quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O perturbardor Penny

Naquele instante de sua vida, Penny se viu em duelo; o universo desafiava-lhe a existência. Olhou para seus incompletos 62 anos e pelo vão do precipício vislumbrou o inexorável.

Aspirou fundo; Em si um vazio existencial se assemelhava à fenda onde um vazio de perplexidades se opunha às lucubrações.
No rosto um sorriso melancólico como um crepúsculo avermelhado percebia que os poucos centímetros que o mantinham distante do precipício faziam a diferença entre estar vivo ou morto.
Pelo vão imaginou-se num vôo silencioso rumo ao fim - Pareceu-lhe romântico – Claro, poderia ter havido fantasias em sua vida, aquilo que não fora necessário e que hoje dava falta. Que bom se houvesse alguém debaixo dos cobertores ao entrar da noite, algum parente que viesse visitá-lo nos dias de ação de graça e que trouxesse um peru recheado de farofa com pêssegos. Mas o que! A vida fora mesquinha e nada lhe dera nem amigos para acompanhá-lo nas lutas de boxe nas noites de sábados ou sujeitos que mesmo desconhecidos discutissem as táticas da nobre arte ou que como ele incentivassem alguns talentosos garotos mexicanos, seus preferidos.

-Arremesso-me? – questionou-se por segundos enquanto balançava o corpo num vai-e-vem como um boneco “João Bobo”.

– Sim! Vá em frente - Tentava convencer-se diante da imensidão vazia.

Simplesmente nele não havia a certeza já que há muito desistira das perguntas e principalmente as respostas. Sua existência consistia em receber mensalmente a aposentaria dos seus 35 anos trabalhados numa ferrovia e estirar-se na solidão da cama e revirar-se em lençóis desgastados à procurava de alguma resignação.
Contudo, relutava: Resignar-se com a solidão? Justamente com a doença que o dilacerava? – Não existe resignação na solidão que me é imposta como camisa de força - Concluía o homem de nenhum amor -

Poucas coisas o animavam além do boxe. No inverno gostava de banhar-se no sol morno das 10 da manhã e das noites claras, principalmente quando a lua se encontrava em fase cheia.
Esporadicamente zanzava pelo quintal nas madrugadas juncadas de estrelas que piscavam intermitentes como luzes em árvores de natal.
Mas, o que fazer com cancro da sua solidão? Extirpa-lo como?
A solidão, definitivamente o esfaimava.

Assim, indeciso, persistiu na romântica idéia de se arremessar do penhasco e se pegar planando como o mais belo dos condores, mesmo que desasado. Será que voar seria mais que o vento assoprando a vida? Será que vôo solitário o faria descobrir outras dores além daquela que o aguardava ao explodir nos rochedos? – Ele haveria de saber - Claro, e depois de tudo sacramentado o seu espírito presenciaria o sangue rompendo caminhos entre as pedras, criando veios que não desaguariam em lugar algum – Um obscuro Penny sorriu para esses pensamentos – Eles lhes pareciam ainda mais romanescos naquele momento -
E naqueles instantes que antecediam à sua decisão, recordou-se do professor de física nos tempos do ginásio; Sabia que a insensibilidade do mestre faria encarar a situação vivida por ele como um mero exercício gravitacional, equação a ser respondida pelo confronto do Peso versus Altura, variáveis que determinariam inclusive a velocidade do corpo até o choque. “ O professor Archimedes era um grande sacana! - Ele sabia que o perfeccionismo e a frieza do mestre seriam capazes de calcular até a quantidade de segundos e a carga do peso quando o seu corpo atingisse as rochas -

Ao voltar a dessas recordações algo à beira daquele penhasco o incomodava – Penny jamais se dera com os números. Todavia pareceu-lhe importante equacionar a questão, como se dependesse dela a sua sobrevivência:

- Vejamos...Se eu peso algo entre 110 e 115 quilos.....E supondo que a altura daqui até às pedras seja por volta de uns 300 metros.... Portanto.... Será que é o peso vezes a altura? - Ele tentava equacionar –

-Não! Não é isso! Como é mesmo a fórmula pra encontrar a velocidade?..... – Pode me dar dois minutos? Pediu a si como solicitasse ao professor.

Desistiu. Não se lembrava - O passar dos anos consumíra-lhe tanto as fórmulas como o juízo - Repentinamente tudo lhe pareceu estranhamente gélido e o romantismo se afastou dali – O exercício com a exatidão dos números pareceu nocauteá-lo – E em não conseguindo decepcionou-se consigo –

- Einstein deve estar se descabelando em seu túmulo - Resmungou consigo diante tanta ignorância.
Portanto, derrotado, só sobrou o arrependimento e o seu pé esquerdo chutando as pequenas pedras que estavam na beirada e que despencaram no nada.



Contudo, a desistência não aplacou-lhe uma sensação de angústia. Com os olhos vitrificados Penny aguardava o momento das pedras se chocarem contras as rochas. Esperou por alguns segundos e nada ocorreu – “ Acho que não calculei corretamente a altura” - Sussurrou para si num amargo e culposo sorriso, desses de quem jamais acerta no alvo, mesmo que esteja afixado na testa.

- Penny, seu imbecil! Ainda bem que não perdeu tempo com mais cálculos estúpidos! – Gritou.

“Penny, seu imbecil... – O eco ressoou –.

Ao escutar-se, surpresa; era a primeira vez que se pegava falando consigo e a impressão de estar interagindo com seu Eu, como se houvesse um outro Penny, invisível, desconhecido, porém não tão imbecil.

-Caracas! Como é mesmo? Por que a voz se propaga no espaço vazio?

Pensou por alguns segundos - desistiu novamente - Resoluto, aspirou e inflou o tórax e outra vez olhou para o vão e sentiu vertigens - as pernas tremulavam. Em seguida, retrocedeu alguns passos até sentir-se seguro. Assim que percebeu estar fora de perigo girou o corpo num 180 graus e retornou para o Fusca 63, Andou os menos de 30 metros que separavam o seu carro do abismo, abriu a porta e acomodou-se no banco com alguma dificuldade. Olhou no velocímetro, enfiou a chave no contato e permaneceu circunspeto. Repentinamente percebeu escorpião transitando despreocupadamente pelo painel. Com a violência da mão fechada, o golpe veio rápido e certeiro para a surpresa do pequeno artrópode – não houve chances para ele

- Penny, seu covarde! Por que não se atirou com essa lata velha como em “ A Morte no Desfiladeiro? – Perguntou-se ao limpar a mão num chumaço de papel higiênico que trazia no porta-luvas.

E a imagem de um carro voando pelo desfiladeiro veio de momento ao relembrar um filme onde duas garotas abandonaram suas vidas ocas e partiram para uma aventura no nada. Entretanto as circunstâncias fizeram-nas se envolver no assassinato de um policial, o que se fez motivos do rancor da corporação e da caçada que lhes impuseram. Foi assim, encurraladas e sem saída e à beira do precipício resolveram arremessar-se com um Ford Maveric, nas profundezas do Grand Canyon, afinal elas sabiam que morreriam de um jeito ou de outro- Penny sorriu ressentido dessa recordação:

- É. Os filmes têm esse dom. Essa coisa de tornar as situações apaixonantes e justificáveis – Nelas tudo se legitima, até o inaceitável - Suspirou –

Então relembrou que estava estirado e tenso numa poltrona da terceira fila do cinema ao presenciar esse infeliz desfecho –

- Meu Deus! Elas se arremessaram e você achou aquilo o máximo - Penny se cobrou enquanto se recordava de outras partes desesperadoras da película.

- Por que esses caras nos fazem crer em tudo que transpõem nas telas? Serão as suas necessidades de desdenhar daquilo no que nos possa ser sensível? – Perguntou-se num riso melancólico enquanto inspecionava o rosto no espelho retrovisor.

Permaneceu sentado por mais alguns instantes; avaliava a situação. Um pouco além a revolta eclodiu dentro de si e ele gritou ao socar o volante:

- Penny, mais uma vez você dá provas que é um completo idiota! Quer saber o por que? Pois bem, imbecil! Morrer dessa forma, pra que?

E persistiu em sua ira:

Não é você que diz que odeia a falta de originalidade e os lugares comuns? Então imbecil! Só tu pra pensar num treco desses! Só tu e esse teu cérebro de centopéia – Recriminou-se furioso.

Definitivamente, Penny era assim; faria o impossível para acreditarmos que preferia ver sua alma penando no mais profundos dos infernos que morrendo no logro e nas fantasias americanas – Hollywood ficara pra trás, perdida irremediavelmente nas lembranças de um tempo onde pactuar com fraudes era legitimá-las num santuário de hipocrisias – Definitivamente a obsessão pelo engodo das telas de cinema fazia parte de um passado longínquo, não mais do agora e nem naquele momento. Além de que morrer naquelas condições seria incompatível com sua convicção comunista - Justificou-se -
Decidido, girou a chave e acelerou até ouvir as lamúrias do seu combalido Wolkswagem.

- Bye bye, dona morte! – Bradou na direção do abismo-

“Bye bye, dona morte!” – O eco repercutiu numa tonalidade um pouco mais amena enquanto o sujeito que parecia maior que o carro abandonava o local.

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Hoje, passados dois anos, Penny sofre de alguns distúrbios. Numa de suas fugas tornou-se um maníaco, num desenfreado consumidor das promoções em sebos. À preços interessantes, Penny lê de tudo: de Dostoievski à Nietzsche, de Sartre à Baudelaire. Penny, jamais se fia na história como ela é e assume posições contraditórias; É comum flagrá-lo discutindo com Lenin, Churchill, Adolf, e até mesmo o general McCarthy. Porém, independente das questões filosóficas e políticas em que se meteu jamais conseguiu livrar-se do estigma de ser um fraco, de não ter tido a coragem do basta quando teve a oportunidade . E isso, de um jeito ou de outro têm lhe custado o preço mais caro; Não há uma única noite que Penny não se faça o inevitável questionamento:

- Confesse, Penny!, você se arrependeu de não ter se arremessado, não é verdade?-

E a resposta quem lhe dá não é o herói que há muito desistiu de si, e sim o algoz que ridiculariza da sua consciência; a convicção do seu outro Eu:

- Penny, tu és um poltrão solitário! Fui me fiar em você e me vejo aqui quando deveria estar apodrecido e sepultado no fundo daquele vale – Costuma insultar-se toda vez que se pega refletido no espelho -

Todas as angústias o têm destroçado e gerado em si outras personalidades. Então, sem no que possa se apoiar, efêmero abandona a existência e passa a meditar por longos períodos. Na volta das meditações sempre a mesma pergunta - “E se eu tivesse entregue meu destino às pedras, o que elas decidiriam?”
E surpreendentemente nestas ocasiões o ranço do ser dotado de alguma lucidez aflora em si. E a transitoriedade incorpora nele como esses espíritos maus que se empanturram de galinhas negras e cachaças ordinárias compradas em mercearias de esquina.

-Penny, tu és um calhorda pusilânime! Pedras não vivem, já nascem mortas! Passastes do tempo de saber destas coisas! – Diz-lhe o outro, desafiando-o . Após a discussão ambos os Penny se encerram num silêncio sepulcro, às vezes por semanas.

Quando não, o personagem incorporado na covardia do seu ser responsabiliza as pequenas pedras pela coragem que não teve - Nesses momentos presenciamos o delírio de suas doentias atuações num fraudulento jogo do faz de contas.
Contudo, sempre ao escolher um livro entre o pó da estante, vêm à sua mente a mais estranha das certezas - queria ser pedra, igual às pedras, sentir como elas.

- Ouvir e jamais confessar – Sussurra ao vento ao resgatar o livro empoeirado.


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