sexta-feira, 8 de junho de 2007

Febem: Uma fábrica de assassinos?


Num prato, o arroz, o feijão e dois pedaços de lingüiça o olhavam e sem que isso lhes causasse qualquer reação.
-Aê mano! Não vai comer essa porra? -
Era o "Mão Leve" que se encontrava ao seu lado há uns 5 minutos e em não vê-lo se preocupar com o prato de comida. Escolado do jeito que era percebera o sentido da pergunta e sabia onde o companheiro queria chegar.
-Vai nessa, Mão. Pode pegar! – Era o que ele queria ouvir. Rapidamente puxou o prato de comida e se debruçou nele como se fosse um cão faminto. Ele, ainda meio desatento fixou o companheiro e reparou pela milionésima vez que todos ali eram parte de um bando de animais, inclusive ele. E o companheiro, meio gente, meio animal, indagava.
-Qualé, Mane? O que ta pegando? –
Ele, que não estava pra conversas, falou uma bobagem qualquer e se livrou dele. No pátio, onde estavam agora, ele se pegou sozinho num canto e não participou de qualquer roda. Alguma coisa o preocupava e não estar entre eles era o sinal que havia algo de muito estranho. Jose Carlos da Silva. Fora esse o seu nome de batismo, mas ali, há 8 anos ele era o Fininho. Foi o apelido que lhe deram no primeiro dia de detenção naquela instituição chamada Febem. E ele se recordou como se fosse hoje, como tudo aconteceu......

Zanzava com mais dois amigos no largo da Concórdia, por volta da 4 da tarde quando os homens chegaram.. Claro, as roupas os denunciavam meninos de rua, misturados ali entre centenas de barracas e camelôs. Foram pegos de surpresa e tentaram correr mas, um dos comerciantes, um sujeito corpulento e alto, supondo que houvessem roubado algo, se interpôs e ele ao passar em carreira sentiu a sua perna ser tocada pela perna do sujeito logo abaixo do joelho e isso o fez perder o equilíbrio e estatelar no chão. Foi uma cena que, trágica não fosse seria hilária, afinal, foi engraçado ver aquele homenzarrão debruçado em cima do corpo frágil de uma criança com 41 quilos e quase 11 anos de idade. E assim como ele os outros foram pegos entre as barracas , agarrados pelas mãos dos camelôs que acharam que estivessem ali para praticar furtos. Naquela mesma tarde foram encaminhados à instituição correcional e, evidente, o corpo mirrado de metro e meio do garoto justificou o nome de guerra pelo qual passaria a ser conhecido daquele instante em diante. “Fininho”.

-Fininho. Fininho. – ele balbuciou para si e sorriu ao se lembrar daquele inesquecível e fatídico primeiro dia. Lembrou dos outros amigos, Tião e o Zaca, que anos mais tarde participariam de uma fuga bem sucedida, mas, mortos por questões ligadas ao tráfico de drogas, se verdadeira fosse a informação dada por um recém interno, já que todos moravam naquela mesma favela. Ele ouvira o relato e acreditou no fato, afinal e, se veridico não o fosse o mais provável seria vê-los retornados à instituição já que, fatalmente, seriam pegos em alguma transgressão. Encontrava-se perdido nessas lembranças, quando.
-Aê fino! Seguinte mano. Tu, saindo daqui, pode dar um recado pra minha véia? E então o companheiro pormenorizou como ele poderia achar a sua velha e assim, pedisse para que que voltasse a visitá-lo já que há mais de ano que ela não aparecia. Ainda desatento às explicações fixava-se nos lábios abrindo e fechando sem precisar exatamente o que o amigo lhe dizia. E, talvez tenha sido aquele pedido que o fez descobrir o motivo pelo qual se encontrava daquela forma. –Liberdade- E ela, à medida que se aproximava o deixava mais ansioso. Ele a temia. Temia ao saber que lá fora e não haveria ninguém por ele. Não haveria o seu pai, assassinado na favela de Heliópolis, morto pela guerra do tráfico de drogas. Não haveria a mãe que desaparecera logo após o assassinato e que provavelmente teria voltado ao nordeste, terra natal dos seus avós.
E ela se foi sem se preocupar com ele e , ele a culpava e achava incompreensível aquela decisão. Será que sofrera? perguntava-se. Talvez tenha sentido o medo dos três passarem fome ou não haver qualquer asaída- tentava se conformar. Mas, sempre que tentava justificar a decisão da mãe não chegava a qualquer conclusão e eram tantas as dívidas mas que nunca lhes deram as respostas que gostaria de ter.
Então se lembrou dos tempos que chegava da rua, próximo das 7 da noite e, que ao chegar, trazia sempre um pouco de dinheiro pra casa e aqueles 15 cruzeiros ajudavam na compra de comida já que o pai estava sempre ausente e às vezes desaparecido por semanas e que demostrava que ele não estava "nem aí".
Sim! ele trabalhava e não era um vagabundo como o pai, não. Ele trabalhava nas esquinas. Todos os dias as 7 da manhã lá estava ele com um balde, água, sabão e um pequeno rodinho na tentativa de limpar os vidros de automóveis que paravam no semáforo.E era comum perceber o terror dos motoristas ao vê-lo se aproximando e isso o deixava confuso, afinal ele não entendia como uma criança tão frágil quanto ela poderia amedrontar caras tão grandes como aqueles. E aí sim, quando notavam que ele estava com os apetrechos em mão se tornavam tranqüilos e até lhes davam algumas moedas ou notas de pequeno valor como pagamento. E às vezes, mesmo não sendo feito o “serviço” pintava alguma grana, já que a água encardida e engordurada usada pelos "flanelinhas" mais sujava do que limpava aqueles vidros. Mas nem sempre a sorte lhe sorria e tinham aqueles que saiam no lucro e que, mesmo com o vidro lavado não lhes pagavam já que davam a sorte do farol abrir antes mesmo que ele tivesse tempo de cobrar. Ele riu ao se lembrar e era como se visse de rodinho na mão e a sua imagem refletida nos vidros dianteiros daqueles automóveis. De repente tornou-se sombrio e recordou no mais infeliz dos dias. Como sempre, chegou com os habituais cruzeiros e não havia mais ninguém no barraco. Ali, no único cômodo e não havia nem sinal da mãe e nem de Ticiane, sua irmãzinha de 4 anos. E dessa forma foi que ele se tornara mais um órfão jogado neste mundo hostil. O barraco foi retomado pelo “proprietário” e pra ele só restaram às esquinas, as pontes, viadutos ou qualquer outro lugar que conseguisse encontrar para descansar o corpo. E, naqueles tempos difíceis, uma de sua preocupações era fugir da polícia, o que invariavelmente conseguia por ser lépido e conhecdor de todos aqueles atalhos, vielas, muros e telhados e, assim, enganava os sacanas. Mas como nunca existiu crime perfeito, houve o dia que sua carreira de fujão terminou e foi lá entre os camelos do Largo da Concórdia.
E agora, após todos esses anos olhava à sua volta e percebia que só lhe restara à convivência com aqueles garotos maus. Havia os bons? Claro! e sempre os haverá, mas que são contaminados tal qual tomates sadios colocados em contato com um que esteja podre. E mesmo quem não fossem potenciais “marginalzinhos” ao entrarem ali, fatalmente os seriam ao sair e, era essa herança, maldita, já estava entranhada em si. E também já não era mais aquele garotinho que assistia a mãe levar surras do pai quando este estava bêbado ou chapado de drogas. E ela chorava e os soluços abafados lhes doiam e, o pai, ainda mais furioso com o choro dava-lhe outros tapas com a mão espalmada e assim só lhe via o espasmo do corpo como se estivesse sofrendo algum tipo de convulsão . E então tudo acabava e nada mais se ouvia que não fosse o ronco do pai, acompanhado por um filete de baba que lhe escorria do canto da boca e ia morrer na fronha do travesseiro. Relembrava a cena dolorosa quando foi tocado no braço pela mão do companheiro
-Entendeu mano? Então fala pra ela que quero que ela me venha visitar. Porra! Ela é a minha mãe, né? – Ele, voltando do transe assentiu com a cabeça dando a impressão que entendera tudo. Feito, o companheiro lhe virou as costas e foi zoar com uma roda que se encontrava próxima. Novamente sozinho, levantou e caminhou em direção do “campinho” onde alguns internos tiravam um racha. Sempre gostara de jogar e mesmo ali, na Febem, com o passar dos anos se fez jogador pra lá de razoável, daqueles que sempre eram escolhidos pra jogar no time dos mais fortes. E assistia ao racha e como se fosse um vídeotape outra cena lhe voltou a mente. Fora uma "treta" há mais de dois anos com um malandro alcunhado por Pinga. Era o decisivo jogo final do campeonato dos internos e ele estava na posse da bola quando sentiu por trás a entrada criminosa que o deixou se contorcendo em dor e a batata da perna rasgada pelas marcas das travas de chuteira. Saiu do jogo por 10 minutos e ao retornar, assim que o Pinga passou ele revidou de forma mais violenta a agressão sofrida daquele sujeito com fama de mau. E o Pinga, mais encorpado, partiu pra cima dele e ele teve tempo de se desviar do soco e então ele viu exposta a guarda do Pinga e enfiou uma poderosa direita no fígado. O sujeito, sentii o golpe e se curvou deixando o rosto exposto e foi aquilo que ele precisou para massacrar o rosto do sujeito que necessitou de algumas semanas de recuperação até lhe ver a feição lhe voltar ao normal. Ficou a rixa? Claro! e eles se pegaram à tapa mais umas duas ou três vezes até que numa delas o garoto corpulento levou vantagem e foi necessário levá-lo à enfermaria para receber pontos no supercílio.
Ah, Pinga! De malandro e valentão tinha muito mas pagou o seu preço ao acabar esfaqueado e morto por um fedelho mirrado que com uma faca improvisada enfiou-lhe na na barriga e no peito 7 ou 8 estocadas. Nós ouvíamos-lhe os gritos de dor e ao cair, aí sim foi mortalmente esfaqueado por mais 2 ou 3 vezes próximas do coração. E aquilo foi tão surpreendente e rápido que foi necessário uns 4 ou 5 funcionários voassem pra cima do moleque e lhes tirasse o objeto perfurador antes que ele continuasse esfaqueando o sujeito. E foi inacreditável ver aqueles 4 ou 5 marmanjos tentando dominar o guri que lhes deu um belo suador.
E assim eram as coisas na Febem. Era a lei do cão onde cada qual tinha que se manter sempre atento para não ser destroçado por aqueles garotos fodidos e maus. E ele aprendera desde cedo o esquema e ficou sempre na sua e criou moral entre eles e não marcava bobeira com ninguém e que ninguém marcasse com ele também. Ah, sim! as drogas. Elas eram drogas “infiltradas” lá dentro mas, geralmente paravam nas mãos dos grandes, dos caras cruelmente maus. E muitos desses vendiam imunidade pra algum “bunda mole” e esse se via na obrigação de fazer “aparecer” a droga. Geralmente os escolhidos eram os garotos cujas famílias aparentavam um melhor poder aquisitivo.E então nas visitas as deogas vinham dentro de cuecas, sutiãs, calcinhas e elas eram convencidas a trazê-las para não verem o “seu menino" amanhecido com a boca cheia de formigas. Ele mesmo já usara desse artifício algumas vezes e obtivera sucesso e, sabia como funcionava o esquema da “facilitação” afinal, tudo por lá tinha o seu preço e assim se pagava o preço e não se tocava mais no assunto. Nesse interim saiu um gol de um dos times e os gritos foram tantos que o fizeram retornar ao presente, mais uma vez. Nisso, se fez à hora de se recolher para o seu respectivos pavilhão e, andando calmamente ele pensava como seria lá fora
Deveria procurar a mãe? Ele nem sabia por onde começar e, mesmo que a encontrasse, do que serviria? Cobraria algo? Por que?
Se questionou e chegou à conclusão que deveria dar por terminada essa história e, se a vida estava sendo assim, era porque assim ela deveria ser.
Mas como viver lá fora? Haveria alguma chance ? Ele bem sabia que suas chances eram nenhuma. Ele sabia que não haviam culpados e se houvesse provavelmente seria ele, afinal, fora ele que ai marcar bobeira entrou naquela escola de bandidagem. Fora ele o garotinho que sem a menor noção do seu destino se encontrou mergulhado em sonhos de menino por todos aqueles anos. Um menino que sem noção de coisa alguma e que achava que num dia seria um famoso jogador de futebol e, ganharia dinheiro, encontraria a mãe e compraria uma casa enorme e teria um carro conversível. Isso nunca existiu. Foram somente sonhos de uma criança perdida ali nos meio daqueles pavilhões, em becos fétidos, presenciando curras indecentes, choros de meninos espancados, rasgados, sodomizados com se fossem putas juvenis. Foram somente sonhos, sonhos de todos aqueles desgraçados que gostariam de ter uma casa, uma família, de freqüentar uma escola e até chupar a porra de um picolé. Foram tantos os sonhos que a todos pertenceram mas que um dia mais cedo ou mais tarde descobriram que aquilo fora uma grande mentira, tremenda tapeação.
Era isso! Estava decidido e não havia um outro caminho. Sairia e lá fora reveria os amigos que se foram e lhes deram dicas onde encontrá-los. Sim, estava decido e era o melhor a ser feito e o fato de se tornar mau, de ser bandido não era uma mera questão de opção e sim daquilo que se impunha aos desgraçados desta vida, como se fosse um tipo de desafio que lhe fosse impingido, ou dá ou desce ou fode ou sai de cima. E ele sabia que ao optar pelos amigos seria guindado ao caminho das drogas, do tráfico, de fuga de policiais e de facções. Sim! ele sabia que haveria a vida e a morte e que a distância entre ambas fosse tão proxima que a terra engoliria o seu corpo se um tiro lhe acertasse a cabeça. E ele sabia de tudo isso e só podia torcer para que os estragos fossem os menores possíveis.
- Vamos, entrando, entrando! ordenava o monitor.
E ele caminhou em fila e estava próximo de entrar no pavilhão e o seu instinto de sobrevivência parecia lhe ordenar: é isso! você não tem saída. Vá e procure não morrer.
-Vamos, Fininho, entrando, entrando! Ta pensando que essa porra é o rabo da Carla Peres? ironizava o enérgico monitor.
Ele o olhou e nada respondeu, apenas sorriu e continiou caminhando.
À Liberdade o aguardava.

Nenhum comentário: