terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Roberto Carlos, Jesus Cristo e um triste fim


-Mãe, cadê o pai que não vem? –

Era a mais pura manifestação de aflição que um garoto poderia demonstrar. E essa manifestação se tornava cabível já que ele, um garoto de 9 anos de idade, já nem se lembrava da última vez que estivera com o pai, de tão pequenino que era.
Mario Augusto, esse era o nome do seu pai. Presidiário, cumprindo a sentença de vários anos de prisão, naquele 31 de dezembro, logo cedo e por bom comportamento na cadeia fora contemplado com a liberdade para estar o ano novo em casa e com a família. Regininha, como era conhecida, também estranhava o fato do marido não estar no lar, apesar de ser quase onze da noite e o ano estar por virar.

-Regininha! Vou ao mercadinho comprar umas cervejas – Dissera ele naquela mesma tarde, por volta das três. Despediu-se beijando a boca da mulher, o rosto do filho com o qual pouco ficara e se foi porta afora com aquele seu jeito malandro de andar.

Ela, ao vê-lo sair, pressentiu algo que lhe deixou aflita e ainda lhe pediu - “Mario, não demore, por favor” - Ele lhe sorriu e acenou lá do portão enferrujado que dava acesso a entrada da casa. Casa? Casa sim, se é que aquilo pudesse ser chamado de casa; um pequeno cômodo de paredes de tijolo, sem reboco, que com tanto esforço, mantinha com seu trabalho assalariado de manicure num salão próximo dali.

-Isso é um assalto! – Anunciou ele.

As pessoas olhavam incrédulas para aquele rapaz, aparentando uns 30 anos. Ele empunhava um revolver e ordenava para que permanecessem colados uns nos outros. A família, pequena, fora pega desprevenida enquanto ouviam na sala Roberto Carlos cantar - “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui” - O som estava alto e ele não sabia dizer os motivos, mas a música o irritou profundamente:

-Jesus Cristo é a puta que pariu! – Vociferou, castigando com sucessivas coronhadas o dispositivo onde se alojavam os Cds. Assim que o rompante de fúria cedeu se via por todos os lados pequenos pedaços de plásticos espalhados pelo chão. Enfim, Roberto Carlos se calou e nada mais foi ouvido.

-Garoto, venha aqui! – Disse apontando a arma para o garoto, talvez uns 12 ou 13 anos, provavelmente o único filho do casal, já que, somente os três estavam em casa.

O garoto ainda olhou para o pai o qual assentiu com um movimento de cabeça. Um tanto desajeitado caminhou na direção do bandido.

-Qual é o seu nome, moleque?

-Ro...Roberto. – Disse nervoso e numa justificável gaguez.

-Roberto, quem nem esse filho da puta que estava cantando? – Questionou irônico apontando a arma em sua direção.

-Por favor! Não faça mal ao nosso filho. Faça a mim, mas não faça mal a ele – Interviu o pai, aflito ao ver a arma apontada para o filho.

-Mas.... Não vá me falar que se chama Roberto Carlos? – Insistiu com o menino. Esse, temeroso procurou não gaguejar dessa vez:

- Não, moço! Roberto Augusto da Silva –

-Augusto?... Augusto? Bonito nome,Augusto... O meu nome também é Augusto. É Mario Augusto e, toda pessoa que se chama Augusto tem que gozar dos seus privilégios.

Dito isso, apontou a arma em direção da mãe do menino e disparou. Foi um tiro certeiro que atingiu em cheio o tórax da mulher. O marido, apavorado chorava ao sentar-se com ela, ali no chão. Ele percebia a vida da esposa esvair-se ao niná-la em seus braços. Ambos choravam enquanto ela tentava estender os braços na direção do garoto. Os dois souberam ali que não haveria saída para qualquer um deles. Imediatamente, um segundo tiro foi dado e a bala alojou-se na testa do homem, que ainda sentado desabou para trás. O baque foi tão violento que ele mais parecia um desses patinhos atingidos por tiros num parque de diversões. O garoto, incrédulo, viu seus pais estirados no chão e o sangue jorrava em veios como se fossem braços de um rio; estavam mortos.
Mario Augusto, olhou-o insanamente. Louco e transtornado vistoriou a pequena mesa adornada por uma toalha plástica, simples porém bonita. Lá estavam o peru, maionese, arroz e um pedaço de costela assada e então a fome o incomodou. Passando as vistas por sobre a mesa procurou por algo para beber, mas não achou. Como a sede era intensa perguntou ao pelas bebidas e esse respondeu que estavam na geladeira. Mario Augusto, que há pouco e pela primeira vez consumira diversas pedras de crack com uns amigos do passado, ali perto, num lugar conhecido como “boca do lixo”. O efeito da droga em seu cérebro foi tão devastador que pra ele não havia o certo, errado, bom ou mal. Tudo parecia não lhe fazer qualquer sentido, e apontar a arma na direção do garoto era
mais que justificado. Ainda apontando, direcionou o cano da arma para a cozinha; estava claro, queria que o garoto fosse buscar as bebidas. O garoto, um tanto trêmulo trouxe duas garrafas de cerveja; uma em cada mão. Mario Augusto apontou para a mesa; queria que ele as deixasse em cima da mesa. O menino obedeceu prontamente colocando-as no lugar ordenado. O bandido, faminto e com sede repousou a arma na mesa enquanto procurava o abridor de garrafas por entre os pratos. Foi a ártir daí que tudo ocorreu, e tão rápido e definitivo quanto à descarga de um raio.

A sirene de um carro policial tocava insistentemente e, mãe e filho foram surpreendidos por palmas que as chamavam ao portão. Saíram. Os dois policias os aguardavam. Lá no carro, sons em vozes abafadas eram emitidos pela freqüência de rádio. As vozes soavam nervosas, rápidas, e isso deixou o menino receoso, porém, curioso. O policial com uma pequena prancheta em mãos se reportou a ela:

-Por favor, a senhora é esposa do Mario Augusto? – Perguntou, enquanto retirava do bolso da camnisa a cédula de identidade do seu marido.

-Sim, sou eu sim! Aconteceu alguma coisa, moço? – Perguntou assustada.

-Sim dona. Aconteceu sim. Ele foi morto a menos de meia hora - Comunicou-lhe laconicamente o policial. Ela sentiu o chão faltar sob os seus pés e o ar rarear em seus pulmões. Diante daquele pesadelo todo tentava inspirar, puxar o ar para dentro mdo peito. O policial continuou:

-Ainda o encontramos com vida. Ao seu lado, apenas um garoto trêmulo, que chorava copiosamente, e com a arma numa das mãos. E ele, antes de morrer, pediu para dizer que amava a senhora e ao filho. Depois, os seus olhos foram se fechando lentamente e ele balbiciou cantarolando uma música do Roberto Carlos; “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu...”

E antes mesmo que houvesse tempo para o policial terminar a frase, fogos de artifício espocavam nos céus. Eram jatos coloridos e barulhentos que vestiram a escuridão das mais variadas cores. Nas casas vizinhas, os alaridos eram imensos e gritos ensurdecedores de uma turma de garotos que se aproximavam rua acima, se faziam ouvir num - “Feliz Ano Novo” - Diziam a todos que encontrassem fora de suas casas.

-Feliz Ano Novo, dona! – Saudaram ao passar por ela.

Regininha, olhar incrédulo, pensamentos perdidos não se sabe aonde, sem a noção exata de tempo ou espaço, contida por lágrimas que insistiam em não desaguar e naquilo que se transformara a sua vida; um deserto seco, árido, apenas pó. Na garganta o grito entalado, dolorido, que urrado ecoaria por todos hemisférios. E ela ali, parada, os gritos dos garotos,as gargalhadas, divertindo-se como se o mundo fosse somente uma bola azul e não fosse acabar. Ela e o par de olhos, tentando enxergaqr aquilo que não se poderia ver, estática, cercada por policiais, e por um em especial que insensível não se apercebia da sua dor. E não restava nada que pudese fazer a não ser estar ali, estagnada, plantada como um vegetal qualquer e, para piorar, dilacerada por aquele sujeito que cismara de recitar as últimas palavras do marido. E esse complexo e truncado estado de coisas traduziam-se bizarras, cômicas, se não fosse tudo tão duro e doloridamente trágico. E na boca um gosto ruim, da língua sem saliva, amarga, daqueles que sabem que jamais nasceram para ser ou estar feliz. Então algo aconteceu e da alma jorrou a força ao encarar o seu menino; ele estava assustado e não tinha qualquer culpa e mais do que nunca precisaria de si, agora. E antes que tudo terminasse, abraçou ternamente o garoto, e as lágrimas vieram fáceis desta vez, então sussurrou:

-Feliz Ano Novo, meu filho! Feliz Ano Novo!

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