quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Véio China...um traidor!


Eu estava ansioso. Aliás, mais que ansioso...nervoso. Era a primeira vez que meu personagem marcava um encontro inadiável. “Precisamos ter uma conversa séria. Aguardo-te no BDE às 21hrs –Véio China” – dizia a mensagem em meu celular.
Estranhei. Seria dinheiro emprestado? – me perguntei. Não não! O China sempre foi ponderado, econômico. Nunca fez questão de casa em local nobre, apartamentos com suítes, viagens pras Bahamas, carro do ano, e todas essas coisas burguesas. Bem...o que poderia ser? Talvez pretendesse juntar os trapos com alguma dona e queria ver se eu bancava a sua despedida de solteiro – Seria isso?  Não não! Acho que também não. O Veio jamais foi chegado nessas frescuras de firmar rabo de saia.

Bem, o que sei é que aquilo martelou em minha cabeça no passar do dia. Claro, em vista a seriedade da intimação lá estava eu no BDE às 9:20hrs, em ponto. Entrei e vi alguns bebuns espalhados pelas mesas bebendo cervejas, caipirinhas, copos de vinho enquanto escreviam. Procurei o China com os olhos e o vi sentado solitariamente numa mesinha de canto mais ao fundo do bar. A penumbra do local combinava com seu rosto sombrio e vincado.

-Porra! 9:20 não são 9:00hrs! – Esbravejou ao me ver e olhar pro seu relógio de pulso.

-Desculpe Veio, me atrasei porque tive de deixar a Sara em casa. O carro dela quebrou e..

-E eu com isso, merda! Ela que tomasse um taxi! –  Mal humorado cortou

-Ta bem! Desculpe! Desculpe! – Realmente ele não estava com feição boa.

Olhei para ele e me deu certa pena. Veio China era sujeito solitário, e isso naquela idade não era bom sinal. Vivia as custas de uma modesta pensão paga pelo governo. Eu perguntava aos meus botões o como ele se “virava” com tantas responsabilidades. Fora o aluguel do quarto, havia a despesa com alimentação, vestuário, remédios e outras necessidades. Ele me flertava com certa impaciência.

-Quer um trago? – Ele perguntou. Confirmei com a cabeça. Ele chamou o garçom.

-Uma vodka pro moço - Pediu com ar sisudo enquanto bebia do seu drink.

Assim que chegou eu a emborquei metade num único trago. Aquilo desceu queimando como se um dragão cuspisse bolas de fogo no meu esôfago. Era uma bebida horrível, e ele percebeu pela minha feição de asco ao estalar a língua.

-Então! Isso é pra você ver. É essa porcaria que você me faz beber, Sputnik, uma vodka ordinária,  de 5ª. – Ele suspirou erguendo os braços lateralmente à cabeça para soltá-los com enfado.

-Caracas, China! É ruim mesmo! Eu não fazia a menor idéia – Tentei me desculpar

-Sim.... E isso sem contar os bloods que me faz engolir, um após outro, todo o santo dia – Se lamuriou.

-Uai! Mas, quais são os problemas com teus bloods? Acho que eles te dão um ar cult, de coisa underground, descolada, um estilo eclético - Devolvi com certa empáfia.

-Cult?  Cult, é? Você só pode estar louco! – O bloodmary que você me faz beber é  com puro-purê de tomate  Cica! A pimenta é de vidro, e da Jimmy, ainda! – Ele alardeou.

Bem, ele tinha toda a razão. Na verdade um bom blood se faz com vodka de qualidade, com legítimo suco de tomate. E se for pra ser de primeira é indispensável algumas gotas de pimenta ao nível da Tabasco,  americana – Concordei em pensamento.
Novamente ele emborcou um longo trago. Sua feição recendendo desesperança se estendia aos sulcos do seu rosto, agora mais talhado que da última vez que o vi. Recolocando os olhos em mim  perguntou conciso:

-Ainda ta de rolo com a Sarah?

-Sim, por quê? – Estranhei a pergunta

-Por quê, por quê? Porque a Sara é uma garota sensível, leal, amorosa, decente. E essa somatória de atributos deveria deixá-la à léguas de você. – Respondeu com certo aborrecimento

-Véio, vai me dizer que você não gostaria de ter uma mulher assim ao seu lado? –

-Claro! Mas....sem chances! – Retorquiu ferino.

-Sem chances, por quê? – Espantei-me.

Ele me olhou seriamente como um pai austero e infeliz com as notas no boletim escolar do fedelho de 10 anos.

-Por quê, cabeça de pudim? Simplesmente porque você só me faz relacionar com rampeiras! Putas! Vgabundas! Em todos esses malditos anos que estamos juntos foi unicamente o que você me deu....tranqueira! – Berrou. Seus olhos faiscavam.

-Mas...Véio, isso é bacana! Veja, reservei para você o submundo, os esgotos e todos os tipos de miseráveis existenciais. Isso é totalmente underground – Exclamei confiante e continuei:

-Perceba Véio. Empregos péssimos, pensão de governo, vodka barata, quartos de pensão fedendo à barata, e. principalmente...esses malfadados relacionamento com as prostitutas, é a mais pura vivência underground, um subterrâneo de excentricidades  fadado à poucos. –

Discursei inflamado.  Incompreensível era o fato dele não perceber a importância da sua história, do destino que lhe dava.

Ele nada ouviu. Ele não estava mais ali, aliás, a sua atenção não estava.  Olhei para onde se dirigia o seu olhar e encontrei o destino. No balcão do bar duas altivas  mulheres loiras e balzaquianas. Afirmei o olhar e elas pediam informações ao Niko, o barman. 
Compreendendo o que elas queriam apontou o dedo na direção e elas vieram em ao nosso encontro. Ao chegarem próximas eu pude sentir o perfume do Chanel 5 delas; Certa vez eu tivera um caso com uma grã-fina e distinguia a fragrância. E vinham num andar altivo, coisa de classe, e  isso podia ser comprovado naqueles trajes de gabarito, uma,  inclusive,  portava um estola de pele e a qual eu não reconhecia. Talvez  fosse de lontra.

Já em nossa frente pediram licença para sentar.  Educado, concordei.
A mais bonita delas era um perfeito desfile de jóias que reluziam diamantes e platinas  em seus anéis, pulseira, brinco e colar. A outra, quase tão bela quanto portava uma pasta de couro, executiva, provavelmente de antílope. A grife era visível;  Christian Dior. Foi a da pasta executiva que perguntou, dirigindo o olhar ao China:

-Por favor, o senhor é o Veio China?

-Sim! – Respondeu ele naquele seu jeito rude, seco.

-Senhor China, conforme combinamos por telefone, trouxe  a Claris Lisprevitor. E eu sou a Ludmila Zohen, sua secretaria- Disse olhando carinhosamente  para a amiga.

-Ô, que honra dona Claris! – Disse o China ao pegar-lhe a mão e beijá-la com sofreguidão.

Caraça! Claris Lisprevitor? Eu sabia que já vira aquela mulher! Claris era simplesmente a mais famosa escritora nacional. Fantástica autora, Claris era um fenômeno e tinha seus romances publicados em diversas línguas, verdadeiros best-sellers em mais de duas dezenas de milhões de exemplares vendidos. Era inacreditável, mas la estava ela em carne e osso sendo beijada por aquele escroto. Inclusive, pela sua forma de sorrir parecia ter gostado do malandro. O velho afastou os lábios das suas  mãos sedosas e me apresentou:

-Claris, esse é meu autor, Leduard Pavone! – Ela sorriu discretamente para mim.

-É já ouvi falar – Disse sem grande entusiasmo

-Sr. China podemos ver os papeis agora? – Perguntou Ludmila com ares de eficiência profissional.

Heim? Mas que merda era aquela de “vamos ver os papéis”? –  Aquilo me assustara.
Foi naquele momento que o Veio pediu licença á elas para ter um particular comigo.
Elas assentiram e rumaram para o balcão. Ainda olhei para elas e vi o Niko tirar da prateleira um Jack Daniels; Era lendário o fato de Claris Lisprevitor  ser fanática por ele. Inclusive li várias  reportagens nessas revistas de fofocas dando conta dos seus escândalos e porres homéricos.
O velho percebendo a minha aflição  pediu-me para sentar. Ele transpirava e eu demasiadamente confuso.

-Garçom! Duas Sputnik, por favor – Ele pediu ao Norberto, o garçom mais antigo do Bar.

Assim que as bebidas chegaram tragamos em duas talagadas.  Provavelmente ela deva ter queimado tanto como a outra vez, mas nervoso, nem me apercebi. Estava assustado com aquilo tudo. Foi então que o China tocou a mão em meu ombro e falou:

-Pavone, te chamei aqui hoje para darmos um fim à relação profissional autor/personagem, Pavone/Véio China. Fui procurado pela Ludmila há coisa duns 10 dias. Ela disse que a Claris adorava o estilo do Veio China. Inclusive já sabiam que a marca  “Veio China” estava registrado em meu nome, portanto direito autoral  meu.
Eu não te falei na época, mas há muito tempo eu registrei a marca, pois te conhecendo, não me foi difícil supor que me venderia por qualquer 10 contos de réis. E assim, diante do fato ela se mostrou interessada e negociamos cifras, percentuais e outras relés questões mercadológicas.

-Mas, mas, mas.... – Eu não conseguia formar qualquer raciocínio diante do que aquele velho me falava. A garganta secara por completo, não havia saliva em minha boca.

-Veja Pavone. – Ele continuou. – Com Claris vou ser um personagem de filigranas. É bem verdade que vou continuar permeando esse mundo erótico, porém com filigranas. Vou vivenciar o Jet - set internacional, transar com as mais descoladas atrizes, cantoras internacionais. Inclusive terei um caso com uma famosa Secretaria de Estado. Claro! O meu nome será o único há não ser ficcional. A idéia de Claris é internacionalizar a marca “Veio China”. E daí e se tudo correr bem, serei marca de perfume masculino, estarei estampado em invólucros de camisa de Vênus, marca de xampu anti-caspa, boneco inflável com pênis de 22 centímetros, e outra infinidade de produtos que atendam as necessidades do mercado. O meu acerto com ela foi de 50% para cada parte,  em tudo!

-Mas, mas, mas... –

Era inacreditável. Aquele velho desgraçado me enfiara uma adaga pelas costas. E ela doía, doía muito, e sangrava, sangrava, e o sangue escorria de mim ensopando a toalha engordurada da mesa e pingava pelas beiras e como cachoeira mergulhava na direção do piso. O velho era um traidor, o maior  de todos, maior até mesmo que Cleópatra.
Definitivamente aquele sujeito era o maior filho da puta deste mundo!

Inconsolável eu olhava para os bicos dos meus sapatos esfolados enquanto o China sinalizava para que elas voltassem para nossa mesa. Elas chegaram e sentaram-se  - “Corja de Safados”  -  Pensei comigo mesmo.  E além do mais a sorte deles é que eu nunca fora um sujeito de escândalos; talvez essa minha parte covarde e fraca  fosse suprida pela coragem que eu  impregnava no meu personagem. O Veio China,  esse sim em minhas mãos jamais teve medo de algo –  Concluí aturdido.
Diante um sinal afirmativo do velho a fina secretaria abriu sua pasta, esparramou os papéis por sobre a mesa, separou alguns e iniciou a leitura. Primeiro discorreu sobre publicações de livros com o China sendo o protagonista, depois adentrou às questões dos produtos que levariam a marca do velho. Por fim referenciou os  percentuais –

-Para, Claris Lisprevitor caberá a participação de 50% no lucro líquido dos negócios - Fez uma breve pausa e continuou - Para Veio China,  25% do lucro líquido.  E aqui cabe a ressalva......


Epa! Mal começavam a sociedade e já estavam passando a perna no velho? Aquilo me revoltou e eu a interrompi.

-Cambada de aproveitadores! 25% jamais serão iguais à 50% ! – Vociferei alto. Já bastava um lesado naquela história. Pra que outro?

Elas riram. O velho gargalhou até perder o fôlego. Eu não entendia nada. Assim que as contrações desistiram do seu abdome forrado de banha e  flácidez  Ludmila continuou:

-Caberá à Leduard Pavone, 25% do lucro líquido dos negócios. Esta aqui o cheque de  R$ 200 mil  para  algumas necessidades iniciais que tenham. Podemos assinar agora, senhores?

Por Jesus Cristo! Eu me tornara um milionário em menos de 40 minutos e  três doses de vodka? Ah, eu sabia que aquele velho jamais me deixaria na mão. O China era o cara mais fantástico do mundo! Talvez eu tivesse alguma participação  pois eu o construíra um velho, sacana, mas, um sacana de princípios.
Selamos o nosso acordo com apertos de mãos e abraços, exceto o China que tascou um beijo melado no perfumado rosto de Claris Lisprevitor . Sorríamos uns para os outros enquanto Ludmila e os seus peitos 46 me olhavam de forma convidativa.

-Garçom, por favor, Jack Daniels pra todos!  E por favor, traga a garrafa e deixe outra de sobreaviso. Rompemos com a miséria!  – Bradou o velho devasso.

O mundo nunca me parecera tão belo. Eu olhava pra todos aqueles bêbados, pros escritores   e torcia para que tivessem a mesma sorte que  a minha ou que se ficassem  próximos. Outras coisas me invadiam os pensamentos naquele instante; A minha pequena e embolorada kitchenette da Pça da República era carta fora do baralho.  Que tal um 3 dormitórios com hidromassagem  no Pacaembú?  Ah sim! O carro também. Eu daria o meu Gol 95 com rodas de liga leve pro Luis, porteiro do meu prédio. Eu sempre me amarrara naquela Van que ostentava uma enorme e empafiosa estrela metálica um pouco abaixo do capo. Queria-a de cor negra tal qual os olhos de Sarah ou provavelmente como algumas sensuais lingeries  “Victória Secret”  de Ludmila Zohen .

Copirraiti Dez2010
Véio China©



3 comentários:

Jota Brasil disse...

Gosto dos seus contos pauliceados hehehehe....me fez lembrar um tempo onde eu ia pra capital, ficava num apartamento de um amigo na Barão de Limeira. A gente aprontava mil e uma peripecias. Mas as vezes não piava muié, nm nada pra fazer e a gente ficava na janela zoiando. E num é que volta e meia nois pegava uns casal fornicando de janela aberta?
Que engraçado como a literatura faz a gente viajar em lembranças e imagens que não tem nada a ver...

Zulmar Lopes disse...

Véio, conforme o prometido, li antes de 2011.
O que chama a atenção logo no começo do conto é a mudança de foco narrativo. Fiquei me perguntando: quem seria o personagem que narrava as aventuras do China? Rs. Diálogo saboroso entre criador e criatura que se fundem a ponto de haver dificuldade em dissasocioá-los. E o conto flui, de surpresa em surpresa para culminar numa traição à moda Viúva Porcina: Véio trai Leduard sem nunca ter traído.

Anônimo disse...

Acho que meus proximos rebentos vâo se chamar Cica e Jimy.