quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Homenagem ao amigo João



As lentes escuras, grossas denunciavam-lhe a cegueira. Não se tornara cego por acidente e nem por nascença. Estava cego por mera questão de opinião. Um ser hilário, imbecilizado, traído num casamento e alcunhado de corno. Aceitou tudo. Nunca foi covarde, foi frágil. Como pai, tanto amoro e distante pelo labor, viu o único filho se afundar nas drogas pra delas nunca mais sair. Fez o que pode, procurou clínicas, internações e todo o quanto que o seu contado dinheiro pudesse pagar. Foi um caminho sem volta e sem perdão, mas onde lhe imputaram a responsabilidade- Você foi o único culpado- se defendeu aquela que nao suportou a reciprocidade da culpa.

Do funcionário de quase 28 anos (que imagino exemplar), nada restara se não uma carta de demissão, tapinhas e olhares chorosos ao definitivamente sair pela porta da recepção. Da vida, o que falar? Que ela lhe dera supiros de algumas alegrias? Sim, verdade, mas estas nunca contrastaram com os tons cinza-enegrecidos das suas devastadoras decepções.

- Sejamos mais brandos? - disse-me sorrindo.
-Falemos de coisas mais amenas. Do Brasil, então! - aí foi ele que me fez sorrir
AH, Brasil de governantes imundos, Brasil dos corruptos e de ambulâncias propineiras!
Ah! ele poderia falar tanto e tanto, mas para que? a sua cegueira já era suficiente? Não há grau para cegueira, ou se enxerga ou não se vê - argumentou e eu aceitei.

E mesmo assim, por mais que se mantivesse nesse torpor da anestesia de um parto que não se volta, queriam-no retornado e enxergando, talvez por sentirem falta a quem espezinhar. E bastaria um único desejo seu para que isso acontecesse.
-Não, isso jamais- sentenciou. Depois que desenvolvera o dom da visão consentida seus olhos não derrubaram uma única lágrima sequer. Cego, ela mantinha o domínio sobre si, seus sentimentos, suas emoçõe. Era tão bom não enxergar - me disse num sorriso pálido
Era bom não distinguir o verde, amarelo, o amor, o ódio, a tristeza, a felicidade, a lealdade, a falsidade e tantas outras coisas que os fizeram algumas sorrir e muitas sofrer - Conseguira o inusitado, o insólito e então atrelava as imagens que não via aos sentimentos que, progressivamente permitiu manterem-se ausentes -
Era bom estar cego, mesmo que por opção - me definiu em irônica conclusão-

E foi assim o nosso último encontro em maio desse ano. Foram apenas algumas cervejas e toda a falta de alegria na opacidade daquele olhar que nem longe lembrava o brilho incandescente, as labaredas flamejantes que seus olhos golfavam nos anos 70. Eramos como quase todos jovens da época; irresponsáveis. Vivíamos para a roda de amigos na esquina, bailes, garotas, bebidas, algumas viagens e rockinroll. Enfim, típicos jovens dos anos 70.

E antes de ir, aí sim para nunca mais enxergar, acredito eu que deva ter rolado uma sua última lágrima. E se ela rolou acho que, surpreso, rapidamente limpou os olhos com as costas dos dedos e sem não antes se aperceber de tudo que passava ao seu redor. Provaveolmente deva ter visto as pessoas sorrirem, mas não para si, pois em si ninguem deve ter notado o seu lacrimejar.
E então, acho que nesse momento ele se foi. Se mandou de vez desse mundo de insanos e donde os sentimentos já nao valem mais o preço de uma garrafa de cerveja. Desistiu, abaixou a guarda pra esse universo de cegos e de gente que não consegue enxergar nada e nem niguém que naõ seja a sua mesquinhes, o seu próprio bem estar.
Vai na boa amigo. Fica na paz!

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