sexta-feira, 1 de junho de 2007

Um sócio pra Deus.


Há muito tempo se encontrava distante. Quanto tempo? Nem ele mesmo o sabia.
E a vida sempre o levara a lugares inusitados que invariavelmente o deixavam no nada e no mesmo lugar. E a vida não se apresentava diferente agora. Mais uma vez encontrava-se sozinho já que nem Deus sabia de si segundo sua percepção, "Ele" de fato nunca o acompanhara. Freqüentemente pegava-se perguntando o por que Deus desistira dele. Por ser um perdedor? Talvez  fosse.  Tanto ele quanto Deus sabiam que ele não passava de um fracassado. Obvio que a conclusão é oposta ao pensamento cristão, onde dizem que Deus sempre se posta ao lado dos menos favorecidos. Porém  ele não acreditava, apesar de ser este o discurso da Igreja. Acreditava sim unicamente nas coisas concretas que partissem de fatos reais, e neles tentava tirar as suas conclusões. E além dos mais, sempre fora assim, onde às ilusões e filosofices baratas submetiam-se aos fatos. Fora assim com as suas mulheres, com seus empregos e até com a pequena filha que nem ele e talvez nem Deus soubessem onde estava. Pensando na pequena, lembrou-se da última carta enviada por sua ex-mulher onde afirmava que estavam bem e que o ideal seria permanecer dessa forma. Dizia também que seria o melhor para menina. Como afirmar o melhor para a sua princesinha? Como poderia haver tanta certeza nisso? Bem, não era relevante já que havia se acostumado a ficar longe e, a última vez que estivera com elas fazia mais de dois anos. Da derradeira vez e, disso ele se recorda bem, havia sido o dia em que a procurara e pedira que reconsiderasse situação da qual não concordou. E era disso que ele se lembrava e, a impossibilidade de qualquer entendimento o fizera aceitar a decisão. E o emprego então? Aliás, a falta dele. Há muito que não conseguia algum trabalho digno que o eximisse de passar necessidades. E, também tinha a questão do dinheiro já que era aquele o último mês do recebimento do seguro desemprego. Poxa! Cinco meses desempregado? Tudo isso? E era esse o seu tormento e se não conseguisse algo urgente não saberia que rumo dar a sua vida. E era assim que se encontrava, sentado num dos bancos daquele parque acompanhado de todos esses sentimentos confusos, sabendo que as pessoas quando más, tem o poder de foder com a vida de um homem. Isso não queria dizer que a sua ex fosse uma pessoa má, isso não! De certa forma ao abandoná-lo ela o destroçara. Existia um coração, só não havia o sangue para bombeá-lo. Bateu a mão no bolso da jaqueta e retirou um cigarro do maço. Acendeu, tragou, e de onde estava avistou a cruz da Igreja de São Clemente, próxima dali. Como se fosse um videoclipe, olhou para a cruz e se viu em imagens truncadas que o remeteram a infância cristã. Como estivesse vendo à sua frente o padre Josias em seus sermões dominicais. Quanta tapeação! Quantas mentiras naqueles ensinamentos sobre os dogmas, carestias, crenças, irmandades e principalmente do tanto que haveria de se ter fé. Fé? Oras! Esta nunca o alcançara e nem ao menos lhe dizia a que vinha ou o que seria. Acabou o seu cigarro, jogou a bituca e ao se levantar sentiu as pernas levemente dormentes. Ritimadamente bateu-as no chão e caminhou pelas alamedas do parque. O cheiro do mato e a beleza das flores lhes trouxeram um certo conforto. Vencidas as pequenas alamedas, seguiu em frente na direção da cruz. Atravessou a quadra que separava o parque da Igreja e se viu diante do templo. Alguma coisa o fez entrar. Entrou e tudo estava calmo, silencioso. Percorrendo os corredores, inspecionou as imagens e elas lhes trouxeram uma certa angústia. E ele a sentia mas não destinguia o motivo e isso lhe pareceu a mesma coisa que não ter fé. Sentado num dos bancos percebeu alguns fiéis em fila da água benta. Instintivamente, sentiu sede e a sua boca reclamou por água. O líquido contido na pia não lhe parecia tão puro e talvez o estivesse contaminado por todos os pecados do mundo. Isso, de certa forma o preocupou. Mesmo assim não sentiu aplacado na sede e ela, zombeteira, o incitava; -Estás com sede, muita sede-. Observou o templo e ao não se ver percebido dirigiu-se a pia onde bebeu até saciar-se. Algo de espantoso acontecera e o seu corpo levitou em pleno ar. E foi assim que os fiéis o encontraram. Alguns pares de joelhos dobraram diante de si e, ele se tornou o alvo de adoração. Orações e aleluias sucederam e fiéis vindos não se sabe daonde aglomeraram-se e, todos dedicaram-lhe orações. As preces, aos poucos, foram perdendo espaço para as reivindicações. Os pedidos não tardaram. Ficou impressionado e confuso com enxurradas de “Me dê isso, me dê aquilo, me dê saúde, me dê dinheiro” E as súplicas se tornaram tantas que ele nem mais se dava ao trabalho de memorizá-las. Aquilo o irritava profundamente à medida que as súplicas tornavam-se ensurdecedoras e insanas. O sangue lhe subiu à cabeça e foi impossível controlar-se:
-Calem-se! gritou.
E o silêncio veio, sepulcro e inexorável.
Ali, flutuado no nada, meditou. Sim! De certa forma a fé tinha lhe tocado.
Mas,ela seria tudo? Meditou novamente. Terminado e com os olhos direcionados à cúpula, se justificou:
-Táquepariu! To fora! O que o SENHOR está querendo é um sócio!

Acordou apavorado. Olhou o relógio e passava da meia noite. Ainda assustado pensou em tudo, e a sensação obtida tinha sido tão real que, por momentos, imaginou que houvesse acontecido. Ali, deitado na cama, olhando o teto, imaginou-se naquela loucura toda. Mas, o bom senso lhe dizia que era tudo tão absurdo e, a hipótese de ter estado naquela igreja, ainda mais pairado em pleno ar soava à insanidade. Riu de si, levantou-se, e foi à cozinha e do fogão retirou uma panela e sorriu ao ver os desbotados coxas de frangos adormecidas acima do arroz. O contraste das cores entre o branco do arroz e o bege das coxas lhe pareceu estranho. Revirou a comida e ela não lhe apeteceu, o que indicava que estava sem fome. Abriu a geladeira e retirou a meia garrafa de vodca. Despejou a bebida num copo e voltou para o quarto. Pensou no aluguel e que não haveria dinheiro para saldá-lo. Uma única opção entre comer ou pagar o senhorio. Evidente, ele preferia alimentar-se. Sorveu a bebida em tragos generosos, imaginando a forma de se ver livre dos problemas. Caminhou em direção da janela e deu o último gole debruçado no parapeito. Novamente pensava no aluguel. Inclinou ainda mais o corpo e o tórax avançou janela afora e então deixou o copo escorrer por entre os dedos. O som do vidro se estilhaçando na calçada pareceu incomodar o silêncio da noite. Lá fora, olhado da janela, quase não se viam farois e, vez ou outra algum exibicionista acelerava o motor do seu carro. Voltou para a cama, agasalhou-se no ralo cobertor e tentou não pensar em nada. Fitava o teto e nada existia que não fosse a negritude do quarto. Talvez tenha durado 15 a 20 minutos até seus olhos se fecharem. Segundos após um ressonar se ouviu. Era um sono de ansiedade, de dúvidas que fatalmente persistiriam ao amanhecer. A fé, talvez houvesse morrido, ele, ainda não.

Nenhum comentário: