulher que amava, a bebida, a dependência alcoólica, e um longo internamento num manicômio, pois o supunham louco. A grande verdade sempre foi a que Dallas jamais conseguiu se reerguer -

Betoven, infinitamente limitado parou seus estudo à epoca no terceiro ano ginasial. Porém não havia prazer maior que  ouvie com atenção a contagiante oratória do amigo. E Dallasfalava e ele, apenas embevecido não consegiu se conter:

-Dallas, você deveria ser o ministro da justiça! – Exclamou para o companheiro que naquele momento não mais se dava conta da sua existência

Dallas, fora de si persistia no discorrer os ideais de um louco. Sonhos, tão somente sonhos que eram blasfemados por seus lábios, frases na boca de um fracassado à procura de alguma redenção. Dallas era o delírio, era as fantasias que jamais se tornam realidade. Sim, Dallas sabia das utopias de uma nação longe de desgraças, misérias e tragédias. Porém Dallas era apenas delírios que se viam reféns duma serpente desumana que, enrolada à falta de senso esmagava gente miserável e desvalida. Dallas era isso, quimeras que se permitia sonhar,  bastava apenas fechar os olhos e as visões estavam la, uma a uma.

E o extraordinário Dallas deixava-se perder em fantasias enquanto os restos  reutilizados da boa comida de Chang esfriavam na solidão num daqueles ordinários pratos desgastados.

Copirraiti24Jun2009
Véio China©





segunda-feira, 15 de junho de 2009

O trem - Uma estória de amor -


Eu acabava de ler uma poesia no trem em que viajava. As frases escritas na porta do toalete davam conta de uma feitura em caneta esferográfica, linhas inclusive que jamais acabariam por abandonar minhas lembranças. Lembro-me de ter ficado impressionado já que se tratava de uma poesia que parecia pretender me cortar aos pedaços ou dilacerar aquilo que eu tinha por sentimentos. Impactado a transcrevi numa pequena agenda que trazia num dos bolsos do paletó. Talvez a repentina fixação pelo texto expusesse o inferno e as mazelas do pobre diabo que eu era. Aliás, um inferno que não me fora imposto - eu me impus - afinal, as coisas pareciam estar nos lugares errados e distantes donde gostaria que estivessem. Saindo do toalete rumei para uma direção oposta a que estava e segui pelo corredor estreito e mal iluminado. Talvez na oitava ou nona carreira de poltronas me deparei com uma moça descansando num dos solitários bancos da composição.

Encolhida rente à janela ela mantinha os olhos fechados e o pescoço envolto por um grosso e lilás cachecol de lã, afinal um frio cortante fustigava a sutileza de nossas almas num inverno vigoroso que há muito não se sentia – Ela ainda não se tinha dado conta da minha presença, e a sua solidão me lembrava a nostalgia dos filmes em P & B de Humprey Bogart e Lauren Bacall e os seus amores conturbados. De certa forma achei tão bela a cena que me mantive fixado nela por alguns instantes como se admirando uma obra de arte. Porém o seu ressonar foi bruscamente interrompido pelo destempero da minha perna estabanada que ao mudar o passo chocou-se contra o banco. Desperta e assustada olhou-me como quem pedisse para ser poupada de um mal maior.
Seu olhar, além de aflito me parecia-me triste, desses que abrem mão de alguma esperança –

-Perdão senhorita – Desculpei-me sem graça.

Ela continuou me olhando sem nada dizer. Educadamente perguntei se poderia sentar-me do seu lado. Sem responder, ela apenas ajustou o corpo ao banco e meneou a cabeça num consentimento. Ajeitei minha bagagem ao maleiro e me sentei à poltrona onde um suave odor dum perfume adocicado desprendia da de mulher. Enquanto me ajeitava, de soslaio percebi que insistia o olhar em mim. Repentinamente virei e penetrei os meus olhos em suas pupilas. Constrangida ela desviou o olhar e fitou o chão sob seus pés – Talvez se sentisse perturbada tanto quanto eu – supus-

- A senhorita está indo para onde? – Perguntei a fim de quebrar o silêncio desconfortante.

Ela apenas me fitou embaraçada e com o indicador apontando na direção dos lábios fez um sinal, para logo após sinalizar a negação. Continuei sem compreender a exatidão dos seus gestos até que se levantando e vasculhou por algo na valise acomodada na sua parte do bagageiro acima do banco. Parecendo encontrar o que procurava sentou-se e então foi que percebi o caderno e uma caneta em suas mãos. Delicadamente ela abriu o volume espiral e escreveu algo no seu interior. Depois me mostrou a folha como se pedindo para que eu lesse Apesar de suas bonitas e diminutas letras a parca luminosidade do corredor criava-me alguma dificuldade. Ajustando o foco da visão consegui ler suas frases.

“Muito prazer! Meu nome é Ana Laura. Desculpe-me não responder. Sou deficiente e não falo - E continuou– Estou indo para Nova Esperança, para casa de alguns parentes à procura de uma vida nova e melhor. E o senhor para aonde vai?” -

Assim que li procurei por seus olhos e eles continuavam a me fitar. Dessa vez sorria, gentilmente. Eu fiz gestos como se pedisse o caderno para que pudesse responder ao que ela negou. Novamente escreveu algo e o devolveu para mim.

“Se o senhor falar calmamente poderei ler seus lábios. Sou boa nisso!” – Olhei para ela e sorri. Alguma coisa naquela mulher dos seus 28 ou 29 anos me incomodava.

Ana Laura se manteve atenta aos meus lábios e expressões quando respondi estava indo para um lagar mais além do seu. Expliquei que igual a ela eu estava indo para um novo emprego e uma vida melhor, algo que não me concederam até então. Ela permaneceu sorrindo até estacionar em algum ponto sombrio de sua vida, o que fez sua expressão tornar-se séria. Depois virou o rosto na direção da janela e se manteve atenta à transparência do vidro – Eu podia sentir a sua melancolia ao retornar seu olhar para o caderno ao colo e começar a escrever pausadamente – Terminado, entregou-me para ler.

“Deixo São Paulo por não ter condições de permanecer na mesmo cidade do meu ex-noivo. Há muita mágoa em meu peito e não quero ser o motivo de chacota para as pessoas que souberam da sua traição com uma garota que talvez nem tenha completado a maioridade. Foram mais de nove anos de um relacionamento que julguei sólido e que, infelizmente terminou assim. Porém,  mesmo com o acontecido ele não me deixa em paz”

Ao acabar de ler eu não sabia o que responder. Permaneci fixado nas letras bonitas e depois voltei o olhar para Ana Laura, saboreando a sua figura, atento às suas roupas e àquela delicada blusa azul que, apesar de modesta permanecia em perfeito alinho. Insistindo em sua estampa encontrei um lindo rosto e um par de fantásticos olhos negros. Novamente Laura sorriu sem se mostrar incomodada. Conforme fomos nos correspondendo já não constrangia o fato dela não poder interagir através da fala, aliás, não fazia a menor diferença. Ana Laura parecia ser sensível, e a delicadeza dos seus gestos denunciava a feminilidade acima de qualquer suspeita. Sim, claramente ali estava uma mulher que há muito eu não via.

Descontraídos e mais à vontade continuamos a corresponder pela madrugada afora – uma conversa agradável e insólita – Eu nunca me relacionara com uma mulher que se correspondia pela escrita – Li as suas tantas anotações quando surgiu a parte mais dolorosa – A sua mudez – Ana Laura perdera as cordas vocais aos 11 anos, e numa infecção que não cedeu aos antibióticos e aos poucos recursos da sua família. Inclusive a infecção disseminou por alguns órgãos e quase lhe retirou a vida. Incansável, Laura escrevia folhas inteiras. Relatou fatos curiosos e engraçados que me fizeram rir – E era tão gostoso ver sua expressão sorridente a cada comentário que eu fazia. Óbvio, isso me instigava.  E conforme escrevia eu me fixava em seus olhos e eles, escuros e expressivos pareciam ter a própria voz- Era como se Laura pudesse escrever e decifrar a minha alma apenas com a força do olhar.

Passavam das quatro da manhã quando os seus olhos me pareceram exaustos – O cansaço a derrotava – Lentamente e sem que quisesse ou se esforçasse o seu olhar foi se fechando lentamente, e pouco depois eu ouvia a suavidade da sua respiração nos instante que antecede ao sono. Cuidadosamente retirei a sua caneta do vão dos dedos e a voltei para o bagageiro juntamente com o caderno – Acordada pelo meu movimento apenas sorriu agradecida e cerrou os olhos - No chão e em cima da sua pequena valise repousava uma manta de lã numa tonalidade vermelha e negra – Sem denotar gestos que a retirasse do pré-sono, cuidadosamente peguei a manta e a cobri do pescoço até aos calcanhares – Talvez ao sentir a maciez das fibras, infantilmente se aninhou para dentro dela comprimindo o corpo na intenção de aquecer-se o mais rapidamente.

Aquecida, delicadamente inclinou a cabeça para o onde eu estava e a abandonou em meu ombro, num repouso. Por Deus! Que sensação prazerosa o seu ato me ofertou, ainda mais porque o perfume parecia desprender dos seus cabelos acastanhados. Suavemente encostei a minha face em sua cabeça enquanto trem tenazmente perseguia seu destino. Ah, que sensação maravilhosa e reconfortante estar ali e ao seu lado. Sutilmente reclinei o meu banco e meneando discretamente os ombros fiz seu rosto deslizar para o meu peito. Mesmo sonolenta Ana Laura percebeu e se aconchegou nele. Eu senti a sua respiração descompassada ao seu toque do dedo que penetrou um dos vãos da minha camisa, acariciando-me.
Em seguida e com a respiração mais acelerada desabotoou três dos meus botões, penetrando a sua mão num ato repleto de sensualidade e carinho.

O trem persistia varando a imensidão da madrugada, deixando para trás campos, vales e planícies e um cheiro de mato e flores. O incessante ranger das rodas sobre os trilhos preenchia com sons os meus ouvidos como se fosse sangue bombeado e levado até ao coração. Eu não me compreendia.
O que poderia estar se passando com o sujeito que jamais demonstrava afeição ou sentimentos por quem quer que fosse?  - Eu não sabia - Apenas me sentia perplexo ante àquela onda de “não sei o que” me invadindo num ato de carinho extremo ao roçar o rosto naqueles cabelos das mil fragrâncias. Apenas isso e simples assim. Ressalvadas as devidas proporções, Ana Laura me fazia sentir quase um ser medieval, uma especie de Dom Quixote de La Mancha, um bravo, um herói a duelar por sua donzela contra a magia de bruxos e feiticeiras e a força dos moinhos de ventos.

A mão de Laura permanecia aninhada em meu peito quando cuidadosamente procurei no bolso do paletó e dele retirei a pequena agenda onde escrevera a poesia do toalete. Centrei o pequeno caderno diante dos olhos para melhor poder ler.


Sou eu
Que te ouço
Açoitar a alma

Sou eu
As chibatadas
Destes devaneios

Sou eu
A lúdica sanidade
Das tuas novas verdades

Sou tudo o que te restou
Alguém por quem, saberás
Valerá a pena viver

Sussurrei o poema ao seu ouvido. Laura, acordada por meu murmúrio e com a sensibilidade à flor da pele, num misto entre o sonho e a realidade irrompeu num discreto soluço. O sensível lamento não foi capaz de debelar um cristalino par de lágrimas que desceu por suas faces, deslizou até queixo, desaguando nas cores da manta xadrez. Comovida, a suavidade dos seus dedos comprimia-me o peito com maior vigor e carinho. Porém, e como era de se esperar, decorridos alguns minutos, exausta, os dedos afrouxaram e se ampararam no tecido entre o vão dos botões. Um ou dois minutos o inevitável – Ana Laura adormeceu pesadamente –  Uma feição serena e feliz emoldurava aquele rosto de doçura indescritível, enquanto eu, como um cão fiel, permaneci ali zelando o descanso do dono.

Jesus! Havia magia no ar, e eu era como um menino saboreando o perfume dos cabelos da primeira namorada, rogando à divindade que não nos abandonasse numa hora daquela. A maior das minhas verdades sempre fora aquela que a intransigência jamais me permitiu aceitar; Eu jamais me curvara ao amor. Olhando na direção da janela e a transparência do vidro nada me ofertava, salvo a negritude e um cheiro de natureza. Um novo dia estava a caminho e sol brilharia forte e dissiparia as sonolentas gotículas de orvalhos que ingenuamente amanheceram impregnadas nelas.
E com os raios de sol o mundo se agitaria e se inundaria de seres latejando vida por todos os poros, sujeitos nervosos, calmos, com amores para serem resolvidos, uniões, separações, lágrimas e risos. Muitos de nós aguardaríamos apenas a oportunidade desumana ato de sobrevivermos somente a mais um dia, apenas um dia.

E eu queria ser essa pessoa, necessitava do amanhecer. Queria ter a oportunidade de abrir as janelas e impor o rosto para fora deixar o vento me açoitar e respirar o mais puro ar dos eucaliptais. Sim, não desconhecia que  o insensível e frenético trem perseguiria o destino, interrompido apenas por breves paradas. Sabia que nessas vezes um silvo seria um claro sinal para que novas e velhas esperanças se estampassem nos rostos das pessoas. Pessoas que se chegando ao destino se desfariam de sua viagem enquanto outras ganhariam os degraus metálicos e tomariam os assentos deixados por aquelas.
Nada fora tão simples como agora parecia ser, e tudo se traduzia na crença do vencer ou deixar-se tombar qual um peixe na beira de barranco, anzol na boca e um canivete atolado nas tripas.  Tudo era apenas uma questão de escolha.

A madrugada rapidamente cedia o espaço para o dia, e ele vinha a passos largos, avassalador, e sabia que outra vez me desafiaria. E era essa a minha a chance e eu tinha que aproveitar e cravar as garras como a dum gavião que mata para sobreviver. Era a minha chance, talvez a derradeira, e era esse o meu momento, pois sem que o dia percebesse estava me concedendo os segredos revelados na madrugada. Sim, uma vantagem e tanto e mais que nunca eu necessitava surpreender este desafio, já que me cansara de ser abatido como a vítima da ave de rapina que nem soube por que morreu. Não, agora era a minha vez, sem surpresas, sem ardis, sem enganos, a minha vez de apenas viver e tentar ser feliz e esperar que o futuro se mantivesse receptivo às tantas mudanças, fossem quais fossem.

“Sou eu o cara por quem valerá a pena ter vivido” Segredei novamente no ouvido de Ana Laura. Talvez o sussurro tenha ocasionado algum incômodo e ela se remexeu, abriu e fechou os olhos e depois voltou a dormir com um sorriso impregnado nos lábios. Por fração de segundos permaneci extasiado diante do incômodo que me permitiu descansar o olhar naquele sorriso e nos olhos maravilhosamente negros.
Eu apenas sorri para tudo– Eles eram mágicos -


Copirraiti15Jun2009
Véio China©




domingo, 7 de junho de 2009

Paris & Texas - By Véio China -

“Despida de roupas e pudores a louca profana foi fecundada por quinze homens de gesso nas melancólicas corredeiras do rio Saigon”

Glória era do tipo de mulher que via poesia até em gibis do Fantasma. Evidente, eu tanto mais severo, sabia que aquela frase não mantendo compromisso com a coerência mais se assemelhava a um amontoado de palvaras.

-Pai, a sua viagem será no fim do mês? Você havia dito que queriam sua palestra numa universidade do nordeste.

-Não. Não será mais – Respondi secamente –  No dia anterior eu recebera a comunição da universidade dispensando-me da apresentação.

“Prezado senhor Bodawski

Cordiais saudações
Por questões de calendário estamos cancelando sua
palestra, talvez para uma data oportuna.
Comunicaremos qualquer decisão”

Certamente eu não acreditava que houvesse alguma verdade ali. O mais provável é que eu tivesse sido alvo de preconceitos de alguma associação da localidade, quem sabe uma moção de repúdio das Senhoras da Liga Católica, afinal é comum ao reitor nordestino alimentar estreitos laços com a Igreja e suas representações locais. Portanto aqueles garotos e garotas acostumados aos shows de sertanejos universitários dos parques de exposições  teriam que esperar nova oportunidade para se haverem com o grande escritor.

Claro que compreendi, ainda mais pelo fato de minha literatura ser considerada porngráfica.
Aliás, verdadeiramente nunca me tive na excelência de um escritor, mas apenas um sujeito que escrevia o que desse na telha deixando questões gramaticais para aos revisores da língua mãe.
Eu jamais seria um Celine, Fante, Faulkner ou mesmo o velho Hemingway . Entendia perfeitamente que me encontrava há duas galáxias de Machado de Assis ou José de Alencar. Afinal, eu era apenas o escritor tido como  "O senhor das prostitutas" – um marginal no mundo das letras.

Glória, percebendo o meu desencanto insistiu seus olhos em  mim por alguns segundos para depois se manifestar.

-Tsc, tsc, tsc – Nesse país não há compromisso com nada! Não há respeito por ninguém!-  Ela disse tentanto levantar o meu astral. Olhei pra ela com carinho.

Glória estava comigo há oito anos – Recordo que a conhecera numa tarde de autógrafos em uma pequena livraria do centro de Curitiba. Na época os rapazes das universidades me achavam o máximo. Porém o fato jamais se constituiu novidade, afinal esses garotos são fissurados por estórias de prostitutas, bêbados e suas bebedeiras. Todavia  nós os escritores do submundo tivemos o nosso tempo e agora nos pegávamos à marginalidade, ao fracasso de vendas e público, uns pobres devassos a mercê das cópias gratuitas e piratas de obras disponibilizadas na internet.  Porém isso não vinha ao caso e observava  Glória se arrumar e a mesma magia do olhar e do seu corpo ainda estavam lá, intactas Repentinamente ela me rapta dos pensamentos.

-Caraca, pai! Essa foi de lascar! Justo nesse mês?  Foi muita falta de consideração desse pessoal.  – Disse num lamento de quem sabia que estava suportando as despesas de casa.

Glória continuou a se arrumar já que pegaria no trabalho nas próximas duas horas – Sim, era um emprego bem remunerado na supervisão do departamento de tecidos importados num grande magazine de São Paulo. E a sua função, mais que merecida, afinal Glória se ralara por bons três anos até galgar a posição, um justo reconhecimento ao esforço e competência.

-Sabe...o Nicolau continua dirigindo gracejos para mim. Aquele idiota não se manca! – Reclamou ao rumar à cômoda para escolher bijuterias que adornariam o seu rosto. Glória estava especialmente linda naquela saia justa de tom esverdeado e inspecionava-se ao espelho deslizando as mãos pelo traseiro a fim de assentar o tecido ao corpo – Eu pensava sobre o que dissera sobre Nicolau, o gerente geral do magazine.

-Bem..esse cara sempre foi e será um escroto. Lembro do caso que você me contou, da menina do departamento pessoal e do bilhete azul por ter dado um tapa na cara do safado - Respondi. Glória assentiu com a cabeça ao ultimar os detalhes do seu ritual.

Era estranho e eu me embevecia ao flertá-la sem perder qualquer dos seus detalhes e movimentos,  nem mesmo a franjinha que conferia  a ela um ar maroto e excitante. Eu podia entender a dificuldade de  Nicolau e da maioria dos homens com quem ela trabalhava, afinal, impossível não se deslumbrar diante dum bumbum tão perfeito e que se acentuava sob o tecido nas marcas das pequena calcinhas que vestia. E antes de borrar os grossos lábios num batom vermelho encarnado ela me beijou e enfiou sua língua em minha boca – Sorri para ela deslizando minhas mãos no seu traseiro; Me excitava o gosto da hortelã impregnado em sua língua após escovar os dentes–

-Daw, hoje eu to muito, muito a fim mesmo! – Sentenciou ao findar os ritos da vaidade. De quebra, novamente mordiscou meus lábios e apertou o meu pau. Ah sim! Vez ou outra Glória usava parte do meu nome para chamar-me de Daw.

Eu me excitava quando me dizia coisas daquele tipo dando vazão ao seu instintos felino. Devolvi um sorriso sacana àquele hábito seu de me prevenir da  suas vontade, geralmente manisfestas na tradicional  apertada do meu pau. Portanto aquela seria a noite de me desdobrar para a satisfazer a minha pantera. Depois com tudo providenciado perguntou-me se estava bonita e pisou fortemente em cada um dos pés para ajustar os saltos de 10 cms aos sapatos – “Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu” – Ela cantarolou a música ao rumar à direção da porta de saída – Roberto sempre esteve entre os 10 mais no top list de Glória. Eu ria e achava curioso, afinal o que poderia haver de cimum entre ela e Roberto? A inda com um cara que nada tinha a ver co a sua geração? - Nada! absoluatmente nada. Sorri mis uma vez; Não que gostasse de Roberto, mas o respeitava e reconhecia o seu carisma

--Beijos, Daw! Te amo! - Ela de despediu

-Beijos, amor! Também te amo! - Retribui ao fechar a porta e girar a chave. Rapidamente encaixei uma das vistas nio olho mágico e a vi sair pelo pequeno jardim. Ao passar pela roseira, confundi-as.

Assim que se foi eu pensei seriamente sobre o ato de “fazer amor”, e não soube elucidar, mas ultimamente me sentia melhor escrevendo sobre uma boa trepada do que propriamente participando dela. Talvez eu andasse excessivamente desconcentrado, disperso e preocupado com a minha literatura que não mais ia há lugar algum. Também pensava nas diferenças que nos cercavam, principalmente as idades – Ela 28,  eu 55 – E isso invariavelmente me fazia comparar os nossos rítmos,  performances, e infalivelmente eu concluía que éramos nada mais que motores em funcionamento assim como de um carro, avião ou trator. E sendo máquinas fadavamo-nos ao obsoleto, ao fim, ao largar o posto para um modelo mais novo, assim como os japoneses que, friamente se quedam ao novo ao jogarem no lixo os seus equipamentos ás vezes nem tão velhos.
E isso me preocupava sobremaneira, já que, com um prazo de validade a caminho do fim poderia ser e ter-me como a bola da vez. Recordo de ter tocado nesse assunto com Glória por umas três ou quatro oportunidades, geralmente em estado não tão sóbrio. – “Que pensamento absurdo, Daw!” Ela dizia com um sorriso compreensível nos lábios. Geralmente naquelas ocasiões ficávamos pensativos, porém Roberto Carlos não gostava de ver pessoas circunspectas –“Eu te darei o céu meu bem/E o meu amor também” Foi o que ela e Roberto cantaram para mim naquela noite. Bem, nada mal, afinal aquela noite culminou com juras de amor e gemidos sob os lençóis.

E agora que ela se fora eu sentia  saudade e eu nada tive  a fazer salvo entreter-me aos pensamentos que diziam à nossa forma de relacionar.  Pensamentos que poderiam se transformados em idéias para um ótimo texto, quem sabe até um novo livro, porém nada acontecia nada, e eu nada produzia. Fui para o quarto e me deitei e achei estranho estar ali em plenas duas da tarde, entediado e olhando para o teto como se esperasse das lâmpadas econômicas as soluções para todas as dificuldades.
Inquietei-me, abandonei a cama e fui para a cozinha e sobre a mesa um casal de mosquitos tentavam copular, aliás, o macho insistia em copular. Eu procurei não atrapalhar e assim o mosquito se posicionou  em cima dela e vigorosamente agitava suas asas a fim de ajeitar-se numa melhor posição. Ela, arisca,  indicando não sentir a menor vontade duma transa relâmpago fugia do cortejador. Porém o mosquito não se dava por vencido até que ela, ligeira,  voou para longe do seu instinto reprodutor, acabando com a festa. Aquilo me entreteve por algum tempo, ma percebendo que estavam fadados ao fracasso desinteressei por completo – Será que moscas teriam TPM? – Hã? Sorri de mim mesmo. Um cretino sorrindo de suas cretinices.

Na janela da cozinha a claridade denunciava um sol abrasivo. Saindo pela porta rumei para o pequeno quintal. Na grama, deitado, o gato do vizinho que repousava tranquilamente assustou-se com o meu barulho e em largos pulos ganhou o muro divisório e depois saltou para cima do meu telhado. De lá, persistente e mal encarado ficou a me fitar, como dissesse – “Pô cara, tu é um desmancha prazer” – Eu achei engraçado e também o olhei por algum tempo até que,  desinteressado,  virou o corpo de pelos negros e seguiu ao longo do telhado e desapareceu das minhas vistas.
Momentaneamente senti vontade de ser ou parecer como ele e então me esparramei no gramado e rente a relva fiquei a observar a existência que havia ali. Impressionei-me com a cadeia produtiva e com as centenas de formigas que como um exército marchava carregando ínfimos pedaços de folhas, para serem depositados no fundo do formigueiro – Um pouco mais adiante mexi e toquei com um graveto em dois caramujos que se recolheram desconfiados. Pouco mais à frente Cid e Nancy, o nosso casal de tartarugas trocava carícias. O bom e velho Cid sempre me pareceu fanático por sexo e se mantinha em plena forma com as pastas sobre o casco da submissa Nancy que, imóvel parecia não querer quebrar o barato do velho companheiro.
 “Deus! Será que todos não conseguem pensar em outra coisa?” – Resmunguei - O sexo podia ser visto a olho nu por todos os lugares daquele gramado. Era só ter um pouco de paciência para deparar-se com ele –

Fiquei por lá por quase uma hora com sol tostando meu rosto e braços – Eu sempre fora sensível aos os raios solares – A face e os mebros superiores ardiam quando achei melhor voltar para a casa. Entrando no quarto procurei o controle do DVD e coloquei no aparelho um filme que Glória locara no dia anterior. - Paris-Texas era o nome – Achei o título interessante. Afinal o que poderia significar Paris-Texas? – Assistindo foi que descobri que era o nome dum diminuto vilarejo do interior dos Estados Unidos.

Sim, um filme dramático que contava uma estória emotiva e angustiante, porém sem ser piegas.
Estranhamente me senti na pele do personagem central – Um cara desesperado que saiu à procura da mulher, 27 anos mais nova e que sumira de casa dum momento para outro– E a louca busca terminou depois de muito tempo no puteiro de um lugar escaldante, Paris Texas, onde as únicas diversões eram as garotas e as cascavéis rastejando-se nas terras tórridas à procura de abrigo do sol  – E nesse puteiro formado por cabinas individuais as garotas atendiam seus clientes atrás de divisórias de vidros, algo como imensas janelas. E eles ao entrarem eram aguardados por elas e por fortes focos de luzes que, direcionados aos rostos das garotas impediam as feições dos clientes. E os sujeitos impunham-lhe  posições, trejeitos, caras e bocas através de orientações pelos microfones. Portanto era  apenas uma questão de tempo, e então elas ouviam os gemidos de seus gozos ao chegarem ao ápice. – Contudo foi melancólica e deprimente a cena em que o personagem reconhecendo a esposa pediu  para que ela se masturbasse.

Terminado o filme senti que ele roubara alguma coisa de mim nos pensamentos que se intercalavam entre os lixos japoneses e a dolorosa situação vivida por um homem tão perdido como um puteiro no meio de cobras e deserto. Introspectivo e sem conseguir me desvencilhar da cena da masturbação eu perambulei pelos cômodos da casa até decidir tomar algumas cervejas. Por volta das oito da noite e eu havia consumido mais de uma dúzia de latinhas quando a porta se abriu abruptadamente e Glória surgiu. Confirmei no relógio e ela voltara duas horas antes do previsto – Sua feição denotava ódio:

-Aquele filho da puta! Aquele escroto de merda me encurralou nas prateleiras e me pressionou de encontro aos tecidos tentando deslizar a sua mão nojenta em mim – Glória esbravejou contorcendo o corpo, indicando o local onde ele a tocara. Eu a olhei, aturdido. Glória estava furiosa demais para parar:

-Ah, mas ele viu com quantos paus se faz uma canoa – Ah se viu! Empurrei-o para o lado e peguei uma tesoura ao alcance da mão e me fui á sua direção!–

-E conseguiu espetá-lo? – Perguntei preocupado.

-Que nada! O filho duma égua deu sorte. Soraia e mais duas garotas ouvindo os seus pedidos de socorro atracaram-se comigo e tiraram a tesoura da minha mão – Respondeu insatisfeita e com os olhos cuspindo fúria.

-Glória, porque não mandou esse cara se foder? – Argui.

-E você acha que não mandei? – Semana que vem passo lá só para receber o meu cheque

Glória estava tão fora de si que atirou a bolsa de encontro ao sofá ao mesmo tempo em que se desvencilhava dos saltos e da justa saia verde. Depois de alguns momentos ela envolta numa toalha se dirigiu ao banheiro - “Eu sou terrível/ E é bom parar/ De desse jeito/Me provocar” - Eu a ouvi cantar, aliás, esbravejar fora do tom. Logo após ouço o barulho da porta do Box se abrindo – Pra variar, Roberto Carlos, até nas horas mais difíceis continuava soberano -

Assim que escuto o som da eletricidade agindo no chuveiro algo me vem à mente e eu pego o caderno e escrevo: dificuldades para assimilar a que me desafiava:

 “Despida de roupas e pudores a louca profana foi fecundada por quinze homens de gesso nas melancólicas corredeiras do rio Saigon” - Leio, releio, e insisto em voz alta.

-Que merda! – Gemi. Eu simplesmente não sabia o que fazer com aquilo.

Depois de 20 minutos Glória sai do banho num transparente baby-doll branco - Ela estava ótima e parecia que o banho quente havia a acalmado. Ela até sorria.

-Daw, vamos pedir uma pizza de escarola e aliche?

-Vamos! E sem esquecer-se da camada extra de mussarela! – Concordei rumando ao telefone - Glória e eu adorávamos o contraste da verdura e o peixe salgado. E também era bom para descontrairmos.

E ela continuava me fitando naqueles imensos olhos negros. E ela sorria um sorriso que conhecia bem, um sorriso lindo em lábios isentos de batom.

-Paizinho, depois da pizza vamos ver esse filme que aluguei? – Disse com o DVD na mão. Depois, indecisa e olhando para a capa do filme questionou:

– Daw... se Paris é na França e Texas, nos Estados Unidos, como pode ser Paris-Texas? –

-Sim, claro que pode. Não só pode como é! – Eu respondi olhando atentamente para formato dos protuberantes seios espremidos por debaixo daquela misericordiosa transparência. Logo após ela vestiu um robe lilás e extremamente feminino –

– Ah, é assim, vou te explicar - Pigarreei ao vê-la dar o nó no tecido.

Então inventei que havia assistido ao filme e ele retratava a época da “Guerra Fria” e contava a estória de dois espiões que se odiavam; um americano e o outro, francês.
E mesmo que trabalhando em conjunto e para uma só causa, cada qual tentava ser mais preciso na espionagem contra a poderosa KGB da ex União Soviética.

- E foi assim... uma estória idiota que termina com cada um  planejando a morte do outro – Concluí bocejante para uma Glória atenta ao que eu dizia –

Glória olhou novamente para a capa do DVD com indiferença e calmamente o repousou acima do rack da TV - Ela odiava filmes de ação – Foi bom para mim, pois me livrava de outro momento de depressão.

Caminhando na direção do telefone olhei os outros dois DVDs que ela trouxera e escolhi um de capa engraçada - “Faça a coisa certa” Dizia o título - Um grande filme que narrava de forma divertida e dramática o preconceito americano diante dos negros e emigrantes de descendência latina.  Nesse meio tempo Glória estava às voltas com a nossa cama e ajeitava os travesseiros para que pudéssemos assistir à fita.

-Por favor, também mande meia dúzia de cervejas em lata e um Guaraná Diet. de 2 litros– Pedi para o rapaz da pizzaria.

Do telefone fui para o banho e após uns 25 minutos retornei de barba feita e recendendo à água de colônia. Glória já me esperava debaixo do edredom. Ao lado, na mesinha de cabeceira uma redonda caixa de pizza nos aguardava ladeadas por pratos, talheres, cerveja e um copo de refrigerante – Abri a cerveja e a caixa e a pizza e a sua aparência estava ótima. Fechei-a. Ela sorria quando me deitei, dei um gole na cerveja e me ajeitei ao seu lado. Glória persistia sorrindo ao exalar o odor do meu corpo. Suavemente ela roçava a língua em todo o meu peito e, depois, como era de se esperar enfiou a língua em minha boca – Eu sabia o que significava aquilo - Sensualmente entrelaçou suas pernas nas minhas enquanto o disco do DVD em funcionamento apresentava trailers de outros filmes.

Líamos os letreiros do “Faça a coisa certa” quando meus pensamentos voaram para um lugar distante – Eu tentava imaginar como eu faria para possuir alguém nas corredeiras do Rio Saigon – Voltando à realidade, olhei pausadamente para os negros olhos de Glória – Ela estava magnífica – Eu sorria quando me ocorreu que tanto a pergunta como a resposta sempre estivera ali ao meu lado e alcance – Eu achara a solução para o meu grande dilema sem necessitar longe – Por fração de segundos relembrei a decepção do mosquito – Não, comigo não será assim.  Disse para mim ao agarrá-la pela cintura e a beijá-la com volúpia deslizando meus dedos por debaixo do robe - Glória estava excitada.  Com delicadeza desfiz o nó do roupão apreciei o seu corpo seminu, apenas adornado pelo baby-doll transparente - O filme teria que esperar. “Coisas certas” estavam sendo feitas, não numa corredeira, mas acima de uma cama de imbuia maciça.
Na caixa, a pizza ainda permanecia com os pedaços unidos, porém prontos para serem degustados. Tanto nós como eles sabíamos que a noite seria das melhores.

-Bzzzzzzzzzzzzzzz – Zuni suavemente em seu ouvido.

-Aiiii meu mosquitão! – Exclamou e depois riu suave e feminina.

Eu estava com tudo! Ela apenas me cutucou e riu.  Eu também ri e respondi que de certa forma eu sempre fora um díptero. Ela fez uma expressão de quem não compreendera, e o que não evitou que os negros olhos deixassem de ler a minha alma. “Eu te amo, Daw” ela sussurrou enquanto me apertava por cima da braguilha. Uma sensação boa transbordava em mim, e sentia-me capaz de possuí-la nas violentas corredeiras de um rio qualquer, mesmo o de Saigon. Ela continuou sorrindo e pressionando meu corpo cada vez mais forte. Eu a beijei apaixonadamente e selei o seu corpo junto ao meu como se fossemos a extensão um do outro. Eu apenas torcia para que aquele sentimento jamais terminasse e que não houvesse dor que me fizesse reencontrá-la. Para nós, Paris Texas era e seria apenas um lugar distante

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