sexta-feira, 20 de junho de 2008

O senhor Okamura


Naquela fria manha de outubro um céu povoado por densas névoas negras o entristeceu como nunca – “O que estará havendo?” – Perguntou a si o octogenário Sr. Okamura.
Fiel as tradições, assim como são os autênticos "velha guarda" olhou pela vidraça do apartamento de primeiro andar e descansou a vista em alguns jovens que, na calçada e próximos da portaria do edifício tagarelavam entusiasmados.  O Sr. Okamura, como se mantivesse as tropas sob revista concentrou-se nas roupas que usavam, inclusive nas calças absurdamente coloridas enquanto os seus cabelos desgrenhados e multicores forneciam um visual inusitado, algo quase surreal. Ainda que distante conseguia ver-lhes os penduricalhos atravessando narinas e outras partes visíveis do corpo. Sim, ele os achava estranhos, afinal, como suportavam espetar tantas peças de metal na própria carne? Olhou para a fragilidade do seu corpo e sorriu ao imaginar-se fisgado por uma daquelas. Entretanto não era unicamente esse o estranhamento; O que falar de suas músicas, então? Delas queria distância, exceto uma, especial, pois apreciava os momentos suaves de “Stairway To Heaven.” e tanto a apreciava que, era comum contra-lo dedilhando a canção do Led Zeppelin nos orifícios de sua flauta. Quanto as outras músicas de rock ouvidas por aqueles garotos, ele as odiava. Irritavam-no os sons das guitarras distorcidas e sujeitos com vozes guturais que berravam coisas de forma animalescas, falas que por mais que se esforçasse, jamais conseguiria decifrar.
E assim ele ficou a namorar os jovens, tentando compreender um pouco daquele mundo insano, ocidental, sem atinar o fato que levara seu neto fazer parte daquele bando de meninos cabeludos.
"Onde estarão as nossas tradições... Nossa história?" – questionou-se enquanto os flertava.
Não! Definitivamente o Japão daqueles cabeludos estava há milênios do Japão dos seus sonhos, do seu ideal – Concluiu enfastiado -

Continuou a olhá-los e eles gesticulam e riam, e brincavam de chutar uns aos outros numa atitude sem graça e fora de hora.
“ Será minha a ociosidade de aposentado que me torna tão severo e crítico com esta nova geração?” – Perguntou-se.
Momentaneamente um sorriso nostálgico invade suas feições e então ele se recordou que fora jovem. Sim, ele mesmo: Nagato Okamura fora um deles, destemido, um kamikaze à serviço da realeza, o sujeito poupado da morte ante o término repentino da guerra contra o estado norte americano. E lembrando do fato foi impossível esquecer de um Japão prostrado, rendido ao impacto do devastador arsenal contido no ventre do "Enola Gay” o avião ceifador de vidas.

Então, como se fosse cravada na memória uma outra e gélida manhã de 1945 reviveu a dizimação causada pelo cogumelo atômico e o pavor do seu povo ao se confrontar com o adversário impiedoso.
Claro, quis o destino mantê-lo distante de Hiroshima e depois Nagasaki, mas as vísceras de um Japão impotente e tão perplexo quanto a comunidade internacional ficaram estampadas em fotos e nas manchetes dos jornais que comprovaram a pulverização a que foram submetidos. “ah! Quantas mortes desnecessárias, inocentes” – gemeu para si.

E assim, revestido de amargas lembranças recostou a fronte na frieza vítrea da janela e munido da resignação que se oferta aos vencidos.

-B29... B29. Por que daquilo? – Murmurou trêmulo ao se referir às siglas da destruição.

Seu neto, vindo da portaria do edifício e entrando pela porta da sala, flagrou-o naquele estado de apatia, silabando um número qualquer, e assim, diante do tom de lamento interpelou-o, como sempre, irreverente:

-Ih vô! Será que faltou esse tal de "bevintenove" pro senhor preencher a cartela e ganhar uma torradeira elétrica? – Perguntou num riso debochado, claro, ele gozava o avô e o fato do velho na noite anterior ter jogar bingo no clube dos oficiais da reserva.

O senhor Okamura olhou ternamente para o garoto enquanto deslizava os punhos do pulôver sobre os olhos com o efeito de disfarçar as gotículas que brotaram ali, afinal, um bravo jamais chora. E ainda assim, diante daquele jovem com idade entre os 18 ou 19 anos sorriu para o rapaz de olhos castanhos e puxados assim como os seus.

E aos poucos a sua expressão se quebrou sombria num rosto vincado e retraído nas condolência de cicatrizes que se estampam na alma. E o seu olhar não abandonou o garoto de cabelos aloirados e moicanos enquanto jazia inerte a imensa águia tatuada num braço afeito à musculação. – Impressionado com a feição assustadora da ave pousou o olhar naquelas asas e olhos por mais algum tempo, pois havia tanta realidade no desenho grafado e nas cores empregadas que seria capaz de jurar que ela poderia empreender voo se assim o quisesse –
Permaneceu nela por mais alguns momentos e, abandonando-a concentrou-se novamente no neto que não desistiu:

-Fala vô, foi isso que faltou?

A resposta veio curta, seca e aquém de qualquer compreensão daquele jovem à bordo duma camiseta negra e regata onde no peitoral sobressaia a estampa do Ramones:


-Foi sim Hiroshi! Foi o que nos faltou. E foi pouco, tão pouco, provavelmente, quase nada!



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