quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Atrás de cada cavalo sem dente sempre há um bom motivo



Enfim havia chegado o grande dia. Coloquei meu melhor terno, caprichei o gel nos cabelos grisalhos sem me esquecer de aparar a barba e decorar o rosto com inseparáveis óculos Ray-Ban safra 81.
Saí de casa exatamente as dez pras oito da manhã e faltando 25 minutos para as nove guardava o Weekend 98 num estacionamento da Av. Paulista que me cobrou 30 pratas por duas horas, apesar de usar pouco mais da hora cheia. Saindo da garagem  facilmente encontrei o edifício, próximo dali. Tomei o elevador e pedi o 33º andar. Ao descer percebi que o pavimento se ocupava totalmente pela empresa que visitava. Pontualmente as quinze pras nove adentrei a recepção e fui atendido pela secretária que me acolheu com simpatia e pediu para que me a comodasse no sofá defronte de sua mesa. Assim procedi e ela me olhou algumas vezes  pelos poucos mais de 10 minutos que permaneci ali.
Claro, o fato de olhar com  frequência me instigou, porém fiquei mais tranquilo ao inspecionar o terno que parecia não trazer sinal de sujeira ou manchas de gordura. Pensei no motivo de suas flagradas e divaguei se a sua curiosidade deveria  ser creditada à minha feição amassada e o nariz largo e achatado adquirido logo após a juventude ao meter-me nas lutas de boxe.
Evidente, à época eu gostava de ouvir aquilo que me acariciava o ego, portanto, iludido pelo dono da academia e seu sócio, talvez mais interessados nas mensalidades que em mim, foi que me fizeram acreditar que eu seria um ótimo lutador. É importante lembrar que no início obtive alguns bons resultados em torneios amadores, mas a verdade surgiu nos quase cinco anos de profissionalismo e numa última luta me inutilizou para o boxe devido a um deslocamento de retina.
Enfim, uma triste história em  cima dos tablados que me deixou de herança socos que devastaram o meu rosto com jabs, cruzados, diretos e pontas de queixo desferidos por adversários que não desperdiçavam chances assim como um caçador sabe que não pode errar sua última bala diante do leão que se aproxima.

-Sr. Norman, por favor! – Às nove horas em ponto a secretária me rapta das lembranças e  nocautes  solicitando que a siga. Incontinenti iço o meu corpo de mais de 90 kg do estofado de couro e acompanho seus passos que seguem à minha frente.

Mesmo sendo pouca a distancia me era possível apreciar naquela moça a graciosidade dum corpo de cintura fina, rabo generoso e um grosso par de coxas. Talvez  não fosse exatamente moça na exceção da palavra e sim uma bela mulher na faixa dos 31 ou 32 anos. E ela seguia à frente deixando atrás de si a suavidade dum perfume adocicado, desfilando sua elegância no conjunto de saia e blazer em tons de cinza combinando com a blusa branca em voil e um lenço vermelho de seda que, contornando o pescoço sacramentava nela o enigmatismo das musas do cinema dos anos 50. Eu persistia observando o seu caminhar de glúteo acima, glúteo abaixo sem poder negar-lhe o estilo e a elegância das roupas de boa marca, equilibrando suas poderosas pernas em delicados sapatos de salto agulha.
Continuei seguindo a magia daquelas nádegas quando dobrando à direita atravessamos outro extenso corredor e no final dele ganhamos um luxuoso escritório de áreas parcialmente envidraçadas. E ao entrar na sala, sentado numa confortável poltrona estava um sujeito com um sorriso de Gugu Liberato. Eu seguia em sua direção observando com os cantos dos olhos o mobiliário local de arranjo quase futurístico, principalmente sua mesa de trabalho em aço escovado onde o tampo de  Blindex deixava visível as pernas da calça do seu terno azul marinho. Como sempre eu fora afeito a comparar coisas e pessoas, instantaneamente os detalhes da sala me fizeram recordar o escritório de George, do seriado "Os Jetsons" personagem dum antigo desenho animado da década de 60 onde o futuro dizia estarmos no ano de 2062 ou coisa parecida.

Evidente, ainda moleque à época imaginava se o futuro seria exatamente aquele apresentado pelos criadores da série e se haveria tanto progresso que nos fizesse voar naquelas pequenas naves espaciais que lhes eram o meio de transporte. Anonimamente sorri dessas recordações ao olhar para a enorme vidraça que, às costas do executivo completava aquele lado da parede. Impressionado com amplitude da visão e os prédios mais baixos que nos cercavam procurei vestígios de naves espaciais estacionadas do lado de fora, e outra vez sorri das minhas fantasias de garoto. Sim, fato, e novamente sorri anônimo, agora para uma  fase púbere onde imaginei  Sandra Brea sendo a minha namorada, pois me marcou a sensualidade de sua participação na novela "O bem Amado"

-Senhor Norman... - Outra vez fui acordado por uma voz que não era da secretária.

Retornei o olhar para o interior da sala e concentrei-me no homem que pronunciava o meu nome e prestei atenção na parede ao lado da vidraça, e ela ostentava um quadro com um diploma da FGV, trazendo logo abaixo uma placa retangular contendo letras negras e em alto relevo. Firmei as vistas e li com clareza:

                                                Jefferson Augusto Maneiro
                                                   Vice diretor executivo
                                                 Ficci Buk & Corporation

Agora eu sabia com quem falava, porém, para ser sincero nem supunha por que fora sondado para aquela reunião, afinal, mesmo sendo usuário eu era de fato num dos mais ferrenhos críticos do Ficci Buk e  seus métodos alienantes. A princípio Gugu me estendeu a mão e eu retribuí a um mesmo tempo que nos apresentávamos. Foi estranho sentir seus dedos apertando os meus, chacoalhando-os no ar como se fossem eles uma dessas britadeiras que perfuram asfaltos.  E aquilo me parecia ridículo e nossas mãos continuavam tremulando até o instante que, percebendo o descabimento soltou-se dos meus dedos.
A secretaria bonitona ainda continuava às minhas costas quando o sujeito num aceno de mão me pediu que sentasse numa das poltronas defronte à sua mesa. Entrei pelo vão de uma delas e escolhi a da esquerda por natural aversão a tudo que era de direita. Acomodado, olhava para aquele seu sorriso de animador de auditório quando gentilmente pergunta:

-Bebe alguma coisa, Sr. Norman? - Acomodava-me ainda  mais à poltrona e encaixando a bunda no assento, respondo:

-Sim, uma dose de uísque, por favor! – Pigarreio levemente puxando a bainha do paletó para que não entrasse Nas nádegas. Ele me olhou surpreso.

-Desculpe Sr. Norman, mas não temos bebidas alcoólicas aqui. Mas há águas e sucos naturais. Aceita um  de caju, manga... – Oferece solicito.

-Não, obrigado! Teriam água mineral com gás? – Ele me olha sem surpresa e consente num meneio de cabeça. Por instantes penso sobre a isenção de bebidas alcoólicas nos escritórios, e se não seria a falta delas a responsável por boa parte das idéias tacanhas e sem criatividade dos executivos – Concentro-me pouco mais na questão, e naquele caso eu tinha a certeza que sim.

-Dona Mariana, água com gás para o senhor Norman e suco de caju para mim. Traga a senhora mesmo, pois me pareceu muito atabalhoada essa nova copeira.

-Sim senhor! -  Ela responde, e se preparava para a retirada quando o sujeito lembrando-se de algo esquecido exclama se dando um leve tapa na testa

-Ah sim, por favor, nada mais que doze gotas de adoçante, certo? – Ele  instrui num tom afetado, afeminado, ao qual a secretaria acusa num discreto sorriso.

Outra vez olho para ele e dessa vez com certa desconfiança. Imediatamente penso em sua afetação e conjecturo se o afrescalhamento não era causado por uma austera educação na infância, a estreita convivência com irmãs, ou demasiadamente com as pessoas do sexo oposto. Talvez não fossem esses os motivos e nem houvera irmãs e amigas, e sim apenas uma juventude enclausurada e distantes dos divertimentos, desses onde a falta de permissão se sacramentam nos decretos matriarcais ao suporem o mundo como um Lobo Mau  abocanhando  suas incautas e inocentes crias. Evidente, por mais que não quisesse assim  tive que concluir  por ter conhecido alguns casos onde o idêntico o dano foi provocado pelo exagero dos mimos caseiros,  pais tratando seus fedelhos por “filhinho” mesmo que esses sujeitos já estivessem com barbas nos rostos e consultórios médicos para sustentarem.  Entretanto, mesmo que se aplicasse a Jefferson nada eu tinha a ver com esse passado que, só me servia apenas para divagações. Tão logo a secretária saiu à cata das bebidas ele voltou a sorrir como um dos animadores dos programas de domingo. Ainda incomodado pelo olhar exaustivamente cravado em mim retribui com discreto sorriso enquanto ele ajeitava o nó da gravata desvendando os motivos que fizeram eu estar presente naquela sala:

-Bem, Sr. Norman chegou ao nosso conhecimento que é um dos usuários mais descontentes com o Ficci Buk. E ter cliente insatisfeito é fato que não só entristece, mas  nos preocupa. Primeiro, é inquietante não estarmos atingindo o topo das nossas expectativas, já que rotineiramente o senhor escreve crônicas e pequenos contos dando conta do quanto estúpidos somos.  Segundo, porque gostaríamos de saber o que pensa exatamente e naquilo que poderia oferecer de colaboração para progredirmos, melhorarmos... e...

Estrategicamente ele fez a pausa quando fomos interrompidos pela secretária carregando a bandeja inox repleta de bebidas Assim que a moça colocou a peça sobre o tampo de vidro olhei no interior e lá estava o suco de caju e a garrafa de 500ml de água, além de dois copos de cristais e um par de guardanapos dum tecido alvo e encorpado. Com gestos delicados Mariana despejou parte da água em meu copo e depois serviu o chefe.
Retirei o copo e um dos lenços da bandeja e fiz careta ao sorver um profundo gole  que fez arder a garganta. Jefferson Augusto sorriu da minha feição e com alguma sutileza deu o trago inicial no suco. Eu apenas o olhava e continuava bebendo a água em pequenos goles a fim de evitar novas contrações faciais quando, suavemente  recolocou seu copo sobre o tampo no instante que a secretária batia em retirada a caminho da recepção. Agora foi a sua vez de pigarrear, e ele retomou o assunto interrompido:

-Sr. Norman, sejamos sinceros, não vê nada de bom em nosso Ficci Buk? – Olhei para ele com algum desinteresse e pensei no quanto aquela conversa poderia se tornar desgastante.  Pigarreei arranhando a garganta numa tonalidade exagerada, digamos,  até desagradável, e desembuchei:

-É, pois então, assim como estava falando Sr. Clerderson, acho que o Ficci Bu... – Mal iniciava a fala quando fui interrompido por ele. Definitivamente aquele era um sujeito insensível com as frases do próximo, porém dono de oratória obstinada:

-Não é Clederson, é Jefferson - Ele me corrige e depois continua - Sabe Norman, desculpe-me tê-lo interrompido, talvez ao ser leigo no assunto não perceba a dinâmica e a diversificação, o  fátuo dos interesses que envolvem tanto a corporação como os seus usuários. É mais que certo que não tenha se derramado às questões e por consequência não sabe o que e como pensamos. Porém tenha a certeza que o Ficci Buk não é apenas  um mero site de relações e entretenimentos assim como a grande maioria que existe por aí –   Foi nesta  parte do discurso que aspirou profundamente e continuou:

-Definitivamente Sr. Norman, não é assim que o tomamos, pois temos o Ficci Buk como o fator mais importante para a aglutinação dos internautas do mundo todo. Portanto já sendo o número um pretendemos nos tornar algo mais, um novo estilo de vida assim como foi o sonho americano, nos queremos interminável, algo que se assemelhe à revolução cultural dos nos 60, principalmente a mais fulgurante delas, a de Liverpool promovida pelos quatro Beatles - Ele disse num tom entusiasmado e eu sorri discretamente. Talvez o danado do Jefferson pretendesse ser a reencarnação tupiniquim de Brian Epstein, o lendário empresário dos quatro cabeludos. Mas pelo jeito ele não intencionava parar por ali, ah não... então continuou:

-E o por que queremos revolucionar é o que deve estar se questionando, não é mesmo Sr. Norman? - Ele insistia  nos argumentos e olhava para mim crente que causava grande impacto. Depois se assentou num tom de veemência sindical: Ora bola, muito, demasiadamente simples! Porque tanto quanto hoje naquele momento o que o jovem repudiou foi o arcaísmo e a prosaica forma de viver e pensar o planeta azul... - Foi justamente nesse outro ponto que Jefferson promoveu outro intervalo. Era estranho, mas agora algo em sua voz soava à Cássia Eller:

- Veja Sr. Norman, a contemporaneidade muito deve aos Beatles, pois suas influências são inegáveis e o processo iniciado nas terras da rainha ensejou mudanças, o mundo mudou de mãos, cedeu o poder, deu voz ao novo e articulou a juventude planetária em torno de seus ritmos e idéias... - Com Jefferson era sempre assim, dava suas pausas, porém jamais esquecia entusiasmo dos seus comícios. Eu olhava para ele e desta feita ele me pareceu impaciente ao perguntar:

-Sr. Norman assistiu a um filme dos Beatles chamado “Os reis do iê, iê, iê”?

-Não, não assisti - Devolvi de forma lacônica. Óbvio, eu tinha visto o filme, mas supondo que ele usaria os argumentos da fita com o intuito de me evangelizar, neguei.

Na verdade eu assistira o filme na televisão, e não somente esse, mas outros dos Beatles que, em minha opinião eram bem piores do que comentávamos. Certamente Jefferson jamais entenderia o fato de achar o tal do "Os Reis do iê, iê, iê" um filme pra lá de imbecil e que apenas se propunha a registrar hordas de garotas alucinadas, gritando e perseguindo os pobres diabos sem dar-lhes o tempo sequer de uma boa mijada. Mas, a impressão que tive era de que os produtores pretenderam demonstrar os excessos histéricos e o quanto eles nos tornam irracionais. E o festival de psicopatias não terminava ali, e então vinham outras cenas com as garotas ululando tal hiena, arrancando cabelos, perdendo saltos e sapatos em ruas e vielas, deixando partes de saias e vestidos em grades de ferros, só para terem a oportunidade de triscarem suas unhas vermelhas nos terninhos bem comportados dos rapazes, ou ao menos, nos vidros Ray-Ban das limusines que os transportavam...  Portanto ciente que Jefferson não veria com os meus olhos, achei melhor omitir.

-Pois é Sr. Norman! - Ele prosseguiu - É pena, pois perdeu uma obra de arte e o quanto eles influenciaram gerações, já que suas canções impressionavam pelo novo estilo musical, a verve em suas composições, algumas até de pura poesia, enquanto outras, num plano contestador inquiriam o conservadorismo dos costumes e valores daquele momento. Talvez não tenha percebido à época, mas era como se dissessem a nova e casta juventude; Hey! Vocês são os novos reis do mundo! Saiam por aí, pois o planeta é todo vosso! - Está certo, poderão alegar que nem tudo foi perfeito, pois havia o muro de Berlim, Mao Tse-Tung na China, e a Rússia, através de Cuba, apontando seus mísseis para o coração dos Estados Unidos, mas...

Foi nesse instante que se deu outro habitual intervalo em sua conversa, demorado dessa vez, reflexivo até.
Eu continuava olhando para ele e os olhos de Jefferson pareciam perdidos no nada - Jesus Cristo! O homem além de ser um fanático pela biografia dos Beatles, talvez estivesse louco, ou no melhor das hipóteses ainda mantido sob o efeito das ervas ingeridas nos seus tempos de FGV - Tive que concluir.
Eu  continuava olhando para ele e Jefferson permanecia calado, distante como um desses roteiristas que não lembram o próprio enredo.  Porém eu estava enganado, e ele ressurgiu como um desses pregadores que solapam o mundo, esses que jamais desistem de abocanhar fatias que não são deles. Ele era um bravo e seguia adiante:

-Sim, Sr. Norman! Eu sei o que deve estar se passando nessa sua mente de escassa informação - Disse para mim ajeitando seu corpo à poltrona, olhando-me com imponência, assim como se fosse o mago das premonições - Provavelmente, Jefferson sofria de prepotência e ansiedade - Pensei - O que eu gostaria era dar um safanão naquele sujeito, absorvê-lo das nuvens. Porém eu estaria fadado ao fracasso, pois Jefferson era um demente, apesar de que os dementes também não desistem.

-Então é isso! Fique atento, é tão fácil perceber Sr. Norman! O que pretendemos é causar a verdadeira revolução dos hábitos e costumes do século 21. Entende a plenitude das nossas intenções? Pode perceber a abrangência cultural que estamos nos propondo? - Ele persistia nos olhos arregalados e gestos bruscos no irrequieto conjunto dos braços e mãos.

Apreensivo e receoso que Jefferson pudesse ser acometido de algum infarto, olhei para ele e para aquela situação de gesticulação estapafúrdia, mas natural, e cheguei à conclusão que se ele fosse lançado ao mar e conversasse consigo mesmo nadaria tão lépido que alcançaria o Porto Galinhas antes do horário de almoço do dia seguinte. Entretanto, mesmo que pesando a pujança da retórica, suas colocações me pareciam confusas e incompreensíveis. Sim! Jefferson provavelmente fora lobotomizado, e agora pretendia desforrar, e aquilo me irritava profundamente. Claro, deveria ter me calado, ficado quieto, porém quando dei por mim as palavras já não pertenciam à minha boca:

- Bla bla bla! Que diabo você está falando, Jackson? Quanta perda de tempo com esses fatos nostálgicos, inclusive porque nem os vivenciou! – Ruminei - Só está te faltando me dar a ciência com voz de Heron Domingues do assassinato de John Kennedy  ou das mirabolantes jogadas do melhor time que o Harlem Globe-Trotters montou, e isso no Ginásio Ibirapuera em fins de 65.

Verdade! Aquele sujeito era mala e me dava nos nervos. E sei lá, mas os fatos dum passado morto e enterrado me eram o chute dum sapato 48 nas bolas do saco. Absurdos também eram seus bordões cheios das nove horas e uma linguagem executiva lastreada em argumentos que, funcionariam espetacularmente com os caras da sua tribo, porém, não comigo. Para ser bem realista, ele nem percebeu o quanto a minha resposta trazia de inconformismo, mas não se esquivou à minha nova confusão com o seu nome.

-Jackson, não. Espere aí! Jackson, não!... Jefferson Augusto, já lhe disse tantas vezes Sr. Norman, tantas vezes! – Respondeu com a feição fechada. Depois chacoalhou os dedos da mão direita no ar como num passar de mãos nas nádegas do vento, incentivando minhas observações. Foi o suficiente para entender o seu recado, e fui franco e honesto:

- Muito bem meu jovem! Já que te parece tão relevante a minha opinião, então aqui vai; Acho o Ficci Buk o maior incentivador e veiculador das boçalidades que boa parte dos homos-sapiens são capazes de produzir.
Sim, entendo que há e haverá exceções, pois também há vida inteligente, apesar de muitas delas se renderem à futilidade, mas também há sujeitos de fantástica criatividade, e tenha a mais absoluta certeza; estes jamais darão a face aos bofetes e nem farão marcha atlética à beira de precipícios.
Entretanto a vida inteligente não é regra, é exceção, pois ao criarem esse monstrengo foi como se abertas fossem as porteiras do absurdo para uma carente manada humana, ávida por espaços e meios onde possa sobressair e transbordar  inteligências, além, óbvio, os dotes artísticos...

Como assim? Não estou entendendo onde quer chegar - Ele me interrompe. Olho para ele friamente e reinicio:

-Calma rapaz, já saberá,  já que no frigir dos ovos a tua empresa deu luz a um descomedido teatro de horrores, e somos nós os seus melhores atores, e trabalhamos para vocês gratuitamente e fazemos do fantástico Ficci Buk algo onde se vive alguma verdade, mas há uma imensa parte de desajustados e enganadores, e o que  vejo sim são poucas e boas ideias, mas o que vinga são as boçalidades, e o todo se une e digladia entre si. Para mim o espaço que dão a cada um de nós, usuários, é a possibilidade de escrevermos um  livro que qualquer editor jamais publicaria, e então temos que escrever, escrever, pois não nos reconhecem, e aí nos vingamos, e não importa se sujemos as linhas com nossas merdas ou as deixemos incólumes ou perfumadas duma fragrância francesa...

-Ah, então o senhor é contrário à criatividade individual? - Novamente ele interrompe abortando meus pensamentos. Minha irritação se torna previsível.

-Hã? criatividade individual? - Devolvo. Provavelmente meus olhos devem tê-lo fulminado. Então continuo: Criatividade individual é o cacete! E vocês nada mais são que a  parte diabólica de tudo isto,! Então esmeram no layout e nas novidades tecnológicas, e nos hipnotizam e nos dão espaço para colocarmos fotos, nossas e de nossos parentes, carros, gatos,  cachorros, carros, fotos de nossos filhos isentos dos dentes de leite belezas, e todas outras que a criatividade individual consegue imaginar! Sim, talvez até haja alguma validade em  preenchermo nossa ociosidade com sentimentalismos e singelezas, porém não paramos aí, e extrapolamos e preenchemos novos vãos com imagens estapafúrdias e tantas outras aberrações, e ainda  insatisfeitos forramos nossas linhas do tempo com babaquices, as quais muitos julgam o top da criatividade, como dissessem para quem os leria:  Hey, veja como impressiono! Puderam alcançar a jogada? Conseguiram captar a genialidade do meu sarcasmo, e como posso ser mais descolado que vocês?
Sim meu ami....

-Mas, mas - Novamente ele aborta as minhas falas. - Foi demais para mim.

-Mas, mas...é o cacete! - Ele se assustou com minha reação e se calou. Continuei: E para mim são essas as fatias maiores deste bolo chamado Ficci Buk, e vocês estão furtando a vida das pessoas, já que  navegam pelo teu site por horas a fio, sem almoço, janta ou mesmo um tempo para o namoro ou uma boa trepada. Uns até deixam de trabalhar e outros até perdem o emprego, e é isso que lhes devemos, pois ao criarem esse troglodita infame devem ter pensado em nossas carências e nas porções do ego que também nos compõem. Entretanto meu jovem, vacina de graça só é dada em posto de saúde, portanto o Ficci Buk foi criado com a finalidade de ser um negócio rentável, hoje aliás, mega milhardário. Portanto moço...não me venha com essa história de que para vocês o que importa é a interação. pois é mentira deslavada, é balela da grossa, é poesia de anjo que faz o demônio gargalhar.

-Como assim Sr. Norman? Outra vez não estou compreendendo onde o senhor está pretendendo chegar. Não nos consideramos um.. negócio - Ele justificou-se, mas não com tanta firmeza. Evidente, o Ficci Buk tinha as suas espertezas, e aquele era o momento de espetá-lo

-Como assim.. eu vou dizer. Ao iniciarem o site vocês bancavam gratuitamente a totalidade das publicações dos usuários nas páginas dos amigos. E agora? Agora simplesmente não bancam mais, já que os meios de comunicação dão conta que estão restringindo o acesso às informações, propondo valores para aqueles que, não vivendo longe dos holofotes queiram ter suas patacoadas lidas por maior número de pessoas. E se assim o fazem é na suposição que este planeta caótico e absurdo está cheio de otários e a carência da raça humana é tanta que não prescinde da atenção, nem que seja necessário pagar por ela. Enfim, vocês são uns belos aproveitadores...

Neste momento a pausa foi minha, pois realmente não tinha a intenção de continuar aquela conversa inócua. Claro, talvez eu tivesse sido ranzinza e inflamado como são esses sujeitos que discutem o time do peito nos botecos das esquinas - Paciência - Porém, Jefferson não desgrudava os olhos de mim numa expressão aturdida, talvez estivesse arrependido de propor a entrevista, e a qual pensei que pudesse declinar algum convite de emprego. Sim, e por que não? Talvez a análise detalhada do meu perfil ensejasse o envio do e-mail onde dizia que, em aceitando, deveria agendar dia e horário para a reunião. Ali, ainda constava o nome e o telefone da pessoa que deveria ser procurada. E foi o que fiz, e falei com dona Mariana, apesar de não me fornecer qualquer informação sobre os motivos do convite.

E assim ficamos lá olhando um para o outro sem saber a razão de comparar aquele sujeito dos seus trinta e tantos anos ao Fernando Collor de Melo, além das mencionadas semelhanças com Liberato e Cássia Eller. Talvez tenha sido a sua compleição atlética adquirida em academias, ou o mesmo penteado de cabelos repartidos ao meio. Sim, talvez tenham sido aqueles os fatores. E com Jefferson me levando a Collor foi impossível não relembrar a delirante atuação do ex-presidente “daquilo roxo” e de quanto o brasileiro sofreu humilhações provocadas por ele e seus asseclas. Evidente, se há palhaços no Poder Central, no Senado, nas Câmaras, e por aí afora, por que não estender a estupidez para um plano mais globalizado? Então deixe vir esses sites de relacionamentos como o H5, Badoo, Orkut, Ficci Buk, certamente os dois últimos os gigantes do ramo. É óbvio, o Orkut está em baixa, pois talvez tenha estagnado no tempo, algo comparável a hoje como se Hitler e seu bigodinho mofado estivessem zanzando pelas dependências do McDonald á procura de alguma McOferta.
Já o Ficci Buk não, o Ficci é moderno, jovem, interface gráfica avançada e, de tal forma que, resguardadas as devidas proporções mais lembram os efeitos especiais de George Lucas para os filmes de Steven Spielberg. Sim, não discordarei dos fatos, porém o Ficci não desmotiva e jamais desmotivará a idiotia que pode haver nas pessoas, pois opostamente ela incita e muitos de nós adoramos parecer imbecis, se agarrando uns aos outros como as criaturas siamesas.

E deixando o Ficci de lado e retornando às vacas gordas da política nacional, creio que a grande massa se cansou de parecer “politicamente correta” num tempo que ser “politicamente correto” traduzia algo aceitável e compreensível. E não me venham falar em partidos conservadores, progressistas ou radicais. Muito menos em agremiações de direita, esquerda, centro, pois ao que me lembro jamais vivi de moderações, e fui um esquerdista ferrenho num tempo onde a jingle “Olê olê olê ola, Lula, Lula” e aquilo me emocionava e arrepiava os pelos do meu saco. Sim, na primeira eleição o barbudo perdeu para Collor e as vergonhosas montagens da emissora do Marinho. E eram verdadeiras as aspirações do povo e os anseios por ética e decência na política, tanto que não nos perdemos numa nova oportunidade e elegemos o “companheiro”.  E naquele momento o país havia sido entregue para um homem do povo, operário, um líder carismático e aglutinador das massas, ele sim talvez o prometido Messias, o cirurgião a extrair os nódulos malignos da nação, impondo ética, ceifando a canalhice e a corrupção. Sim, foi isso, pois estávamos cansados dos erros, das roubalheiras e dos falsos milagres brasileiros como aquele fabricado à década de 70 por Delfim Neto sob o mando dos generais da ditadura que, praticamente levaram o país ao estado de insolvência. Entretanto e mesmo com o que parecia novo e esperançoso não extirpamos os problemas, ao contrário, logo, o governo da estrela solitária se assemelhou a todos os outros apesar dos favoráveis números populares à aceitação do alto mandatário.  Portanto hoje não tenho qualquer ilusão política, nem por nomes, nem partidos, e acredito que possa haver exceção aqui ou acolá, todavia o todo é asqueroso, o meio é canceroso. E agora não me bastassem todas as mentiras ainda vêm esses sites de entretenimentos, alienadores e que mais se assemelham ao um espetáculo de circo montado para uma tarde de domingo, e excretam óticas anarquistas sobre aquilo que imaginam o que é e como é relacionar-se, entreter-se, divertir-se, enfim...

-Psiuuuu, psiuuuu! Sr. Norman, em que galáxia o senhor está? – Ele estala os dedos - Há mais de dois minutos o senhor está aí sem falar nada e apenas fitando o lado externo das vidraças– Concluiu num olhar que parecia dizer; Hey velhinho... venha para o pátio tomar o recomendável sol das dezessete horas! - Eu olhei pra ele e sorri, pois provavelmente também deveria me achar um boçal.

-Oh, queira me desculpar, Anderson! Perdi-me em algum lugar do passado - Justifiquei-me num sorriso que tentava ser infantil, mas que o sabia cretino.

-Anderson não, é... Jefferson, por favor, Sr. Norman, é simplesmente... Jefferson - Mais uma vez me chamou a atenção, irritado, óbvio. Depois amansou a raiva e continuou: Mas... em que pese essa sua visão severa quanto a nós, eventualmente não encontra em nosso site matérias que lhe despertam interesse?   Não tem por hábito usar o “curtir” para coisas postadas por seus amigos, em suas comunidades. Por acaso o senhor "curtiu" algo no dia de ontem, por exemplo?

-Não, nenhum! –

-Bem... e na última semana?

-Também não. Quase, mas também não!

-Pelo amor de Deus, Sr. Norman, e no último mês?

-Never! Ai nóti moli nóti!  Contudo a fase pior foi a do mês retrasado.

-O que houve no mês retrasado, Sr. Norman? - Ele perguntou num ar de surpresa.

-Bom...  É que fui obrigado a ler um monte de mensagens de Natal, algumas delas acompanhadas de fotos de Papai Noel. Deve saber como são essas imagens fabricadas em estúdios que usam o Photoshop. Havia sim uma ou outra interessante tal qual a do sujeito que com as rédeas nas mãos se postava dentro do trenó guiando quatro grotescas renas de isopor.  Evidente, apesar do ridículo havia algo de positivo na barba do sujeito, já que parecia ser natural...

-E o senhor acha desestimulante receber votos de feliz Natal ou Ano Novo através do Ficci Buk? – Ele interrompeu outra vez, drasticamente. Eu percebia a raiva em sua voz.

-Bem, Wellington, pra te falar a verdade... acho sim!  Mandaram aos montes, assim, como se fossemos um bando de alienados, como se a felicidade e as realizações estivessem batendo á nossa porta, e que seria apenas necessário pedirmos para que entrassem e as servíssemos com um bom café passado na hora, para aí sim concretizarmos o negócio! – Retorqui impaciente – E outra... antes que o senhor me inquira sobre o que “curti” nas semestralidades passadas, antecipo; No último ano, cinco vezes. Apenas vinte vezes devo ter clicado no maldito “curtir” inclusive mais da metade desses cliques foram em coisas postadas por meus sobrinhos.

-Poxa Sr. Norman! Além de o senhor ser... como dizem? Ah, sim, um osso duro de roer, o senhor insiste em chamar-me por um nome que não é meu; Não é Wellington, é... Jeffer... Ah, deixa pra lá!

-Desculpe Jonathan, ops, quer dizer, Jefferson – Dessa vez eu o sacaneei só para vê-lo irado. E irritado ele foi grosso e mal educado

-Sabe Sr. Norman... Por acaso o senhor tem feito periodicamente exames em sua próstata?  – Fulminou à queima roupa com aqueles seus braços de nadador.

-Não, por quê?  Seriam importantes estes exames? - Inquiri surpreso. Ele apenas me olhou e riu.

Percebi o tom de galhofa na pergunta, e honestamente, aquilo me deixou emputecido. Ainda mais porque houve falta de respeito para minha pessoa. E aquilo me abalou e tanto que, após alguns instantes eu procurava traduzir as entrelinhas da questão colocada. Seria alguma metáfora?
Sim, sendo ou não, não consegui ir muito longe à análise, porém duas alternativas me pareceram inevitáveis;
a) acho que o fedelho engomadinho acreditasse que me tornasse mais receptivo à estupidez após uma boa enfiada de dedão no rabo, ou;
b) que meu estado prostático tinha alguma coisa a ver com o senso de humor

 Ele olhava para mim e eu podia sentir o regozijo estampado nos olhos e nos cantos sorridentes de sua boca de lábios finos. Evidente, ele se tornou para mim a zombaria e agora eu podia ver-lhe a fileira de dentes alvos escancarando numa gargalhada cheia de viadagens, diga-se de passagem.

-Me perdoe Sr. Norman, foi apenas uma brincadeira com o senhor, um ato de relaxamento de espírito – Concluiu sem perder o sorriso cretino no rosto. Definitivamente ele tinha procurado, e como dizem; Quem procura... acha.

-Puta que pariu seo moleque afrescalhado e sem educação. Se há alguém aqui que tem cara de gostar dum grosso dedo urológico és tu e não eu! – Vociferei ao me levantar da poltrona.

De imediato ele pegou o interfone e ligou para a secretária:

-Dona Mariana, por favor, peça para a segurança vir à minha sala!

-Ops! Não precisa de segurança não paspalho! Sei o caminho da saída – Disse-lhe ao me dirigir para a porta de sua sala.

-Cancele a segurança, dona Mariana. O Sr. Norman já está de saída.

Novamente atravessei o corredor e ao final dele encontrei a recepção. A secretária me aguardava, e parecia preocupada.

-Desculpe Sr. Norman. Sei o que deve ter passado lá dentro com aquele sujeito petulante. Mas... ele é assim mesmo, é metido à gênio.

-Não... não se preocupe com isso dona Mariana. Está tudo bem! – Disse a ela já me dirigindo para a porta de saída do conjunto.

-Sr. Norman, Sr. Norman!  - Fui chamado por ela. A voz era bonita, afinal, ela era toda bonita.

-Sim dona Mariana? – Respondi olhando para os seus olhos. Repentinamente eles me pareceram tímidos assim com ela.

-Então, depois que o pessoal da análise de clientes selecionou o seu perfil e nos passou, tomei conhecimento do senhor e daquilo que escreve. E vou ser sincera; Estou fascinada! Escrevo alguma coisa, poesias, porém não tenho coragem de postá-las. Criei um blog, mas lá só há citações de Fernando Pessoa e Clarice Lispector. O senhor se importaria se marcássemos algum dia para tomarmos alguma coisa e discutirmos um pouco de literatura e desse seu mundo literário? – Perguntou-me num sorriso apaixonante. Olhei para ela com simpatia, Mariana poderia ser minha filha, mas o fato dizia que não era.

-Claro! Vamos sair um dia desses e falaremos sobre – Devolvi solícito. Foi o momento que ela retirou algo do porta-cartão acima de sua mesa e me passou. Era seu telefone residencial e o número do celular.

-Feito, dona Mariana! Ah, posso dispensar o “dona”? – Perguntei num galanteio. Sim, eu era velho, 59 pra ser exato, mas não imprestável.

-Claro, Norman! Fique à vontade. Como vê, já aboli o “senhor” por minha conta –
Respondeu com um sorriso que continuou me fascinando. Concretamente, Mariana era um doce, uma joia.

Despedimos-nos com um “Até” num caloroso aperto de mãos. Estava mais que na cara que algo iria rolar.
Ao descer pelo elevador pensando em Jefferson deixei escapar o pensamento em sussurradas palavras.

-Não falei que no Ficci Buk só da louco? – Expressei.

Claro, era a minha reação ao pouco entender o interesse daquela mulher por um sujeito tão limitado como eu. O ascensorista de talvez 27 ou 28 anos ao ouvir o meu murmúrio olhou-me desconfiado, pois deve ter pensado que estava interagindo com ele ou com um dos faxineiros do edifício que limpava o espelho ao fim da cabine, afinal, havíamos os três em seu interior

-É sim sinhô - Me respondeu o faxineiro diante o silêncio do colega que comandava os botões. Sorri para ele e o funcionário continuou: -Óia...outro dia mesmo o ofsbói da constutrora do séutimo andar me falou que esse tal de feicibuqui é o fiofó do capeta! – Concluiu à queima roupa aquele sujeito de uma simplicidade cativante e num sotaque norte do país. O ascensorista riu veladamente, talvez para ele não fosse novidade do seu colega de trabalho.

Chegamos ao andar térreo somente os três e meu estômago doía em virtude das contrações provocadas pelo surto de gargalhadas que enfrentei por quase quatro andares enquanto descíamos.

-É isso aí garoto! – Confirmei ao me despedir do faxineiro com tapinhas nas costas. Ao que prontamente respondeu:

-É isso aí gêntis boa! Estamos às órdis!  O criente tá sempre ca razão! - Ele também se despediu com um sorriso e a demonstração inequívoca de já assimilar parte dos hábitos e maneirismos dos paulistanos.

Eu ainda sorria ao entrar em meu carro.



Copirraiti20Fev2013
Véio China©


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