quinta-feira, 9 de junho de 2011

Subterrâneos

-Paizinho, sobreviveremos a Junho? – Ela pergunta

O senhor Onadia a olhou enquanto pensava sobre o que poderia ser compreendido nas divagações da garota. Ele sempre soube que as perguntas eram mais difíceis que as respostas, ainda mais para ele, que andou bons pedaços da vida metido em situações que jamais se equacionaram.
De toda forma se recordou que ela surgiu numa bela manhã de Maio. Naquele dia a brisa acariciava o seu rosto enquanto o sol e as cores das ruas tornavam a vida com algum sentido. O sorriso da garota resplandecia e iluminava parte dos seus subterrâneos. Subterrâneos que sempre foram a sua vida. Não que ela fosse plena em amargura, tristeza, porém, insensível, não dimensionando as emoções que o cercavam, apenas obrigando-o a se conformar com a monotonia excessivamente linear.

-Paizinho, sobreviveremos a Junho? – Ela insistia

A pergunta, pelo tom, travestia-se dramática e desafiadora, mas ele não quis decepcioná-la. Realmente não tinha a certeza se sobreviveriam a Junho. Por milagre estavam superando aquele Maio, mesmo que creditando-o a uma força superior.
Sim! Sabia também que milagres aconteciam, e mesmo que raros, numa proporção de um por milhão pretendeu supor que ele poderia ser essa chance. Todavia, calejado, jamais contava com a sorte e não desconhecia que as possibilidades daquele relacionamento dar certo eram as mesmas de na marca do pênalti tentar fazer o gol do campeonato chutando uma bola de concreto.

Nela, um ar jovial e as impacientes mãos na cintura tornavam-na algo peculiar. Tão incisivo quanto a pergunta, em seu rosto sobressaia a maquiagem de tonalidades fortes, azul e algo rosáceo. No corpo a justa calça de jeans delimitava as formas perfeitas e um bumbum empinado. Ele apenas continuava a olhando e sorrindo com ternura. Ela tinha idade pra ser sua filha. O que ela poderia ter visto ou sentido por ele?
Em todo o caso tudo estava ocorrendo da forma que imaginara. Sabia que mais cedo ou mais tarde surgiria nela algum outro interesse que revigorasse as batidas do seu jovem coração. Ele podia pressenti-las. Via no olhar daquele rosto quase juvenil e ainda sem as marcas do tempo toda a esperança que era de direito aos jovens, apesar da pouca experiência.
Nada, absolutamente nada fugiu-lhe ao script ou se furtou ao seu comando. Tudo era tão óbvio e previsível como naquela manhã de sol quente e de ruas coloridas quando se apaixonou por aqueles enormes olhos castanhos.

A garota se impacientava pela resposta que não vinha. Então ele levantou os braços e os deixou cair desleixadamente ao pronunciar, sereno:

-Filha, to me guardando para quando o carnaval chegar!

Ela o olhou surpresa. Chico Buarque também o olharia. Ambos jamais o compreenderiam. E Chico, principalmente, talvez até por jamais se ver metido em questões daquela ordem. Contudo e ao fim ele sabe que o senhor Buarque teria sorrido e lhe pagado uma cerveja estalada antes de voltar a cuidar dos seus próprios problemas.

A garota permaneceu atônita com a conclusão. Além do posicionamento não lhe fazer sentido, era ela necessariamente jovem a ponto de não perceber que era nela que as respostas se acomodavam.

E, o senhor Onadia continuou a olhá-la em seu desconforto. Ele sabia que os subterrâneos o aguardavam ansiosamente e com certa saudade. Talvez, numa relação quase que sado masoquista, ambos, ele e as profundas colunas de si se apegaram um ao outro. Era passada a hora de retornar. Ele compreendia perfeitamente que ficara tempo demais exposto ao sol, e que isso poderia matá-lo
O senhor Onadia encaminhou-se para o pequeno bar anexo à sala e de la retirou dois copos e os completou com Jack Daniels. Para ele sem pedras de gelo, para ela, três.
À princípio tocaram seus copos e depois ele içou os braços no nada e brindou:

-Tim tim, meu caro Chico!

Após o brinde inusitado ele persistiu sorrindo enquanto a fantasia em sua mente desvairava a ponto de vislumbrar ali o Sr. Buarque com cara de bons amigos, mesmo que sem entender os seus motivos. O senhor Onadia continuou sorrindo daquele seu jeito, como se no momento pudesse alçar Chico e dar-lhe um abraços dos mais amistosos.
Ao fim do drink os três entenderam que era a hora do adeus. Toda a ternura no mais doce dos seus beijos selou a despedida. Em seguida a musa de Maio choramingou por alguns instantes e se foi. Não havia o amor, é claro, mas toda despedida causa algum tipo de dor. Eles o sabiam.
Sozinho agora, o senhor Onadia serviu-se de mais uma das várias doses do uísque que tragaria naquela noite de alguma tristeza. Era o processo de retorno para dentro de si por atalhos e rotas que somente ele conhecia.
Seus subterrâneos se mantinham risonhos, dolorosamente.


Copirraiti 09Jun2011
Véio China®

Um comentário:

Jota Brasil disse...

Véi, véi...
Tu e teus contos ... delicia de literatura.