domingo, 22 de janeiro de 2012

Espanhola


I – A Espanhola


-Vem aqui cabron! Quiero cincuenta reales entre los pechos de su Dolores, ahora!  - Ela ordena. 

Gosto disso. Gosto desse seu jeito de cobra e da hora imprevista do bote. Portanto sabendo que vai me pegar de um momento para outro é que coloco a nota entre seus seios e adentro o seu pequeno quarto, sua caverna que fede à perfume e cigarro barato.

Sim meus senhores! Apresento-lhes Dolores, a “Espanhola”.

É uma história tanto complicada. Dela só sei que veio da Espanha, região basca propriamente dita e está há pelo menos dois anos aportada no Brasil. Não, não! Não chegou ao nosso país atrás das folclóricas festas dos bois amazonenses ou dos badalados desfiles das escolas de samba na Marques de Sapucaí. Ela pisou o nosso território à custa dum casamento prometido numa louca história de Internet. Confidências suas e que apesar do pouco tempo de nossa convivência  fez questão que eu soubesse.
Não, Dolores não é mulher de chorar o leite derramado apesar dos seus momentos de fragilidade. E sei disso, pois certamente sou um dos seus melhores e privilegiados clientes.  Enfim, é uma melancólica e arrebatadora história de uma mulher que se apaixonou e que acalantou durante um tempo o grande sonho da felicidade. Felicidade que virou pesadelo a partir do dia que pisou o par de calçado 39 no Aeroporto Internacional de Cumbica. Antes, porém é necessário procurar o fio nesse novelo emaranhado. Vamos a ele...




II –  O Golpe Vagabundo ( O Brasil envolvido)


-Dodô! – Sussurrou com voz adocicada (era assim que o vagabundo chamava a Dolores) - Depois de pequena pausa continuou:

-Sabe amor, de nada vai adiantar você trazer esse tanto de dinheiro ao Brasil já que é quase certo que a Federal vai confiscar a sua grana assim que pisar no aeroporto...

Dolores a tudo ouvia. Ela estava prestes a embarcar para o Brasil e o seu coração estava apertado e as dúvidas corroendo suas certezas. Contudo o que ela jamais poderia imaginar era que estava diante dum sujeito que, além de boa pinta, era frio, calculista, um verdadeiro artista na arte de atuar e ludibriar.

-E outra, amor! Aqui os federais são uns ratos! Esses caras da lei vasculham tudo, inclusive a genitália para ver se abriga drogas nas entranhas. É um terror! - O malandro dramatizou naquela última conversa  diante de webcams.

O homem percebia que causara a aflição da mulher. Agora quase não havia mais dúvida; O ardil seguia em bom caminho:

 - Sí, mi amor. Entonces, qué podemos hacer? Puede usted decirme?

Bingo! Daí para frente foi fácil. O canalha a convenceu de que fizesse em seu nome uma ordem de pagamento. O dinheiro veio dar numa agência dum banco na Avenida da Liberdade. Óbvio, tudo frio, nome, conta, documentos, menos o banco e o dinheiro sacado, claro.


III – A Espanha invade a Coréia


-Dónde está el descarado Eustógio? Quiero hablar com esse hijo de una puta!- Ela irrompeu o local em altos brados enquanto que batia os pés  e balançava as duas mãos nos quadris.

Depois de algum tempo o perplexo coreano  pateticamente  protestou.

-A senhola só pode tá lôca, dona! Aqui tem Istógio nenhum!  Aqui é loja de internet, lugar de ganha pão de Dong Hwan! Vá ploculá a sua turma, vá!   –

Sim, Dong Hwan fora pego de bermudas justas, literalmente,  diante da intempestividade da mulher de corpo farto e encapetado como o próprio demônio.

Claro que não houvera no aeroporto e conforme o combinado o amado juntamente dum buquê de flores para festejar o seu desembarque. E isso ela só foi dar conta após duas cansativas horas de espera no saguão sem que algum sujeito com cara de apaixonado desse as caras e dissesse: - Meu amor, é você? Que felicidade!”- Por fim, acabou desistindo de permanecer ali. Depois disso só restou a esperança de algum contratempo além  das malas e um endereço num pedaço de papel no qual foi deixada pelo taxi. Com o trio de malas na calçada ainda conferiu por duas ou três vezes o endereço e confirmou ser aquele o local que certa vez o homem mencionando ao acaso a aflorada premonição mandou  guardar.

E o lugar não poderia ser outro, afinal, até o telefone para o qual esporadicamente ligava estava impresso na placa indicativa da atividade comercial.  Finalmente, depois de muito olhar para o letreiro, ela entrou e sabemos agora o desenrolar da parte inicial da história. Porém, somando-se todos os infortúnios ainda mantinha-se distante da compreensão da espanhola o fato de ali ninguém conhecê-lo, saber do seu paradeiro, ou de qualquer detalhe que a levasse à presença do indivíduo.

A pendenga perdurava e o coreano tentava convencê-la. E ela por mais que se esforçasse não o entendia e muito menos se fazia entender. De certo só a persistente afirmação do coreano que dizia desconhecer o tal "Eustógio". 
E era esse o motivo que a deixava incontrolável.

- Mi San Antonio, usted no entiende, hombre de Dios! Pero este fue el número de telefono e o local que Eustógio me disse!  Está a cá! – Gesticulava ela mostrando o pedaço de papel

Somente com a ajuda de um moço que acabara de adentrar a loja e que mantinha parco conhecimento da língua espanhola é que o coreano tomou ciência do que pretendia a mulher.


IV – A Coréia contra-ataca e a Espanha bate a retirada


-Ahhh sim! Agora entende, mas Dong Hwan tem nada a ver com isso!  E esse telefone é de lanhouse e não desse pessoa. Hwang ás vezes emplesta telefone pra fleguês! Só isso!

Foi então que a seu modo tentou explicar para a espanhola que era um serviço a mais que prestava aos seus clientes. E para isso era necessário apenas que o cliente fornecesse para ele o número de quem faria a ligação e ele a transferiria para a cabine assim que  fosse identificado no aparelho.

-Ta pecebendo minha senhola? - 

Ele tentava mostrar como as coisas funcionavam apontando para um caderninho onde fazia as anotações dos números e depois para o  moderno aparelho telefônico com o identificador de chamadas e transferência de ramais. Para que não houvesse margem de dúvida ainda a levou  para uma das cabines e lá mostrou o interfone que só se prestava para receber as chamadas.

Ela, por sua vez insistia na leitura dos lábios do coreano e às explicações do recém chegado, porém compreendia porcamente o que dizia um e o outro.  Por fim extenuada desistiu de tudo e também daquele coreano maluco que dera de mostrar aparelhos e sistemas que ela jamais conhecera. Trágica, apenas persistia olhando o ambiente e pras máquinas diabólicas manejadas por garotos que jogavam games em rede e que berravam tão medonhos quanto furiosos gorilas. E se não bastasse, os seus gritos  se juntavam aos ensurdecedores tiros de metralhadoras, às explosões de bombas e minas terrestres, estrondos tão dilacerantes que mais davam a sensação que seria ali o próprio inferno. Foi então que suas lágrimas rolaram pelas faces; Agora ela compreendia tudo; jamais encontraria o patife.

- Que gran desgraciado fue usted, Eustógio! – Bradou ferida de morte ao abandonar a Lan House sem ao menos se despedir do coreano

E foi desta forma naquela fria e melancólica segunda feira que Dolores descobriu que havia sido mais uma vítima dos golpes virtuais.


V – A Meretriz da Espanha em terras brasileiras

-Cómo pude ser tan ingenua e estúpida? –

Por coincidência foram àquelas as recordações que fizeram-na  interromper num sofrível portunhol a nossa "espanhola" de 50 pratas que estava em pleno andamento. O movimento brusco e irritadiço do seu torax fez escapulir o meu pau do meio dos seus peitos.

- Ah mi encantador Pujol... como soy tonta e abestada! – Ela me olha e se desarvora no lamento. Óbvio, irrito-me; tinha que haver maior profissionalismo.

-Ei, ei, Manolita!  Que merda que é essa? Não tenho nada a ver com esse teu lance. Eu paguei 50 pratas antecipadas pra ter o meu bibelô no meio das tuas tetas! Portanto... faça o serviço bem feito!

Não foi um bom momento de esfregar-lhe nas fuças o quanto fora imbecil.  Senti isso em seu olhar rude, estranho, daqueles que não gostam de levar desaforos para casa.

- Oscar, yo sempre me pregunto; cuando su pequeño “pipi” se convierte se em uno de um hombre de verdad? – Ela diz com pouco caso.

Claro, era chacota com o tamanho do meu pênis. Era sua forma de se vingar Mas, quem era ela pra ferir o orgulho de um homem; o que a espanhola pretendia provar com a galhofa fora de hora? Pretendia que eu broxasse? Pois bem, espere!

-Sua rameira catalã! Não é meu pau que é pequeno, e sim os teus peitos que são descomunais! – Devolvi furioso. Antes de tudo teria que saber que eu não era flor que se cheirasse.

Sim, confesso; era o amor próprio atingido. Porém eu tive que atacar aquele indescritível par de seios, dono de um sutiã cujo número nem mesmo sabia como calcular. Todavia a mera insinuação que os seus peitos pudessem se assemelhar aos da vaca leiteira, foi demais.  Ela não terminara comigo.

- No, no! No puedes te quejar jamas, Oscar! O que me paga és unicamente la miesma proporción de tamaño de su “pingulim” Ou seja,  niente! Usted me recuerda a um toro..Um toro capado, Oscar!


VI – O Brasil rendido à “fúria” Espanhola


Furiosa como o touro estocado de morte ela se levanta e recoloca a calcinha de rendas amarelas com pequeno furo numa das nádegas. Continuo olhando enquanto Dolores abotoa o sutiã lilás. Fixo-me na região do colo e sou capaz de apostar a vida que naqueles bojos caberiam tranquilamente duas ótimas bolas de boliche. Depois a vejo dirigir-se à penteadeira, uma peça antiga que abriga um espelho com algumas ranhuras e marcas do tempo.
E lá ela senta e chora. No início um choro contido, calmo como as mansas ondas depois do vento sul. Insisto o olhar no espelho e no reflexo da sua imagem percebo que nela ainda se emoldura algo da nobreza de outrora. Fidalguia da qual ela se desfaz a cada visita dos nossos hermanos brasilianos. Visitas que pagam seus favores sexuais,  que permitem a sua subsistência e o pagamento do aluguel  dum obscuro quarto de pensão onde se esconde.

E ela apenas persiste chorando baixinho, sem estardalhaço, e isso me faz supor as tantas ilusões e mentiras que se fartam nesse meio virtual. E a coisas tomam formas e cores tão dramáticas que me fazem crer que neste mesmo momento outras pessoas estão sendo enganadas, lesadas, passando por situações parecidas ou bem piores que a dela. Ainda penso nisso quando me levanto da cama e visto a calça, abotôo a camisa e ajeito os cabelos com os dedos. A noite para nós está irremediavelmente perdida. Agora o momento era outro; o da necessária solidão para chorar feridas e o pavor  de sair deportada do Brasil.  Mais que ninguém Dolores sabia da necessidade de voltar para casa. Mas ela é altiva, orgulhosa, não é bandida, portanto não pretende sair daqui algemada e muito menos pela ação da sua embaixada - "Prefiro ter essa vida de cão a sujeitar-me aos olhares de desdém dos meus compatriotas" - Ela disse ao sair de lá quando lá esteve numa vez pedindo ajuda para retornar. Óbvio, tinham percebido que ela se prostituía. E isso a preocupa; eles são orgulhosos,  preferem dedurar à migração brasileira os próprios compatriotas que estejam nessa situação

Antes que eu saia Dolores já está em pé e veste um robe de cetim rosa onde notamos visíveis manchas de gordura. Eu insisto com os olhos na sua figura e percebo que ainda há beleza em seus olhos negros, olhos que provavelmente reluziram mais que hoje. Assim que me coloco à saída ela vem em minha direção com a nota de 50 e enfiando a mão em meu bolso se livra dela. Faço menção de protestar, de dizer que não quero o dinheiro, porém ela refuta. E quando Dolores refuta nada a faz  retornar. Ao sair ela beija a minha boca e eu sinto um gosto acre como se ela tivesse degustado uma salada de alho misturado ao atum. Momentaneamente sinto-me nauseado e engulo a saliva e fabrico outra na esperança que o gosto se dissipe ou que amenize.

Ouço o bater da porta e a sua sombra desaparece pela fresta da soleira. Agora sozinho aguardo alguns segundos e retiro do mesmo bolso duas notas de 50 e as coloco juntas e as empurro pelo mesmo vão.
La dentro as luzes já estão apagadas e o que me faz crer que Dolores deságua a dor da saudade com a mesma dolorida frieza dum oceano contaminado pelo vazamento das petroleiras.

-Hasta la vista, baby! – Digo ao lançar um beijo na direção da casa - Juro que não sei o porquê, mas, gosto de você! – Sussurro ao sair pelo portão e dirigir-me ao ponto de ônibus mais próximo.

Assim que o coletivo estaciona subo os degraus encapados por uma grossa borracha negra e acomodo-me no banco ao fundo. O ônibus está completamente vazio e ainda há em mim um resquício do gosto do alho e do atum. Abro e olho pela janela e as ruas se desfazem das luzes das casas. Já é noite quase alta e as pessoas se preparam para descansar no aguardo da ferocidade do leão diário. No primeiro semáforo vermelho o veículo faz a parada obrigatória e eu me esforço para fabricar mais uma pequena porção de saliva.
Ainda continuava nauseado.


Copirraiti 22Jan2012
Véio China©