terça-feira, 14 de junho de 2011

O Sr. Kasparov, meu neto e um Surfista Prateado

-Dad, sabia  que sempre eu penso em Nossa Senhora com um manto cor de rosa e calça jeans? Geralmente a imagino  em cima dum palco com focos de luzes, assim como  num show de rock.

Esse era meu neto, Jean-Paul, 12 anos. Minha filha Dynáh escolhera esse nome em homenagem ao grande filósofo Jean-Paul Sartre, de quem era fã e ávida  leitora. Dynáh sempre fora inteligentíssima (QI 148) Portanto, nada mais óbvio que Jean Paul, mistura genética com um pai de QI 154, fosse algo próximo à genealidade. Talvez,  Dynáh já o tivesse pressentido através dos carinhosos mimos de suas mãos na enorme barriga dos tempos de gravidez.

-Mas.. Jean Paul, veja, Nossa Senhora não é  popstar como a Madona,  muito menos uma estrela do mundo do rock – Contestei

-Ih vô! Numa dessas minhas viagens aposto que não vai querer saber  dos lugares que vi Jesus percorrendo...

Claro, o bom senso dizia-me  que não deveria questioná-lo dessa vez. As suas  reticências e o ar vago e maroto  deixavam-me vaga impressão dos locais por onde ele fizera o filho de Deus transitar.

E assim era com Jean Paul, onde sua criação excessivamente católica viera com as fraldas e o limpar de bunda, herança herdada do meu genro, um rico industrial na área da informática.
Paradoxalmente, minha filha, agora também  afeita  ao catolicismo, esquecera de suas crenças antigas em clara oposição aos seus filósofos favoritos,  mas em comunhão com Antenor, seu marido,  um católico praticante e que sempre teve ótimo acesso ao pároco. Convem ressaltar que meu genro  jamais agiu com mesquinharias  nas doações feitas para a Igreja do bairro, independentemente de jamais fechar os olhos para alguns fatores que ocorriam naquela igreja e com o padre Luisinho,  tal qual o habito do religioso trocar o modelo do automóvel todo o santo ano. Evidente que eu me questionava quem poderia estar arcando com esses gastos. Claro, crentes, os fiéis afirmavam que essas despesas eram bancadas pelo Vaticano. Porém, cético, sempre desconfiei que o dinheiro do Antenor estava  metido no meio nessas aquisições..

E assim foi que, cercado de religiosidade  por todos os lados praticamente não restou alternativa para Jean Paul que não fosse aceitar a imposição dos pais para que de trilhasse o caminho da fé. Fé que ajudei a desvirtuar ao transportá-lo no tempo e aos caminhos pregressos da minha revoltada juventude. Comum era desviá-lo da rota  cristã ao contar-lhe parte das minhas estórias  mais amenas ou fazê- lo cadenciar o par dos seus pezinho 38 sobre o tapete persa do Antenor.  Naquelas ocasiões e para seu delírio,  no mini system colocado acima  da minha mesinha de cabeceira eu desfilava para ele os pesados  rocks progressivos, principalmente os das bandas The Who,   Led Zeppelin, Pink Floyd entre muitos outros. 

E aquele maroto de inteligência formidável assimilou tudo de forma rápida e precisa às custas de alguns dos DVDs das minhas bandas  favoritas. Devido a alguns filmes antigos que ele ele aprendera a dar os pulinhos iguais ao do  Pete Townshend e do Angus Young. E eu me divertia ao vê-lo curtir um som e atravessar o quarto empunhando a sua guitarra imaginária, saltando pra lá e pra ca com as pernas ora dobradas para um lado, ora esticando-as para o outro  numa  perfeita imitação dos seus ídolos. Nada incomum também eram os momentos onde as delicadas mãos de minha filha batiam à minha porta com toques apreensivos e que sugeriam um demasiado nervosismo: “Ô pai, não vá me dizer que senhor tá induzindo o Jean Paul a ouvir esse barulho dos infernos?” –  Evidente, esses  lances da Dynáh quebravam completamente o  nosso barato, e o que me obrigava a diminuir consideravelmente o volume. Depois, claro,  eu  ria dessas passagens.  Mas o que as batidas de Dynáh não conseguim impedir era a minha cumplicidade para com aqueles pequenos delitos de Jean Paul. Delitos esses que nos aproximavam ja  que seria improvável que ele praticasse aqueles "absurdos"   na presença dos pais.

-Dad, eu não sei se você sabia, mas... Platão desenvolveu uma teoria que foi esboçada no Mênon: A teoria da reminiscência –  La vinha ele com suas afirmativas num descolado sorriso. Óbvio, eu saquei que ele estava  pretendendo me gozar.

-Mas... que merda quer dizer isso,  eim sabichão? - Ele riu divertido com a complexidade da minha frase.

-Ah, é assim, vô: A gente nasce com a razão e as idéias verdadeiras. E aí a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar dessas idéias. Isso é conhecido por maeutica, entendeu? – Ele afirma com um olhar de sabe-tudo.

-Ah sim...agora que entendi! Bem, mas como eu diza.... – Rapidamente eu tentava abortar aquele seu lero-lero

Eu não suportava aqueles momentos em que Jean Paul  cismava de desfilar a vidas dos filósofos, os seus amores, as suas desilusões e até as suas mortes singulares. Pra falar a verdade eu achava aquilo tudo um porre. Portanto só me restava livrar-me dos bocejos ao tentar desviar a sua atenção.  Sem dar tempo pra ele raciocinar, impostei a voz e mandei brasa:

-Diz aí pirralho sabe-tudo! Quem foi o “Surfista Prateado”? – Eu jamais fora homem de levar desaforo para casa. Era olho por olho, dente por dente.

-Surfista o que...? – Ele questiona com olhos esbugalhados. Parecia que eu estava lhe perguntando sobre caramujos tailandeses.

Claro, compreensível que ele não soubesse me dizer.  Jean Paul jamais poderia saber do “Surfista Prateado”. Evidente, meu neto desconhecia que eu me referia a uma  leitura do meu tempo de ginásio. Foi então que pacienciosamente expliquei para ele que o "Surfista Prateado" fora um herói de uma revista em quadrinho e que dava conta que ele viera  de uma outra galáxia  a mando de um dos chefões do cosmos com a finalidade de devorar a Terra ( Os seus olhos se arregalaram  quando citei  que ele viera devorar a terra) Mesmo diante da sua reação continuei esplanando que o super-herói levitava  na sua prancha prateada e que se encantara com a nobreza dos sentimentos terrenos. E em se encantando  ele resolvera permanecer entre os humanos, travando guerras contra todos os tipos de mal e crueldade.
Talvez com o tempo o meu neto pudesse compreender que a minha predileção por aquele super-herói se a atrelada ao seu perfil psicológico; um super-herói nostálgico, solitário, e excessivamente melancólico. Evidente, eu e o Surfista tínhamos tudo em comum, exceto o fato de eu jamais ter sido um super-herói.

Foi então que Jean Paul com cara de pouca surpreso e concluiu: - Ah sim.. Então esse que é o tal  Surfista Prateado.. .Nossa, nada punk!

Porém os seus olhos e atenções estavam distantes daquilo que eu falava. Foi quando tentei penetrar naquele nos seus  olhos azuis como as águas do oceano Atlântico. Como era de se esperar, não consegui.  Não conseguindo levei-me a concluir que por mais qu tentasse jamais flagraria Jean Paul interessado por esse tipo de coisa. Ainda mais para alguém como ele; um apaixonado por mitologia grega, culturas milenares e tudo aquilo que se distanciava de minha parca intelecutualidade.

-Ô vô! Mudando de assunto... Já ouviu falar duma tal de Maria Madalena? -  Ele desconversou, provavelmente insatisfeito com aquele papo de super-herói. Porém o sexto sentido me sinalizava que ele estava prestes a me colocar numa outra fria.

- Ah...Cê ta falando daquela da bíblia?

-É! Essa mesmo, vô! - Ele confirma.

-Sim... O que  sei que é ela foi uma prostituta, e que queriam apedrejá-la. Mas sei também que Jesus interviu à tempo – Confirmei convicto. Peguei o bandido! Dessa ve eu tinha a história e a bíblia a meu favor.

-Bem, vô, até que enfim você acertou uma...  Mas...se disser que Jesus Cristo fez aquilo porque estava com outras intenções na cabeça, o senhor acreditaria? - Dito, ele me fez a cara mais sacana que um safado de 12 anos poderia  me proporcionar.

Atônito ao ouvir tal despautério minha boca ressecou e eu mal consegui piscar.

-Como assim? Que leviandade é essa seo  moleque sem-vergonha, safado!  - Seus olhos se assustaram com a rispidez da minha reação.

Horrorizado abro a porta do quarto e vocifero:

-Ô Dynáh! Vem tirar esse demônio daqui! - Minha voz ecoou pelo corredor, forte, irritada, absurda.

Ouço os saltos altos de Dynáh, e eles estão a caminho, mas o danado, esperto, nem esperou a chegada da mãe. Quando dei por mim ele subia em desabalada as escadas que davam acesso ao seu quarto. Provavelmente la dentro e em seu notebook de última geração ele travaria uma feroz batalha virtual contra um poderososo software de xadrez desenvolvido com  as complexas informações  do lendário  Gary Kasparov.

-Que foi pai? O que o Jean aprontou dessa vez?

-Ah filha! Nada não. Bobagem! - Desconverso.

Dynáh me olha com ar de repreensão. No mínimo me achava um tolo por tirar sua atenção de algo que deveria estar fazendo. Eu olho para ela ao se afastar e sinto um imenso carinho por aquela figura femina. Ela some pelo corredor e adentra à biblioteca e eu penso no meu garotinho;
Eu não me surpreenderia se ele desse uma boa sova no programinha daquele russo metido à besta.

-Xeque Mate! - Exclamo para as paredes e uns poucos quadros à óleo. Atrás da porta, num poster envelhecido, Janis Joplin me olha, esquizofrênica.


Copirraiti 13Jun2011
Véio China©

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