sábado, 2 de maio de 2009

O escritor e o alter ego - Uma morte anunciada


- Que merda!  Por que tem que ser assim? – A pergunta ecoou num canto do bar. E quem a questionou foi um sujeito calvo, barbas grisalhas e que aparentava estar na casa dos  57 ou 58 anos. A queixa é dirigida para um sujeito mais velho numa tom descompensado, ébrio, o evidente sintoma da bebidas ingerida até aquele momento.

O seu aborrecimento poderia ser traduzido como as angústias do escritor ao não mais escrever ( e há muito tempo) coisa que prestasse. Nos momentos sóbrios de sua solidão até que tentou textualizar contos que fossem bons, porém hoje o que o acompanha são apenas ideias confusas e num vocabulário notálgico e chulo, e isso o deixa numa sinuca de bico como se o corpo estivesse entregue às chamas num teatro onde a única rota de fuga apresenta o piscar de numa placa de letreiro em neon onde se lê - Sem Saída -.

E é essa a constatação do próprio fracasso, uma isenção de criatividade que o deixa perplexo e entregue às  lamúrias e aos tapas de luva de pelica da sua herança abarrotada de textos sujos e personagens pervertidos. Sim, talvez a vida estivesse sendo rude com ele,  pois para um escritor reconhecer o seu fim equivale a constatação que sua escrita atingiu o prazo limite da validade.
Claramente há a saudade do ontem, mas os seus  leitores de antes não são os de agora, pois muitos daqueles ainda militam pela vida,   próximos e quem sabe de gordas aposentadorias. No entanto alguns devem ter tido mais sorte ao ostentar nas paredes dos seus estabelecimentos ou consultórios placas indicando os seus nomes e os títulos honoríficos a que fizeram jus.
Sim, para o nosso escritor nada disso se concretizou, aliás, pouco até, e hoje é comum flagrá-lo nos bares das redondezas sustentado pela antecipada aposentadoria por graves problemas hepáticos.
Para ele, contrário de tantos outros, jamais houve a prestimosa esposa  e o jantar das oito ou grana o suficiente para um charme com a amante ardente e os vestidos nas vitrines dos Shoppings Centers.

Não, com ele não, pois a vida lhe foi inequívoca, entretanto foi dele a falha ao não perceber que o mundo mudou, que as pessoas mudaram, e a que a juventude deixou de se interessar por literatura, preocupada talvez com os jogos de computadores e celulares, ou sedente por megas eventos desumanos, assim como as festas do peão e boiadeiro que se espalham nas arenas do Brasil.
Portanto ele sabe e todos não desconhecem que, os que hoje entram em livraria estão mais propensos a adquirir livros de "auto ajuda"  ou aqueles que possam que tratar  de temas fúteis, de amores banais, torcendo os narizes para livros que cheiram à pó, mesmos que esses apontem verdades inexoráveis e historias fantásticas, sejam elas do estilo que for.

-Merda! Por que tem que ser assim comigo? O nosso escritor volta à cena  queixando-se para o amigo. O velho o ouve e se mantem cravado nele ao não lhe perder qualquer  movimento labial. E há estranheza ali, pois o velhote pareceu irritado ao retrucar:

-Ah seu autor ingrato! Você é um daqueles escritores que jamais poderia  estar se queixando. - Refuta atropelando as  palavras que abandonam a boca igualmente ébria.

- Não tenho? Tem certeza que não tenho os meus motivos? – Insiste o escritor.

-Merda! Claro que tenho certeza! – Devolve o sisudo senhor, agora mau  humorado, socando o tampo da mesa,  desequilibrando a garrafa de cerveja, fazendo escorrer o líquido por entre as frestas do madeiramento.

À princípio a cena poderia sugerir um corriqueiro bate-boca entre bêbados num bar, entretanto a ferocidade do tête-à-tête indicava coisa grave e decisiva e que bem poderia lembrar a ansiedade dos julgamentos em tribunais. Aliás, o áspero diálogo flagrado numa mesa de fundo do bar movia criaturas conhecidas de longa data, personas transitantes no mundo da literatura, um universo reconhecidamente egocêntrico e  narcisista. O fato, de inusitado ou insano, dependendo daquilo que se pretendesse ver, oferecia uma única pessoa sentado à mesa.  Sim, era isso. Não havia a figura do interlocutor, mas apenas um sujeito isolado dialogando e esbravejando consigo mesmo, fazendo o uso de sua tonalidade natural ao interpretar a si, e um outro tom de voz  ao estar na pele do fantasmagórico amigo . E as esquisitices não se freavam aí, pois a cada vez que interpretava o colega idoso emoldurava no rosto daquele um par de lentes negras e arredondadas que, sistematicamente era sacado de cima da mesa. Sim, seria cômico se não fosse trágico o monólogo pródigo em cobranças sem sentido, mas que não surpreendia os frequentadores mais antigos do lugar, acostumados às cenas lunáticas e à ficção dos diálogos.

No entanto já é passada a hora de conhecermos o lado engraçado mas, cruel, dessa história que movimenta um sujeito à beira da esquizofrenia. O seu  nome dele é  Onadia Inavap,  um cara solitário e beberrão.
Onadia é um infectado pelo vírus da literatura desde o grupo escolar e dono duma biografia literária que não veste grande importância, salvo se retroagida aos meados da década de 70,  uma época do  “paz e amor” e  dos protestos contra a ditadura militar que agonizava um Brasil saudoso de democracia.
Evidente, naquele tempo o efêmero surgimento de suas letras aos 22, e junto das suas sujas histórias, aliadas às linhas que alfinetavam o regime acabaram o transportando para camadas duma juventude que começava sentir o sabor dos rebeldes. E contestar era ser inovador, era vestir a roupas de modernidade, era ouvir  Zepellin, Purple e Floyd depois de um noviciado com Beatles e Rolling Stones. E foi esse o momento para os meninos das faculdades que, expostos à virulência policial e às borrachas dos cassetetes deram a cara para bater.
Convém salientar que as explosões de protestos foram dolorosamente rechaçadas pelo regime num abrandar que veio ainda mais pela força, com quase nenhuma liberdade para reuniões em pequenos grupos, pois mostrar simpatia por um sujeito com o pé na esquerda era quase um crime; Comunistas! Era assim que os militares tratavam os poucos milhares de manifestantes.
Portanto, com a juventude preferindo megafones aos contos de putaria  o esquecimento do autor se fez tão veloz quanto a sua aparição. Passado mais de um ano da publicação do seu livro " A crônica dos subterrâneos" e abandonado pela rebeldia dos jovens, Onadia se pôs a escrever croniquetas para jornais de bairros, mas causando desinteresse por suas matérias de  linguagem pesada, fato que o tornou a pedra no sapato dos editores, e assim o bilhete azul foi inevitável.

De lá para cá, vivendo às custas de pequenas reedições da sua única publicação passou a criar histórias extravagantes e é com elas que percorre as editoras, entretanto sem jamais lograr êxito. Talvez o desinteresse se dê pelo seu excesso de bebida e as confusões da sua isenção de bom senso. E o mais  provável é que sua falta de discernimento tenha sido companheira desde os primórdios ao criar  histórias para um único personagem que, diga-se, acabou por se tornar tão maldito quanto ele. E ao conceber o  Sr. Nachi, (descaradamente o seu alter ego) jamais vislumbrou que a literatura os poderia levar às frequentes rotas de colisão. Estranhamentos hoje tão nítidos, talvez até por concluírem que não extraem um do outro coisas que vão além dos contos de putas, embriaguez e vomitadas em banheiros de bares fuleiros. Enfim, não desconheciam que nos negócios a isenção da criatividade acaba por gerar desconfortos e a inevitável caça às bruxas. Logo o fato se evidencia os pegarmos digladiando, procurando culpas e responsabilidades. Também jamais será menos verídica a afirmação de que os fracassos demolem, e o menos incômodo é atribuir a alguém as falhas no percurso, mesmo que  indiscriminadamente atribuam culpas.
E assim o bate-boca continuou e eles permaneceram na busca do grande azarão:

- Sabe o que acho Onadia?  - Pergunta o velhote vestido em roupas desleixadas e  à bordo das indefectíveis lentes negras.

-Não, e o que é que você acha, Nachi? - Devolve o outro com ares de pouco caso

-Bem..Se quer saber, aí vai; Acho que a tirania dos autores sempre supõe correta as suas conclusões.

- Uai, Nachi, que conversa mais besta essa tua! Isto está me parecendo o jogo na defensiva! –  Retribuiu Onadia. Óbvio, era o escritor desafiando o seu personagem - Depois persistiu: -. Ah, e nunca se esqueça que fui eu quem o criou ao te dar a vida nas linhas dos meus textos. E não foi só isso, pois também te dei trânsito livre em  histórias, verossímeis ou não, direcionando o leitor para um universo só teu, e sem me importar que os textos não levassem a minha  assinatura. E agora é bem claro, pois mesmo te concedendo a autoria nunca lhe permiti que andasse distante das coerências e dos propósitos aos quais te criei. E agora isso, é negando-me que agradece?

-Grande merda ter que assinar os teus textos! Mas veja...Te agradecer? Só me faltava essa, Onadia! Agradecer o que e por que? – Ruminou o velho com um olhar inquiridor.

-Ora! Agradecer sim! Agradecer a minha imaginação por ter deixado conhecer e fazê-lo descrever os subterrâneos, o único lugar onde há pessoas verdadeiras e se conhece a nobre natureza humana. Sim, sei que te queixas, mas fui eu quem te trouxe à luz as verdades sem máscaras, essas que vertem sangue e sentem o corte da navalha na carne crua. E não só isso, pois junto delas vieram as melhores histórias que poderiam ser contadas para um protagonista que foi por mim esculpido á dedos.

-Hã? Melhores histórias? Esculpido á dedos? Melhores histórias uma ova, Onadia! – Insurgiu o velhote. - Você só pode estar delirando – Devo agradecer por ter me atirado num buraco profundo e fazer-me escrever sobre um submundo fétido, o qual gosta de alcunhar " os subterrâneos"? Quer que te agradeça por minha fodida vida em puteiros ou bares onde o cheiro do mijo e do esgoto são sentidos à léguas de distância? É sobre isso que você está falando?

-Mas que merda, Nachi! E o que mais esse personagenzinho de merda poderia esperar de mim? Que o fizesse escrever sobre criaturas ditando moda em Paris? Redigir matérias para colunas sociais em fotos pousadas com os produtos da Paco Rabanne? Ah, essa seria muito boa, assim como não me furtaria imaginar que você é um daqueles cidadãos que reagiria assoberbado ao visitar o Palácio de Buckingham próximo de gente influente. Pois então, você me é e sempre será o eterno ingrato! E para terminarmos essa pendenga cretina, saiba que te ofereci mais que isso, pois te imprimi uma personalidade marcante, dei-lhe  mulheres de todos os tipos, e o fiz entender o que há nas entranhas no planeta dos desvalidos, esses que você  reclama tanto. Precisaria dizer-te mais? – Justifica-se o autor.

-Não Onadia, você não precisa não, já que agora não nos falta mais nada! Glória Jesus! Hosana nas alturas! – Vociferou Nachi, inconformado, juntando as mãos como se fosse fazer uma prece, mas sem deixar de voltar à carga: - Saiba que esse é o teu ponto de vista, e não o meu! - Momentaneamente Nachi saboreou as suas palavras e as sentiu fora dum contexto de precisão. Desta maneira, pensou por mais alguns segundos  e chamou a atenção do amigo ao corrigi-lo com veemência:

-E vê se pare de me confundir ao se referir a mim e no mesmo tempo na segunda e terceira pessoa verbal. Escolha! Ou usa o você,ou o tu, ou lhe, ou te, pois até eu estás me fazendo nessa baderna! E mudando de alhos para bugalhos vou dizer; a mais inexorável  das verdades é a que você me faz de paspalho neste teu submundo falso e onde só a sua ignóbil inteligência o imagina legítimo! Será que ainda não percebeu que as grandezas que você vê  por ali só vingam de ti? - Zombou o velho Nachi - Sim, era necessário que fosse ríspido para que  Onadia soubesse parte das suas razões. Logo, e sem conseguir se frear, continuou com a contundente oratória:

-Veja...Assim que você me deu vida literária relutei no início! Porém e pra variar jamais me deu ouvidos. Lembra que  pedi pra que não me fizesse escrever sobre bares, bêbados e prostitutas, certamente  o tema mais manjado dos últimos duzentos anos? Portanto acho que nem é preciso relembrar a esse pretensioso que muita gente já dissecou esses temas  bem melhor que você, mesmo que me usando para atingir as tuas demências. Por acaso já ouviu falar nuns caras chamados Bukowski, Fante, Celine, Miller? - Nachi faz-lhe a pergunta num tom sarcástico.

-Sim, lembro do lengalenga, mas não era importante. E sobre esses escritores? Bem..Li todos eles à exaustão! E surpreenda-se, Nachi; Nada de excepcional, principalmente o Bukowski.  O tal de Buk sempre foi um pé de cana, um escritor onde o que corria nas veias jamais foi o sangue, mas destilados! Bebidas em tal volume que sempre se evaporaram junto das suas idéias turvas e cretinas, pois o fanfarrão jamais foi possuidor de sensibilidade ou fineses. Por isso não se engane, pois ele apenas escrevia um monte de asneiras e consumia vinhos ordinários para depois vomitá-los sobre as folhas datilografadas por sua velha Remington. Enfim, Bukowski era apenas farsa, um velho carteiro alcoólatra e que em vida, além de foder o seu fígado, estrepou também os pulmões ao consumir três carteiras de cigarros por dia. E quer saber ainda mais sobre o seu queridinho? - Onadia pergunta com desdem ao senhor Nachi. Antes mesmo que esse respondesse, emenda:

-Pois bem...O seu queridinho ao chegar em casa simplesmente queria que o mundo se fodesse, desde que não atrapalhassem suas sinfonias de Mahler que ele ouvia num rádio com sei lá quantas válvulas. Pode imaginar isso? Ouvir as sinfonias de Mahler! – Concluído, Onadia respirou pesado, cansado, pois acabara de destilar veneno e iras ao contrapor com veemência as preferências literárias do velhote.

Possesso! Era assim que o escritor reagia quando tentavam comparar o seu estilo ao do de Bukowski, mesmo que o crítico fosse o alter ego. O velho sorriu à reação do parceiro, mas era tão bom aborrecê-lo que ele continuou a espetá-lo:

-Ah, Onadia! Essa resistência nada mais é que  inveja. Logo, vá tirando os seus potrinhos da chuva, pois você jamais escreverá como ele nem que tente por toda a eternidade! - Nachi afrontava o seu criador. Onadia tremia, ventava como um touro bravo estocado no dorso.

-Ta percebendo Nachi? Por isso que sempre afirmei que tu jamais será menos que isso; Um velho idiota! E ainda surge com esse papinho besta de que quero escrever como Buk? Hahaha, Nachi! Você só pode estar louco! EU ESCREVO MIL VEZES MELHOR QUE AQUELE ESCROTO! - Onadia berrou- O velhote gargalhou diante daquela reação, pois sabia que tinha mexido com os brios do autor, já que era só tocar no nome de Bukowski para o escritor perder o rumo. Entretanto, Onadia queria vingança:
 
-Preste bem atenção seu personagem de merda! Bukowski não deveria ser alguém a quem você ou qualquer outro tivesse que se orgulhar! Te dei melhores histórias que ele deu ao Chinaski. Saiba duma vez por todas seu velho ranzinza! Buk  foi um tremendo vigarista que deixou garrafas quebradas e dívidas por todos os lugares por onde passou. E mais ainda, e o que é muito pior; Sabe-se lá quantas mulheres ele deve ter engravidado e deixado passando necessidades? Completou Onadia saboreando um grotesco desprezo – O velho Nachi o olhou espantado, e não demorou a sua réplica:

-O que? Mulheres grávidas? Como você está sendo ridículo, Onadia! Senhor Escritor, você é um poço de incoerências, pois me enfia neste universos de putas e desvalidos e ainda vêm com essa história sobre a moral e as insensibilidades do Buk? Você só pode estar demente, e não é de se estranhar que tenha nos deixado nesta situação - Esbravejou o senhor Nachi. O autor o olhou perplexo; Ninguém queria perder a parada, permitir que o outro suplantasse os argumentos.

-Bem, ta certo!  Talvez eu tenha pegado pesado com esse papo sobre gravidez, mas...que verdade que você quer, Nachi? A verdade sempre terá diversas faces, e ela está lá no submundo onde diga-se, o senhor, de malgrado não gosta de estar. Porém os meus subterrâneos jamais foram ou serão os de Buk, e ele sempre forçou a barra. Agora... você é muito mesquinho, Nachi, pois talvez se quisesse que escrevesse histórias para você em  mansões ajardinadas, em ternos Hugo Boss e gravatas Pierre Cardin. Agora...o grotesco mesmo seria tu ter aventado a possibilidade que te criaria um conto e o colocasse  ao volante duma Ferrari conversível, ou escrevesse peças publicitárias num escritório de 300 metros na avenida mais cara da cidade. Isso seria demais, não acha? -  Devolve Onadia desdenhando seu personagem. Entretanto ele não contava com o contragolpe do velhote, e a reação veio à galope:

-Caraca, assim não é e jamais será possível! Já vi que tá batendo as bielas, Onadia! Pois ainda tem a cara de pau de contestar que plagiamos Bukowski? Por mais que queira nos enganar pretendeu sim que eu fosse, reguardadas as devidas proporções, o mesmo cu sujo que o Chinaski foi para Bukowski. Olho por olho, podridão por podridão, é esse o seu lema, entretanto, para diferenciar-nos deu-me o nome de Nachi. Só isso! Eu Nachi, ele Chinaski! Só isso! -  Nachi  riu para o autor e depois olhou para o teto onde um antigo ventilador se mantinha calado por falta de manutenção.

-Ah é? Então puta que pariu digo eu! La vem você com o tal de Buk, de novo! Não mais fale desse filho da puta na minha presença!  – Onadia berrou.

Foi um momento de pausa, já que os ânimos estavam demasiadamente exaltados. Conheciam um ao outro como os próprios dedos das mãos, logo era essa a hora propícia de manter um silêncio tétrico, talvez estudando lances para os próximos movimentos como num jogo de xadrez. Onadia pediu mais uma cerveja, e depois, circunspectos, analisavam as considerações de cada um. Nachi, como personagem, estava cansado da lengalenga toda. Cansado de beber nos mesmos bares pés de chinelos. Cansado de escrever e foder com prostitutas que jamais tiveram compromissos com a higiene ou com dentes sadios. Enfim, sempre foi um perfeito cu de gato suportar aqueles bêbados de quinta categoria, aliás, todos eles com fígados à caminho da cirrose hepática. E dele também foi feito um bêbado, mas sempre pretendeu muito mais do que lhe deram, talvez lençóis limpos, cobertores felpudos e uma casa onde não houvesse vazamentos no telhado. Gostaria duma boa história para contar, adoraria poetizar a beleza da mulher, talvez uma esposa fiel que o esperasse com sorrisos nos lábios quando chegado do trabalho. Não, não queria crianças, é verdade, mas haveria o cachorro, e a ele treinaria com paciência em como trazer  o jornal dos domingo preso nos dentes. E outra; seria crime escrever sobre uma piscina com o formato do corpo duma mulher? Então! E mais; Se fosse preciso, nesses contos teria jogado frescobol nas areais da sua casa de praia, sem problema algum, frescobol sim, e daí? Será que  Onadia jamais percebera as suas necessidades ? Não poderia o autor lhe ter concedido uma razoável porçãol de dignidade? Enfim, foram tantas as sacanagens a que se submetera que seria pura perda de tempo comentá-las uma a uma. E ele pensava sobre esses fatos e eles os levaram a questionar do seu criador:

-Quer saber mesmo, senhor Onadia? Você sempre levantou a bandeira das sinceridades, não é verdade?

-Claro,Nachi!  Sempre a sinceridade, ela acima de tudo! -  Confirma Onadia.

-Olha... - Começou o alter ego - Sei que nós os personagens somos reféns das vontades e vaidades dos nossos autores, e você me fez aprender como funciona esse babado todo. Porém, eu queria dar um tempo, parar de atuar, interpretar, não usar da tinta para escrever sobre esse mundo com cheiro de vomito e bunda mal lavada.
Eu acho que você não de ter perdido de todo a generosidade. E mesmo que não aceite, ela existe em nós, assim como nossas sensibilidades, pois se não existissem não estaríamos aqui amargurados com tanta falta de criatividade. E é te pedindo ao que restou delas que rogo que leve em conta a minha intenção de sair de cena. Eu quero abandonar esse mundo nojento, não quero mais atuar e nem escrever as tuas historias – Justificou Nachi, emotivo -

Onadia apenas o ouvia atentamente. De fato o alter ego  apresentava  feições cansadas e suas mãos tremiam tanto que a cerveja valsava no copo americano. Na verdade sentia-se tocado pelo pedido do amigo, porém, como abrir mão dele? Justo ele que fora lapidado com o estigma da melancolia e com um olhar nostálgico que detectaria nas pessoas o verdadeiro sentimento humano. E o mais importante; Tinham que continuar a escrever, pois escrever era não estar morto . Há muito tempo quem escrevia as suas linhas era o velhote, era como se fosse psicografia, e ele desacostumara dos próprios sentimentos, abrindo mão das próprias  emoções, pois só encontrava algum conjunto de humanidades quando  na pele do velho.
Não, jamais abriria mão do ego, e agora, a partir dessa devastadora e dolorosa conversa não faria qualquer diferença se gostassem ou não daquilo que viesse escrever, pois só o que queria era não morrer na praia depois de nadados quilômetros de distância. Sim, era certo, precisava de algum dinheiro, mas se acomodava com pouco, e ainda havia sua reles aposentadoria de servidor da municipalidade, não muito, mas o suficiente para manter-se vivo.

Portanto doloroso era o clima de "deserção" a possibilidade de permitir que o velhote se fosse, pois ao ir  seria como se decretando as próprias mortes, mesmo que Nachi nisso não acreditasse. E conjecturando os fatos foi que percebeu que o maior dos erros foi o seu, pois recordando do antes lembra-se do quanto se fazia dependente do protagonista, pecha que tentou se livrar, mas que foi impossível, pois de fato sempre foi o autor de um personagem só. Sim, recorda também que antes do fato se consolidar tentou formas, fórmulas, experimentou outras histórias e personagens, porém eram criaturas frágeis e textos tão ruins que, nem o incentivo do melhor colega de repartição teve como digerir. Relembra inclusive que, numa noite de bebedeira, num tempo que ainda ensaiava textos que pudessem projetá-los no mercado editorial, saiu á cata junto desse amigo dum personagem que impactasse as pessoas. Foi então que entre copos de conhaque e cervejas que sua mente viajou e ele se viu diante dum velhote nostálgico, melancólico e beberrão. Sim! Ali estava ele, finalmente chegara a sua fonte de inspiração; Nachi. E dali nasceu o protótipo,  deu-lhe vida, cravou-lhe o humor, e o preencheu com ironias e sarcasmos, além da compreensão para transitar num mundo de miseráveis. Daí só foi dar-lhe a profissão de escritor, vestir-lhe um par de lentes negras e adormecê-las no enrugado rosto onde sobressaiam dentes amarelados pela nicotina. Daí em diante tudo que sua mente produziu era pra vestir ao senhor  de óculos escuros. Sim, e seus contos  beiravam ao podre, ao fantasioso, pois jamais se realizaria ao escrever histórias e novelas fúteis, dessas que contam as pieguices do amor  impossível, acontecido na fração do segundo numa tarde de chuva qualquer.. Sim, tentar ele até que tentou, pois o que o fascina o grande público é o drama, a pieguice, é o sofrimento que resulta no imprevisto da vitória, assim como nas novelas onde o milionário mal feitor perde o grande amor para o mocinho bom e de firme caráter. Não! não seria com o velho Nachi  que essas histórias aconteceriam, pois jamais o exporia à esses delírios que movem as massas -  Foi o que concluíra à época.

Portanto era essa uma conversa dura e definitiva. Sim, havia a consciência que havia maltratado o seu personagem – Não, mesmo que não desse a mão em palmatória  não perdera de todo o senso crítico. Estava alto sim, mas, mesmo que bêbado sabia que forjara a personalidade de Nachi algo próximo da sua, daqueles que dificilmente se saem vencedores. Tinha plena consciência que em muitos dos seus contos humilhara e ridicularizara o velho Nachi. Sempre esteve consciente que foi pura gozação enfiá-lo naquele par de lentes negras, assim com comumentes usadas por John Lennon. Sim, sabia que o humilhou ao fazê-lo escrever sobre como dormir em camas de lençóis esfarrapados, fétidos, assim como  obrigá-lo dividir o único e antigênico sanitário com dezenas de moradores nos pardieiros que morou. Sim, como poderia esquecer que pedaços de Nachi foram deixados em quartos de pensões infestados de baratas, ou em em  amores que beiravam aberrações?. Sim, era doloroso desembocarem num momento tão crucial, a encruzilhada em estradas de terra onde o que tem que ser decidido é o destino, ou juntos, ou separados, e para sempre.
Portanto Onadia se sentia confuso, e ali na cadeira do bar ele se rendia aos pensamentos, e ali tentava adivinhar as formas de conciliação, até que, repentinamente os seu olhos se levantam e  pela primeira vez ele fita o velho amigo com ternura e respeito.

-Meu velho querido, acho que podemos fazer o seguinte... Vamos abrir mão dessa perrice momentânea em que nos metemos. Sabe Nachi estamos estressados e nervosos e isso jamais nos levara a algum lugar. Concordas?

-Sim, concordo e entendo a sua aflição, Onadia, pois ela também é a minha. É duro é dividir aquilo que sempre se supôs inteiro, não é verdade?  -  O velho Nachi lhe pergunta igualmente emotivo.

-É verdade Nachi! Jamais admitimos dividir o que julgamos uno. Então...Vamos pensar conjuntamente, achar soluções. Hoje mesmo começarei a escrever um novo conto e o deixarei de fora. A partir de hoje considere-se em férias. Imagine-se numa praia onde poderá descontrair com longas caminhadas pela orla, sentir o pulmão repleto dos ares das maresias. Imagine o sol à pino, e garotas se bronzeando em minúsculos biquínis nas areias paradisíacas das praia nordestinas. Se quiser ir mais além, vá,  veleje, pesque em alto mar...é uma adrenalina pura a pesca do peixe-espada. Pode ir, está autorizado. Saia,  divirta-se, espaireça,  será tudo por minha conta, fique tranquilo -  O autor concluiu ofertando um sorriso,  mais de pai de que escritor.

Nachi pensou por instantes. Repentinamente a sua face se vestiu de austeridade, e ele recolocava as lentes negras e protocolarmente se manifestou:

-Bem, só posso agradecer a oferta. Até que gostaria de estar lá Sr. Onadia, porém não me deste pais e nem parentes, mas agora quer me dar  lugares e ótimos divertimentos. É contraditório, pois jamais criou para mim  amigos duráveis e nem me ofertou vínculos com pessoas que nutrissem afetos por mim, mas apenas configurou-me  no sujeito solitário que já nasceu velho. Sabe, você supõe que eu não saiba, mas sei, fez de mim a cópia perfeita de você, não do que exatamente é, mas daquilo que gostaria de ser. Mas não houve a necessária coragem, então me criou e eu encararia todas as barras quem um dia pensou enfrentar. Sabe, Onadia, você manipulou o meu caráter à seu bel prazer, só não me deu uma vida de bandido, e à isso te agradeço, mas fez-me bêbado, pervertido e investido duma compreensão humana que só o teu delírio vê. Enfim, o senhor nunca me perguntou, mas jamais fez orgulhar-me de quem sou - O velhote finalizou  exausto. Onadia o ouviu atento e pôde sentir a dor em cada uma daquelas palavras.

-Eu te compreendo Nachi. Você tem razão e eu poderia ter te dado algo melhor, assim como poderíamos também  ter sido bem melhores.

-Pois é, Onadia! Mas não me deu e nem fomos os melhores–  Nachi concordou desolado.

Onadia podia sentir o alter ego escapando pelos  vãos dos dedos da mão, e  tudo estava fora de controle, longe de sua tutela, e num momento desesperador. Era necessário que tentasse algo que revertesse a situação:

-Nachi... Pense...Talvez a gente possa dar um jeito... Para tudo haverá uma saída! Na próxima novela você terá uma bela aparência e uma exuberante mulher, aliás a mais apaixonada de todas. Vou te dar algo que jamais teve e sempre quis; A juventude!  Então...é só deixar a imaginação fluir e estarás em 1960 a bordo dum Simca Chambord novinho em folha, e com ele fará uma viagem ao sul  para ver a velha Porto Alegre. Sim! Poa, como dizem por lá. É será na Capital que conhecerá a exuberante garota com quem vai se casar. Ela se chamará Dolarice, e não te preocupes, todos ficarão encantados com Doralice. Sim! Teus pais amarão Doralice, porém as surpresas não terminarão por aí, pois haverá irmão, tias e primos. Sim, sei que não quer filhos, então por enquanto nada de filhos, porém teremos um imenso cão da raça fila, genuinamente brasileiro, que tal?  Ah...E depois de algum tempo e já casado te tornarás milionário, iate, mansão, Jaguar e cobertura no Guarujá.  E sim sim! Te separarás, afinal você e eu sabemos que jamais foi homem de uma mulher só. E o teu encanto te levará à outras fronteiras no universo social,  não só do Brasil, mas o internacional, jetset, para ser mais preciso. E haverá champanhe e corridas em Mônaco, e você estará tão próximo ao Prinipe Albert II que, enciumado te notarás elegante. E depois? Bem, depois haverá  badaladas nas areias de Saint Tropez; Sabia que Alain Delon sempre deu as caras por lá? E por fim meu amigo afirmo você  usufruirá  uma vida abastada, de bebidas raras e caras, mulheres finas e gostosas, e degustarás lagostas e caviar russo, além, óbvio, de outras coisas de magnitude –  Onadia finaliza. Há no seu olhar um mínimo da necessária esperança. Ele aguarda ansioso a resposta do amigo, e essa não tarda:

-Não, não, muito obrigado Onadia! Ah, e antes que me esqueça; tu continuas fazendo uma salada danada entre a segunda e terceira pessoa verbal.  Mas, voltando ao assunto, acredito que à essa altura do campeonato tudo soaria falso demais! Seria como pagarmos a conta de luz com uma nota de valor inexistente e  aguardarmos pelo troco! Os leitores jamais acreditarão nessa balela. Quando me criou forjou-me numa personalidade forte, dessas que se selam à ferro quente como gado. Você teria que ter pensado isso antes, naquele tempo. Agora não, agora é tarde. E eu venho dos subterrâneos, e sou cheiro de esgoto e trepo com putas em camas fétidas e em quartos infestados de baratas. E todos esses fatores não permitiriam que acreditassem em nós e nem no meu Simca Chambord cheirando à novo ou numa foto minha ao lado de Sophia Loren. Aliás, hoje eles nem sabem o que foi um Simca Chambord ou Sophia Loren, e nós sabemos disto! Acha mesmo que deveríamos nos tornar alvos das chacotas dos leitores? Não, sinceramente não acredito. Portanto meu grande amigo Onadia, o melhor para  nós é que desistamos de tudo, e que eu dê o fora disso enquanto é tempo! - Finalizou o alter ego, prostrado.

-É. Acho que você tem toda a razão, Nachi. Realmente eles não acreditariam – O autor assentiu após ligeira reflexão.

-Pois é meu querido Onadia! O que preciso agora é de vida, essa única possível, de carne e osso. A necessidade é que me deixe sair desse bar e me conceda existência para  que eu possa existir por mim e para mim – Afirmou um resoluto Nachi.


O escritor fez silêncio e com os cotovelos fincados à mesa e o olhar distante ficou a pensar sobre o pedido. Ambos bebiam suas cervejas e doses de vodca, agora silenciosos e sem se fitarem. Momentaneamente Onadia ajeitou-se em sua cadeira e elevou o olhar para o teto onde algo chamou a sua atenção; Eram duas lagartixas que se mantinham atentas numa mosca varejeira prestes a pousar – Claro, elas aguardavam ansiosas que o pouso da mosca estivesse ao alcance da fome - Evidente, Nachi  percebeu o desvio da atenção do amigo, logo, olhou na mesma direção. Ali adonde estava percebeu  a ansiedade dos pequenos seres, portanto torceu pelo sucesso dos lacertíleos – Mas, a mosca num acesso de lucidez e percebendo que dava sopa ao azar mudou a direção do voo e foi pousar num outro local onde uma aranha  preguiçosa adormecia na teia.  Os amigos se mantinham concentrados e o senhor Onadia sorriu decepcionado, pois também torcera pelas lagartixas. Talvez fosse a compreensão que nem tudo é ou poderá ser como desejamos, pois sempre existirão posicionamentos diversos aos nossos. De útil mesmo a situação no teto apresentou a lição de que é necessário batalhar, e navegar sempre será preciso. Voltando á realidade do tete a tete pigarreou chamando a atenção do alter ego. Foi o exato momento que o senhor Nachi declinou o olhar esquecendo as conclusões no teto e se pronunciou; A sua voz soava calma, firme, e ébria:

-Bom Onadia... acho que nada mais temos para falar. Definitivamente quero sair disso, pois preciso descansar. Reflita e avalie as minhas tristezas, pois o medo é que seu discernimento  mesquinho  enterre-nos numa só cova. Entretanto tente ver o meu lado, preciso me recuperar dessa putaria toda em que me meteu, dormir dias à fio e sem ser assaltado no meio da madrugada por batedores de carteiras ou vagabundos de plentão. Sabe Onadia, nós da terceira idade necessitamos descansar mais que os outros. Perceba as marcas vincadas do meu rosto, veja como são profundas as cicatrizes  que talhaste em mim. Pretendeu-me fazer forte, um velho durão que jamais se dobraria, mas de fato jamais me perguntou se dobrei, e saiba; dobrei sim em algumas oportunidades e sem que você se desse conta nas linhas . Observe-me atentamente e repare nas olheiras, nesta aparência de 80 apesar de eu nem ter chegado nem aos 67. Constate por si mesmo! - Pediu ao outro ao passar os dedos sobre os sulcos faciais.

-Sim, eu sei que você diz a verdade, já que sei como você  é em cada centímetro do seu corpo. Sempre soube e saberei – Concordou  um senhor Onadia, vago, sem argumentos, apenas meneando a cabeça num sinal de aceitação.

Ambos ficaram a se olhar demoradamente e a beber  quando a mágica se deu; Inesperadamente como se fosse uma acne sendo espremida o espírito do senhor Nachi transcende do interior das carnes de Onadia e adquiri forma humana em cenas tão incríveis e  surreais que, mais  lembravam o filme Ghost. Talvez  fosse apenas delirium tremens, um viagem alcoólatra, ou  mesmo o fenômeno que a ciência procuraria explicação, não á luz divina, é certo, mas ao farol dos acasos. No entanto, mesmo sendo delírio algo doía em Onadia,  o parto em andamento, algo sendo extraído das estranhas. Depois de sacramentado apenas o silêncio e uma imensidão de nadas, inexistência de olhares, sorrisos,  e até mesmo de pensamentos. E assim perdurou aquele estado de torpor por cinco minutos até que totalmente liberto do corpo do criador, Nachi colocou-se de pé levando o seu copo de cerveja à direção de Onadia; Era a proposta de um brinde. Onadia, mesmo que anestesiado retribuiu ao levantar o copo e , apesar da sua mão tremer tanto quanto a do parceiro. Ali houve a mais consistente troca de olhares, enfim, a carícia entre cria e criador.

-Um brinde ao passado e às tantas loucuras que vivemos juntos – Rememorou o senhor Nachi -  Saiba Onadia, foi bom, também foi amargo,  algumas alegrias, uma maioria de tristezas, mas sempre procuramos ser bons, cada um do seu jeito, e eis aí toda verdade! Saiba também meu amigo Onadia, sempre procurei fazer o possível por nós e pelos nossos leitores. Juro! - Nachi afirma ao posicionar os indicadores das mãos em cruz e beijá-los. Onadia apenas o fitava transbordado de carinhos, mesmo existindo um vazio dentro de si, talvez aquilo que que se denomine como vazio existencial.

-A nós! – Retribuiu o escritor fazendo novamente colidir as bebidas.

Feito, terminaram a cerveja e um último par de doses de vodca. Depois Onadia chamou um rapazinho dos seus 18 ou 19 anos que fazia as vezes dum garçom. E não foi sem perplexidade que escutou-lhe a pergunta:

-Senhor devo dividir o valor da conta? - Claro, ainda não havia o entendimento para tudo o que acontecera. Portanto sorriu para o rapaz e comunicou que o valor seria pago integralmente por ele.

Com a conta em dia  rumaram  para a porta de saída. Talvez o relógio marcasse duas da madruga e Nachi, no seu primeiro contato com a realidade pôde sentir uma brisa gélida  lhe resfriar o corpo. Surpreso com um céu de tonalidade negra e sem qualquer estrela inspirou vigorosamente e percebeu o quanto podia ser maravilhoso sentir os odores da noite que trazia densa cerração. Agora ele era apenas se transformara num personagem da vida real, um ser encantado pela tênue claridade duma lua nova. Tudo era tão diferente do universo das linhas e páginas, tudo tão difuso num mundo de pessoas reais, onde desde a primeira vez  que foi criado seguiriam estradas opostas.

Enfim, Onadia, num acesso de compreensão e reconhecimento acabava de libertar o seu único personagem, aliás, mais; consentia alforria ao velho e inseparável companheiro.
Antes de tomarem cada um o seu destino olharam-se emocionados. Onadia esforçou-se para conter, mas sem sucesso o par de lágrimas que nasceu em seus olhos. E ainda emocionado e em frangalhos e antes mesmo daquilo que seria o adeus definitivo procurou pela carteira num dos bolsos e separou para o amigo duas das três notas que trazia. Nachi o olhou surpreso quando Onadia alojou duas notas no único bolso de sua desbotada jaqueta de tergal.
Não, certamente não estavam protagonizando cenas dos dramalhões das novelas mexicanas, e nem tratando de joguetes pieguices com a finalidade de emocionar o grande público, cenas tais que,  expostas em linhas  tem o poder de permitir escritores medíocres ou medianos se tornarem Best Seller. Entretanto era essa a quase emoção vivida quando se disseram o adeus selado num afetuoso abraço, acompanhado de quatro discretas lágrimas que não se envergonharam de escorrer.
Onadia tomou á direita num trajeto mais curto à esquina. À princípio com passos curtos e comedidos, assim como são os das pessoas que convalescem em hospitais. O senhor Nachi, opostamente tomou à esquerda e com passadas mais rápidas e largas caminhou vinte jardas, e  estancou o movimento fazendo um meio giro sobre si para observar a figura do seu criador desaparecer no meio das névoas. Os olhos ainda marejavam quando voltou a caminhar, e ele,  num primeiro ato de ruptura  livrou-se do par de lentes escuras atirando-o na boca de lobo mais próxima. Agora, o contato era com o mundo e onde não haveria ficção, portanto firmou as vistas na direção da luminosidade da lâmpada néon vinda do poste e aguardou que a opulenta nuvem que o envolvia se desfizesse ou amainasse a densidade.
Agora com a névoa abrandada apressou os passos, pois sabia onde se encontrava, já que muitas de suas histórias tiveram aquele bar como palco principal. E assim continuou seguindo, e a cada metro percorrido o peito inspirava com mais vigor e o esforço fazia arder os pulmões numa sensação fantástica e que jamais fora vivida nos livros.
Passo a passo o senhor Nachi alcançou a luz na esquina, e  lá uma nova encruzilhada para seu destino. Acobertado de dúvidas decidiu o destino assim como o acaso se decidia nas antigas brincadeiras de crianças. Lembram-se do "minha mãe mandou bater nesse daqui?" E assim ele brincou com ambas as mãos e a última palavra recaindo sobre a mão direita  achou por bem dobrar a esquina para o mesmo lado,  rumaando para a parte oeste da cidade.

- Será que conseguirei  sobreviver? – O Sr. Nachi questionou a si mesmo antes de dar os primeiros passos na nova direção - Evidente, ele também não soube responder, e a noite traz  um novo momento e o vento uiva tal quais lobos esfomeados e outra densa camada de névoa se forma. E novas rajadas surgem virulentas obrigando o vento uivar diversos tons e  tão ferozes quanto meia dúzia de lobos  em luta pela supremacia da única presa.

-Merda! Como faz frio nessa porra de mundo dos vivos! -  Ele reclama com o nada e treme dos pés à cabeça. Faz frio, muito frio, e ele defendendo-se do tempo fecha os botões e aperta no peito a friorenta jaquetinha de tergal  dos anos 60.

No entanto não eram só essas as novidades, e a noite e a madrugada com seus mil labirintos traziam  a primeira péssima notícia; A inesperada dor no ouvido. Sim, era dor, e ele a sentia e ela era real assim como igualmente eram as lancinantes estocadas que pareciam agulhas penetrando no tímpano. Com expressão de dor esfregou o lóbulo da  orelha direita e procurou sorrir. Sim, um sorriso perturbado, apreensivo, afinal jamais sentira a dor física. Depois retirou o dinheiro do bolso e se perguntou se as 200 pratas seriam o suficiente para descansar o corpo por dois ou três dias num pardieiro qualquer. Não, nem sobre isso houve qualquer certeza

-E agora, Nachi? – Murmurou  para a sua insegurança.

– Ora, ora, Nachi, sejas bem vindo ao mundo dos humanos! Agora será por nossa conta e risco! - Respondeu-se num tom otimista ao novamente estancar os passos ao escutar os sons dos saltos dos sapatos de uma mulher vindos rápidos pela calçada e atrás de si. Ah sim! Ele sabia reconhecer uma fêmea que usasse um par de agulhas de oito centímetros. Rapidamente a mulher o alcançou.

-E aí velhinho...afim dum programa? - Ela passa por ele e se posta á frente, e  lhe pergunta tão próxima que quase roça o par de peitos no tórax dele.

-Depende! Quanto tá a morte, dona?

-Pra tu eu faço oitentinha. Ah, e tu pode fazer o que quiser.

-Bem, to meio durango - Ele responde sacolejando os ombros. Depois propôs: - Pago trinta num boquete, desde que tenha um lugar onde possa descansar a carcaça.

-Pô velhinho, tu é coroa mas não é bobo, heim! Sessenta pratas e fechamos negócio com o quarto incluso - Ela contra oferta

-Necas! Continuo duro! - Cinquentinha, nem mais, nem  menos e batemos o martelo! - Nachi faz sua última oferta.

- Negócio fechado! - Responde a prostituta. Ele se concentra nela e  talvez ela estivesse lá pelos 45, morena, um corpo ainda razoável  num rosto nem feio, nem bonito, mas apenas evidenciando o contraste entre suas negras sobrancelhas e os cabelos aloirados.  E sobre o tom dos fios lhe parecia que não foram tingidos por tintura, mas com a água oxigenada, já que reconhecia o odor. Sintoma  da inspeção, a puta solta um risinho ordinário e  pergunta ao enfiar a mão por entre suas pernas e apertar-lhe o pênis :

-Tiozão, ainda sobe esse sujeito?

-Bem...nas linhas de um livro sempre subiu. Nunca gostei de deixar ninguém na mão. - Ele devolve com o mesmo sorriso incerto, porém safado.

-Como assim Mané? - Ela se surpreende. Só que agora os lábios da mulher estavam  tão próximos dos seus, que  ele acabou por sentir o bafo do álcool se desprendendo daquela boca de dentes não tão bem conservados.

-Não, não é nada não, foi bobagem minha. Esqueça isso dona! - Ele pontualiza. Pelo andar da carruagem parecia que tudo ocorreria novamente, talvez lhe fosse a sina.

Ela gargalha, pois deve ter acreditado que estaria à frente de um desses velhos gagas que não falam coisa com coisa. No entanto isso não a perturbava, pois sabia lidar com os tipos, afinal ela era da noite, da rua e igualmente  fazia parte dos subterrâneos.
Logo em seguida ela e o seu braço direito enlaça o senhor Nachi pela cintura e eles riem enquanto desaparecem numa outra densa camada de nevoeiro.



Copirraiti02Mai2009
Véio China©


2 comentários:

Márcia Poesia de Sá disse...

Definitivamente um "grande texto"! Onde me fizestes experimentar uma diversidade gigantescas de sensações e sentimentos. A dor vista pelos olhos do personagem é algo que não vou esquecer fácil, ( você não me deu nenhum amigo! putz! ou ainda, o frio na tentativa dele de fechar a jaquetinha de tergal, numa noite de nevoeiro, a dor humana (física) sentida pela primeira vez, assim como a tentativa quase desesperada do autor em fazer com que "seu amigo" não o abandona-se e a emoção do adeus, enfim poderia relatar umas dezenas de cenas que me tocaram muito! enfim, Como sabes o li mais de uma vez e não canso de ler! Muito denso,e de uma profundidade que chega a doer, este é um daqueles que costumo dizer:"nasceu das entranhas!"

Parabéns Du Pavani! parabéns Véio China,"vocês" são sim impagáveis e inesquecíveis...Muito obrigada ao escritor e se queres mesmo saber, vou dizer: Escreves muito melhor que aquele velho safado mesmo! hehehe

Beijos e aplausos sempre!
Tua Fã.

Eu, um ser... disse...

Muito bom onadiA! A tua criatividade é incrível. Du Pavani e Véio China = sine qua non. Parabéns!