sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um dia de chuva e as Testemunhas de Jeová

Apressado eu desci as escadas de casa numa tarde de muito vento e promessa de temporal. Pra variar, a pressa naquele momento era maior que a minha vontade de viver. E a insofismável prova que meus dias de há muito não eram dos melhores estava lá, nas insistentes palmas de duas senhoras ao portão. Usavam vestidos simples, folgados e longos. Os rostos sem qualquer maquiagem, os fartos cabelos puxados para trás, enrolados no alto e atrás num coque fazia de suas feições algo ameaçador. Elas estavam bem mais ansiosas que eu.

- Por favor meu filho! Tem um minutinho para nós?

-Sim! Do que se trata? Perguntei ao me aproximar

Ela me olhava com um sorriso estranho, forçado, quase fanático.

-Deus veio falar com você! – Respondeu-me.

-Glória Jesus! Hoje é dia de júbilo. Deus veio até você! – Exclamou a mais encorpada. Olhei para ela, e ela me pareceu tão estranha quanto a outra.

Paradas e a espera que eu tivesse alguma reação eu me ative nelas e nos negros e grossos livros que traziam debaixo do braço e tive a certeza: Eram Testemunhas de Jeová. Quase ao mesmo tempo retiraram as bíblias do sovaco e abriram numa das páginas. Evidente, nem aguardaram pela minha resposta: já estava estourando o minuto a que se propuseram.
Talvez tenha sido a minha surpresa ou o meu olhar assustado que foram tomados por elas como de alguém que necessitava de alguma salvação. E eu apesar de não ser religioso e nem praticante não me julgava incrédulo em Deus nem no seu filho de belos olhos azuis, porém estava tão desencantado com a vida que desistira de qualquer vínculo com Ele - eu nunca fora um homem de muita fé - E isso mantinha-me convicto que ele, sem alternativas, aceitara a minha desistência.
E antes que elas retomassem, antecipei-me :

-Olha dona, sei de tudo que ele irá me falar. Mas pra ser sincero com a senhora o que eu necessito é de alguma ajuda com isso aqui! – Exclamei espalhafatoso ao abrir o portão e chacoalhar no ar alguns papéis em minha mão, na vã esperança que me dessem passagem.

A mais bunduda e curiosa se interpôs na minha frente e esticou o pescoço na tentativa de ver o que diziam os papéis - Eram avisos do cartório de protesto ameaçando a minha integridade enquanto cidadão – E o motivo era um só - Eu estava desempregado há cinco meses, alvo fácil de credores e principalmente do Sr. Samuel, das Casas Bahia. E nesses casos, como é de esperar, os homens de negócios são capazes de tudo e até de nos fazerem perder de um momento para outro tudo aquilo que lhes pagamos com tanta dificuldade. E isso me preocupava sobremaneira: havia uma a esposa furiosa que por conta da situação já não trepava e nem me amava como antes. Portanto, ficar sem o televisor e a sua novelas das 8, sem o fogão e os seus ovos bem passados seriam motivos, a seu ver, mais que suficientes para nos levar cada um para o seu lado. Se justa ou não, essa não seria a primeira vez que esse pessoal de crediário nos causava constrangimentos – Porém, acreditar que mais uma vez ela se rendesse ao meu poder de persuasão parecia-me tão impossível quanto ganhar sozinho na megasena.

Diante dos motivos e da minha exaltação a pregadora, estática e surpresa foi incapaz de esboçar qualquer reação. A outra, a de bunda menor, mais frívola e calculista, percebendo que a colega deixava escapar a ovelha pelos vãos dos dedos abriu a bíblia, provavelmente na página que se fazia o carro chefe da sua pregação e, severa no olhar e na voz, solenemente me alertou: “ Só a palavra do Senhor será a tua salvação “ – Eu a olhei aturdido. Talvez para minar definitivamente a minha resistência, ela culminou ameaçadoramente : “ Sem ela não haverá luz e tua alma se consumirá nos caminhos das trevas”.

-Glória Jesus! - Comungou cúmplice a que me deixara escapar do laço, revitalizada pelo providencial auxílio da colega. E ela, agora recomposta e denotando ternura na voz, concluiu procurando uma outra página da bíblia. O tom professoral aguardava a minha rendição:

-Veja, oh filho do homem: Deus é o pai. O Senhor quer testemunhar a sua ressurreição de um mundo profano. O Pai celestial quer ser fiador da tua fé, e não das suas dívidas!

O diálogo insano e surreal e os pingos de chuva, agora mais encorpados que escorriam pelo alto da minha testa como se fossem moleques brincando num tobogã de parque aquático foram demais para mim:



- Ai meu Jesus Cristo! Não me falta mais nada! – Exclamei alto com certo desespero.

Porém elas não desistiam, nunca:

-Falta sim meu filho! - Respondeu uma delas aproveitando o “gancho” que eu lhes dera. E depois completou, altiva:

- Falta a sabedoria do Pai misericordioso em tua vida, irmão! – Disse à procura de outra página que pudesse estocar ainda mais a minha dilacerada sensibilidade

Acuado, atrasado para o compromisso eu não podia dar-me ao luxo de enlouquecer.
Intuitivamente, diante do quadro que me parecia irreversível só me restou folgar o cinto da calça e abaixar o zíper enquanto as fixava com olhos de demente - Eu fazia pressão na lateral para que ela cedesse quando se deram conta do que eu estava fazendo - Então, horrorizadas reagiram com toda a fúria que Deus lhes deu:

-QUE HOMEM HORRÍVEL, PROFANO. HÁS DE ARDER NO FOGO DO INFERNO, SATÃ! –
Dito, descerem a rua de paralelepípedos em passos largos e apressados.

Sem ação aguardei que se afastassem. E aquilo o suficiente para que eu caísse numa estrondosa gargalhada depois de muitos dias de sisudez.
Eu me divertia observando seus pesados corpos caminhando rápidos e trôpegos pelo desnivelamento dos pequenos blocos de concreto. Me divertia com seus vastos cabelos em obsoletos coques. Das celulites que pareciam redemoinhos em suas peles e da flacidez das coxas dentro dos largos vestidos florais. E principalmente, gargalhei da forte rajada de vento, que intensa esvoaçou seus vestidos deixando à mostra suas desbotadas e broxantes calçolas de algodão.

‘Eu não posso assegurar, talvez eu houvesse me tornando insano por alguns momentos, mas ao ser castigado pela inclemente chuva olhei para o céu carregado e seria capaz de jurar que o tinha visto entre as névoas acinzentadas - E ELE me pareceu sorrir num riso cúmplice e compreensível como se me dissesse com sua voz de trovão: “Ok garoto, tudo bem! Na vida há que ter um pouco de diversão”
E submerso nestas impressões e atolado no temporal imprimi velocidade nos passos e ao longe e no fim da ladeira eu via partir o ônibus que me levaria á cidade - Tudo conspirava contra mim e era mais que certo que o Sr. Samuel não ficasse satisfeito comigo naquele fim de tarde - E tendo que aguardar o próximo ônibus era mais que provável que não houvesse tempo de pegar o cartório funcionando, pois antes teria que passar na Caixa Econômica pra penhorar alguns anéis e correntes de ouro.
Minha sábia e falecida avó, além dessa pequena herança familiar me deixara outras repletas de erudição e lucidez – Num delas ela dizia : “QUE SE VÃO OS ANÉIS, MAS QUE FIQUEM OS DEDOS”.
E saboreando o legado eu sorri ironicamente - Ela teria sido uma testemunha de Jeová, do rabo -

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