quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O dia que Don Juan DeMarco pescou.


-Vô, por que as garotas estão vivem querendo pisar na gente?

O velho olhou para o guri. Achava um tanto engraçado vê-lo no alto dos seus 12 anos, vara de pescar numa das mãos e olhos concentrados no balanço das águas. O guri, efetivamente se saíra um melhor pescador que ao conquistador que tanto o velho gostaria que o neto se transformasse. Ele se orgulhava do guri. Orgulhava do jovem e eficiente “pescador”, mas, a natureza deste de só interessar-se por de vídeos-game, computadores e ter a casa abarrotada de amigos distanciavam-nos de uma intimidade maior. Não foram poucas as vezes que o neto e os amigos silenciavam tão logo entrasse no quarto de Felipe. E, além do mais, o futuro do garoto o preocupava. Seria Felipe um desses “nerds” que pensam com a rapidez e desenvoltura de um computador, como se toda sabedoria produzida pela sua mente, tivesse que desembocar ali, naquele amontoado de teclas e letras? Poderia haver mais num teclado e nos vastos programas de computadores, tão excitante como um bronzeado par de coxas ou o baton vermelho na boca de uma mulher? Era nisso que pensava o senhor Chilavert. E os pensamentos se amontoavam e ele vislumbrou o garoto na pele de um executivo. Num desses almofadinhas engravatados, exalando Paco Rabanne, sufocando o ar com o perfume bom mas enjoativo, num olhar altivo, insensível, credor de que nada lhe servia a humanidade, salvo fazer-se de uso como fazemos num trampolim. Acontecera dentro da sua própria casa e com a única filha. Mônica era o seu nome. Era uma dessas pessoas; uma excepcional executiva que expandíra em mais de trinta vezes os negócios e o patrimônio da família Chilavert. E tudo isso começara nele e com a editora que fundara e outorgara a ela, tão logo essa terminou a faculdade. Talvez houvesse sua parte de culpa nesse processo Ele mesmo, comandara o barco por uns bons anos, mas, a convivência entre escritores nunca fora fácil. Ele mesmo o sabia, pois fora um. – “Os escritores são ególatras e narcisistas e sempre se julgam melhores uns aos outros. Consideração? Oras bolas! A desconsideração entre a nata é tão contundente, e tratam-se entre si como se fossem excrementos que se se vão, descarga abaixo, num único pressionar de botão” – Concluía o senhor Chilavert. Porém, Mônica, ao contrário, saiu-se diferente dele e amava ter por perto aquela cambada de exibicionistas e canastrões, embora houvesse entre eles, raras e deliciosas exceções. E assim, diploma na mão, ela se dedicou à editora como se fosse a um filho e fez aquilo crescer como ninguém jamais o faria. Porém, apesar de todo o sucesso, a filha se tornara uma pessoa triste; uma executiva eficiente e fria.

Talvez a convivência com a falsidade ou a prematura viuvez que afastou de si o marido, logo após o primeiro ano de casamento, tivessem sido os maiores responsáveis. Houve sim, após a morte do marido, um escritor por quem ela se apaixonou e por ele fez tudo que se pode fazer por alguém. E ele foi reconhecido pelo público, talvez nem por seus méritos, mas pela irritante insistência de Mônica , que às duras penas o introduziu no mercado. Mais uma vez ela provava da falsidade do mundo literário, e assim que esse se viu reconhecido, best seller, desfez-se dela e até trocou de editora. Não raras, foram as vezes que a vi, olhar perdido, rosto sombrio, telefone numa das mãos e toda a desesperança de ter a certeza que, mais uma vez, ele mandara dizer que não se encontrava. Retornar ligações? Nunca!
Dessa forma, usada, ferida, viu ruir o seu castelo ilusório, para trancafiar-se ainda mais no mundo dos negócios e dos resultados. Para o filho, quase não sobrava tempo, principalmente após o terceiro ano de idade. Felipe sempre foi preterido diante das sucessivas e exaustivas reuniões que faziam de Mônica, uma refém dentro da redoma empresarial. E assim, para o senhor Chilavert sobrara a incumbência de tentar manter-se o mais próximo do neto, assumindo a ausência de um pai falecido e de uma mãe faltosa. Não era uma tarefa das mais fáceis, e ele tinha as suas dificuldades com o Felipe e, afora o fato de curtirem juntos uma boa pescaria, poucas coisas lhes diziam comuns já que ele, sempre ao lado dos amigos de escola e, incentivado pelo dinheiro e os raros contatos com mãe, mantinha-se cercado de toda parafernália tecnológica possível. Não é necessário dizer que isso o afastava das coisas simples da vida e do real sentido da natureza humana. Acordando desses pensamentos, ateve-se à questão do neto e lhe respondeu:

-Ah, não sei Felipe! As mulheres são assim mesmo. Talvez seja a sua natureza de ser – Falou, sem desviar o olhar da fina linha de nylon, que suspensa, fundiasse a uma pequena e bóia de cor alaranjada, imersa ali, ao encontro com a água.

Claro, qualquer tremor na bóia significaria que algum peixe estivesse mordiscando, ou mesmo, abocanhado a isca. O garoto, silenciosamente, mas atento, prestava atenção na sua bóia que sutilmente era puxada para baixo. Ágil, como deve ser todo bom pescador, deu uma guinada com vara para a direita e esse movimento fisgou de vez o peixe. Ainda, com movimentos rápidos e precisos, e com as mãos trabalhando em conjunto, foi trazendo-o para o barranco, num jogo de muita paciência. O peixe, voluntarioso, não queria entregar-se assim tão facilmente, e então lutou bravamente para não se deixar levar. Mas, o seu esforço para livrar-se do anzol o exauriu completamente, e ao final, permitiu-se capturar sem oferecer maior resistência. O senhor Chilavert percebia os movimentos e, assim que o neto içou o peixe, viu aparecer um belo e pesado pacu. Examinou o peixe e sorriu para Felipe - aquele peixe deveria beirar uns 3 quilos – concluiu.
O menino, cuidadoso, bem sabia o quanto de complicado era retirar um daqueles do anzol, e o menor descuido seu representava devolvê-lo à lagoa. E foi com muita habilidade que o trouxe até o barranco. Içado, reparou que o peixe respirava com muita dificuldade. Havia sido uma boa briga e, antes de tirá-lo do anzol para colocá-lo no cesto, questionou o avô, novamente:

-Vô, por que todass não são iguais aos peixes? – O velho, sorriu. Um sorriso interno, anônimo. Evidente, sabia por dedução que havia “algo” detrás das questões do garoto. Fez-se desinteressado, desentendido, e sem desviar a atenção da sua vara de pescar, questionou o garoto:

-Como assim, Felipe?

-Assim vô! Que dessem trabalho, se debatessem, ficassem bravas, mas que no fim, tudo voltasse ao normal e não mais brigassem com a gente! – Explicou em tom inconformado.

-Bem, Felipe, as mulheres são assim e às vezes, nem elas mesmas sabem o porquê de estarem brigando. Muitas, se não arrumarem alguém para brigar, acabam brigando com si próprias! - O garoto pareceu se divertir com a afirmação do avô e então gargalhou gostosamente.

-Éééééée! É isso aí, vô! O senhor sabe das coisas! – O estardalhaço do menino veio em má hora e o senhor Chilavert seria capaz de jurar que um peixe dos bons havia acabado de mordiscar a sua isca, pode sentir até a fisgada na linha, mas o barulho o afugentou:

-Psiuuuuuuuu. Silêncio, moleque! Assim você me fará perder todos os peixes! –

Felipe silenciou-se, colocou o seu pacu de 3 quilos no cesto. Ele se debatia em vão, sabia que o seu fim tinha sido decretado. Assim que se viu livre do peixe, inspecionou a sua vara e a isca; um daqueles peixinhos plástico e, novamente, num hábil lançamento a fez aninhar-se no lugar pretendido; no meio da lagoa. E assim permaneciam avô e neto, ambos calados, prestando atenção no movimento das águas. Pouco após, um novo tremor, e o senhor Chilavert olhou incrédulo; não era a sua bóia que acabava de submergir. Felipe fisgava o seu oitavo peixe. O velho, um tanto desanimado, com o canto dos olhos olhou para o seu cesto, e lá, permaneciam duas pequenas tilápias, inertes, olhos vidrados, gozadores, como estivessem se divertindo com ele e com o seu ineficiente estilo de pescar . A sensação o incomodava. Olhou novamente e elas continuavam lá, inertes, zombeteiras – Puts! Que merda! E nem grande coisa eram! – concluiu. Desalentado, desviou o seu olhar de lá e voltou a concentrar-se no o neto:

-Menino, e não é que a sorte está do seu lado hoje? –

E, admirado, percebia os movimentos do neto em pleno embate com mais esse peixe; a briga, desta feita, era das boas e o peixe, dos bons. A água, freneticamente, espirrava para os lados e o combate qualificava a destreza de cada um; peixe e pescador. Agora, o garoto não encontrava tanta facilidade e, se não fosse possuidor de tanta paciência, do senso exato de perceber que, com esse, teria que fazer uso de outras táticas, diferentes das que usara com os outros. Esse peixe era um “brigador”. Um daqueles que desafiam a nossa sagacidade. Com esse, teria que adotar a tática de cansá-lo, para daí então trazê-lo de forma segura até o barranco. E assim ele o fez, soltando a linha da carretilha, dando terreno para o peixe, deixando-o imaginar que pudesse estar se livrando, e então o surpreendia, recolhendo a linha e o trazendo novamente. Sucessivamente, soltava e voltava a manivelar a carretilha, e , brigar com um peixe daqueles não era tarefa das mais fáceis, ao contrário, também o deixava exausto. O avô sempre lhe fizera ver que a pescaria, nada mais é que um jogo; um formidável jogo. E nessa contenta, a desproporção entre os combatentes é brutal, mas, que não significa dizer que o combatente dotado de inteligência sair-se-á sempre vencedor. Ele mesmo, por precipitação já deixara de capturar alguns belos exemplares, que se foram, lagoa adentro, quando já os imaginava capturados. E assim foi, até que o peixe, exausto, veio à tona, sucumbindo à força daquele homem-menino. Um outro belo e imenso pacu surgiu. Esse, beirava facilmente os 5 quilos. Preocupado que, num movimento de sorte, o peixe conseguisse se livrar, ofereceu ajuda ao neto.

-Não vô! Não é necessário não! Desse eu dou conta. Eu só não consigo é da conta da Angélica! Mas, desse “peixinho”aí? Ah desse, dou conta sim! – Disse sorrindo, recolhendo o peixe para o alto do barranco. O peixe, exaurido, mau se mexia.

O senhor Chilavert, curioso, ficou a matutar o que podereia haver por detrás daquele “ Não dar conta da Angélica”. E, continuando a fazer-se despretensioso, inquiriu-o com um ar de desinteresse:

-Ah, sim! Por acaso seria àquela loirinha linda, de olhos azuis que você ficou seguindo o tempo na festa do teu aniversário?

-Sim vô! Ela mesma! Tão brava que parece um escorpião acuado! – Respondeu um tanto desanimado, enquanto tentava retirar o baita do anzol. O avô, prevendo problemas com o peixe e, antes que a auto-suficiência de Felipe colocasse tudo à perder, assumiu a incumbência de resgatá-lo da vara de pescar. O garoto, percebendo que a briga agora seria de “cachorro grande”, postou-se ao lado cedendo a tarefa ao avô. O senhor Chilavert assumiu o posto com a atenção redobrada, já que, sabia, que tão logo se visse livre do anzol, o peixe faria tudo para se libertar, mesmo que extenuado; era da sua natureza, também.

-Mas, o que foi que aconteceu, Felipe? – Perguntou o avô, enquanto uma de suas mãos segurava o peixe firmemente, e a outra insistia em desenroscar aquela enorme cabeça do anzol.

-Bem, vô, é o seguinte; A Angélica me pegou com a “boca na botija”

-Como assim....com a boca na botija? Explique isso melhor! – surpreendeu-se o velho.

-Assim, vô! Lá na escola, tem uma garota de outra classe que vive me dando “mole”. O Nome dela é Luana, Sabe vô, mas eu acho que ela não é pra namorar, é mais pra passar tempo. Essa garota tá sempre dando “bola” pra todos, e parece que ela nunca se contenta com um namorado só. Ela tava namorando um tal de Luigi quando começou a me provocar. Sabe vô, ela é muito bonita e tem até uns.... grandes – Explicou ao avô, com as duas mãos em concha, curvando-as no próprio peito, simulando o par de seios da garota. Sentia-se envergonhado ao explicar para o avô, mas, já que chegara até ali, não poderia parar:

– Entendeu vô, o porque eu não quero namorar com ela? Pra namorar eu quero a Angélica. E, além de gostar dela, sei que ela não fica marcando “bobeira”, dando “mole” pros garotos. Bem, pelo menos, não que eu veja!

E então continuou explicando ao avô, que à coisa de 20 dias atrás, estava de paquera com essa Luana e quando ninguém olhava, sinalizou para que ela o seguisse. Ele descobrira um lugar deserto na escola, onde raramente aparecia alguém. Era uma espécie de depósito. Lá eram guardados objetos quebrados e sem serventia; cadeiras, mesas, computadores e outras bugigangas. E, ele, sempre curioso, descobrira aquele local, meio que por acaso, ao subir por uma escada que saia anexa à casa dos geradores. Descoberto o local, e sem que as pessoas percebessem, o usava o para dar vazão as suas pequenas safadezas. Era lá que ele em companhia do inseparável Jonas, folheavam as Revistas Playboy, Penthouse, e outras mais apimentadas, que o amigo trazia escondido na mochila escolar. Nunca houvera nenhum problema e não seria agora a tê-lo. E assim, Luana o seguiu. Ela seria a sua estréia no campo “pessoal”, no “olho no olho”. Seria o seu primeiro passo, a sua “avant-premier”, a realização do seu primeiro e ansiado desejo; correr a mão por debaixo daquela saia. Mas, algo dera errado e a sorte pareceu lhe abandonar – Explicava, gesticulando os abraços, formando as frases, ora desalentadamente, ora alegremente, para um atendo avô, que não perdia qualquer dos seus movimentos - E o que não dera certo ficara por conta da Angélica, que desconfiada, naquele dia não desgrudou os olhos, dele. E, tão logo percebera que Luana o seguiu, postou-se cuidadosamente alguns bons passos atrás e os seguiu. E pra piorar, com muito cuidado, Angélica entrara pela porta, sem que eles se dessem conta e então os pegou “flagra”, com a “boca na botija”. Ele, claro, excitado, saciava o seu desejo e passeava a mão por debaixo da saia de Luana, enquanto a outra mão, nervosamente, entrava pelo vão onde os botões foram desabotoados, e acariciava um dos seios de Luana, por sobre o sutiã branco e rendado. Foi assim que, perplexos e assustados deram com a presença dela. Ele, sintomaticamente, retirou apressadamente as mãos da garota, enquanto ela, assustada, tentava abotoar os botões da camisa escolar. Felipe, gaguejou ao tentar se explicar, enquanto Luana, rapidamente, abandonava o local. Evidente, Angélica nem o deixou justificar-se, e, saiu de lá tão furiosa, que não mais voltara a conversar com ele.

-Então vô! Foi isso que aconteceu. O que a Angélica não percebeu é que não pretendo abusar dela. Ela não é menina pra isso, e muito menos precisa se insinuar para chamar a atenção dos garotos. O que eu sinto por ela é algo bom, um geladinho que me da na barriga toda vez que ela está próxima à mim. Eu realmente gosto dela! Sacou tudo, vô?

-Hehe!Claro, claro, que saquei! - Dignou-se à sorrir o avô. – Olha Felipe, chegando em casa vou te dar um presente! E, definitivamente não fique preocupado com a Angélica, que, logo, logo estarão conversando novamente. Ainda mais se ela te gosta.... E, em gostando, ela te perdoará. Pode demorar um pouquinho, mas, te perdoará!. As mulheres são assim; se magoam facilmente, mesmo que os motivos que as fazem-nas magoar-se, sejam para preserva-las. Nunca se esqueça disso, Felipe; essa é a natureza da mulher

Como já estavam em fim de tarde, acharam melhor retornar para casa. No caminho, o garoto ficou imaginativo quanto ao presente que o avô lhe daria. Durante o trajeto questionou o avô sobre o assunto. Ele, numa expressão misteriosa, apenas sorria para o neto, mas, sem nada elucidar.

Chegando em casa o garoto, insistente, perseguiu o avô até o quarto desse:

-Vô, o que é? O que é? – insistiu.

-Calma ! Vocês, jovens, parecem que nasceram com toda a pressa do mundo. Calma, Felipe, calma! – Respondia.

O garoto acomodou-se numa poltrona ao lado do computador do avô, enquanto esse, procurava no seu armário coisas de um passado distante. Não, não era aquele um armário qualquer. Não! Esse, estivera consigo nos últimos 30 anos.

-Ah! Achei! – Exclamou o senhor Chilavert com voz abafada. O som truncado era pelo fato da sua cabeça estar completamente dentro do compartimento.

Retirou-se de lá e encaminhou-se na direção do garoto. Na mão, trazia um pequeno estojo negro com as inicias V.C em filete dourado, gravadas nele. O garoto olhou espantado para o seu presente tão logo o viu fora do estojo:

-Mas, vô! Pra que eu vou querer um par de óculos de lentes escuras e arredondadas ? – Questionou manipulando os óculos

-Sabe por que garoto? Porque você é um excepcional garoto! – Dito isso abriu um imenso sorriso ao Felipe. Ele se encontrava feliz ao poder dar ao garoto aquele objeto que muito lhe representara na sua trajetória de vida. E aquele objeto significava para si, um tempo de liberdade. Um tempo que, como escritor anônimo e desconhecido, gozou da plena liberdade de escrever o que quisesse e para quem quisesse. Os óculos apenas simbolizavam isso; a liberdade de expressar seus sentimentos, seus conceitos e convicções, aceitasse quem aceitasse, doesse em quem doesse
E, aquele garoto havia feito por merecer. Poderia parecer, à primeira vista, que o neto estivesse arraigado de em preconceitos. Não, simplesmente o garoto já pressentia o que lhe pudesse ser bom ou não, o discernimento necessário e que faz toda a diferença entre ser e estar feliz ou não. Talvez, Felipe fosse possuidor de um dom que ele jamais detivera; o de evitar problemas. Mais do que nunca, ele tinha a plena convicção agora que, mais que um grande pescador, batia no peito do neto, um coração de conquistador. Sim, conquistador, mas um conquistador sensível, generoso, emotivo, mas sem abrir mão da racionalidade. E ele soubera ali, naquela breve conversa à beira de um barranco, que o neto haveria de ser alguém nessa vida. Haveria de ser homem que respeitaria e exigiria respeito aos seus semelhantes. Haveria alguém que não usaria do poder para passar como um rolo compressor por cima das pessoas e dos seus sentimentos. Afinal, estivera ali, diante dos seus olhos, um novo e verdadeiro Don Juan Demarco. E com um sorriso nos lábios, e sua mente dominada por esses pensamentos, conclusões, o senhor Chilavert pediu ao neto:

-Felipe, por favor. Vá até a geladeira e traga a minha Sputnik. É uma garrafa de rótulo esverdeado.

O neto o olhou divertido e então meneou a cabeça, cerrou os olhos e o gozou:

-Que porcaria, vô! Aquela bebida nacional? Como o senhor pode gostar de uma bebida tão horrível e barata?

Pelo jeito, o danado, além de ver o preço estampado no rótulo, estivera bebendo da sua vodka. Então sorriu. Sabia que Felipe estava coberto de razão, mas a Sputnik o acompanhara por toda uma existência , e não seria justo e nem agora que, quase que ao fim de vida, depois das alegrias e desgraças vividas em conjunto, que a abandonasse por completo. O velho se manteve o sorrindo ao vê-lo se aproximar com a bebida em mãos. Sabia que existiam no garoto todos os ingredientes que o fariam, com o tempo, perceber compreender todas as suas opções e escolhas na vida, como ao fim acabaria compreendendo as escolhas do avô. Tudo era uma mera questão de tempo. O tempo é o senhor de tudo; o tempo é o absoluto senhor da razão. E o tempo parecia conspirar à favor do neto como nunca conspirara pra si. E ele se aproveitaria dele enquanto houvesse mais alguma disponibilidade de tempo para si. O que vivia era o segundo tempo do seu jogo com a vida. Após isso, restar-lhe-ia, se muito, um diminuto tempo de prorrogação, e ele bem o sabia.

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