terça-feira, 6 de março de 2007

O dia que o trapezista caiu.


-Por favor uma cerveja e uma dose de vodca -  Pediu ao rapaz do balcão. -Ah sim, e seis dessas salsichas cozidas – Finalizou apontando pra uma dessas vitrines  térmicas onde se mantém aquecidos bolinhos e outros salgados.


O rapaz olhou aquele homem de certa idade, talvez  62 ou 63 anos e que trazia na cabeça boa parte de cabelos brancos e no rosto, além das marcas da vida um par de lentes negras, uma aparência que lhe parecia familiar, pois o cliente o remetia ao avô falecido três anos antes. De imediato o rapaz serviu  as salsichas num prato ao supor que seriam para forasteiro, mas não, o senhor apenas pegou a louça e a levou para o cão que o aguardava junto à porta o do bar. O animal ao percebê-lo com o prato na mão abanou o rabo e remexeu o corpo, ansioso.

-  Bruce, vamos ver se consegue dar cabo dessas salsichas - O sujeito disse num tom  carinhoso repousando o prato ao chão.

Sim, talvez achem engraçado o homem chamá-lo por Bruce, aliás,  Bruce Lee, nome dado por ele no dia que se conheceram. Sobre Bruce sempre haverá muitas coisas a serem ditas, principalmente da sua educação e obediência à ponto de manter guarda nos locais determinados, arredando as patas somente quando autorizado pelo dono. Portanto assim, submisso, foi que Bruce cheirou e lambeu as salsichas e começou a devorá-las com avidez. Deixando o cão e as salsichas para trás o senhor retornou ao interior do bar caminhando num estreito corredor que abrigava meia dúzia de banquetas concretadas ao piso vitrificado. Parando diante uma delas ajeitou o corpo enfiando uma das pernas pelo vão e sentou-se. Ali repousou os óculos escuros no balcão que imitava o mármore italiano e fixou os olhos em alguns troféus na prateleira, provavelmente conquistados pelo time de futebol do bairro. Já com as bebidas no balcão primeiramente serviu-se da contida no copo americano, tombando parte da vodca  na parede do balcão, costumeiro agrado à sua santa de devoção. Com Rita de Cassia servida   emborcou o resto da bebida, e ao ouvir um rosnado que não era do seu animal retorna o olhar para onde o cão estava. Sim, Bruce enfrentava problemas com um cachorro surgido do nada e que pretendia surrupiar suas deliciosas salsichas. Situação inesperada, Bruce não esboça qualquer reação, salvo olhar o prato e para o invasor que se aproximava sem receio ou cautela. Quem visse a cena concluiria que a notória timidez de Bruce faria as coisas não terminariam bem para o seu lado. Aliás, seria apropriado concluir que ali estava um animal submisso e dócil?

Pois bem, vamos aos fatos, Bruce sempre foi surpreendente, e quem o vê pela primeira vez, pacato, logo o tem por um poltrão, desses que sucumbem ao primeiro sinal de perigo. Entretanto saibam, Bruce, apesar de amistoso jamais foi covarde, pois vivo na memória do  dono está aquele primeiro dia que o cão de rua surrou um adversário nitidamente maior e forte.Sim, era surpreendente aquele animal e os golpes inusuais, pulando sobre o dorso do oponente, aplicando a força da mandíbula na cabeça e patas traseiras do adversário. O homem assistiu o combate com assombro, pois de certa forma as ações do cão recordavam os mirabolantes golpes do maior astro do kung fu. E assim a briga seguiu, mas não durou muito, já que o adversário, inesperadamente empreendeu fuga. O homem sentia orgulho daquele animal e a magnífica performance, tanto que estalou os dedos para o campeão, e este, feliz, aninhou-se ao seu lado oferecendo a cabeça para carícias, ganhando não só o carinho, mas um nome famoso e a casinha de madeira no quintal da residência do seu novo fã.  E, desavisado, foi o que ladrão de salsichas supôs ao tentar prevalecer do porte avantajado, porém, foi ficar à centímetros das salsichas  para perceber que não estava desafiando um cão qualquer. Situação escancarada, Bruce  rosnou ferozmente e num movimento inesperado cravou os dentes no focinho do forasteiro, que, uivando de dor enfiou o rabo entre as pernas e deu o fora.
Assim que espertalhão sumiu de vista, Bruce outra vez lambeu suas salsichas e retornou ao almoço.

-Ah, Bruce...Bruce -  O homem  sussurra e sorri.

Um outro gole na cerveja e seus olhos mergulham no pretérito e no costume de sempre. E o gosto do álcool se mistura às lembranças e eles fazem-no  mergulhar  nalguns elos que o prendem ao passado.
Agora se vê refém das lembranças, e houve  uma esposa, filhos saudáveis e tempos em que o dinheiro nunca foi farto à ponto de levá-los num cruzeiro pelo Caribe, mas o necessário para que não faltasse o alimento, principalmente os iogurtes dos meninos.
Todavia o que havia nunca foi o suficiente, e a vida, mostrando-se caprichosa acabou por levar cada qual para um canto, num processo que findou em separação após nove anos de casado. Recorda-se que à época tentou demover a esposa  da decisão, porém nada que tenha surtido efeito, portanto, diante dum juiz acabou por assinar deveres e obrigações.

-Nossa! Faz tanto tempo! -  Gemeu consigo.

Sobre os filhos sabe apenas que  hoje vivem  num desses gélidos países da Europa e que  por lá guardam um bom dinheiro, mesmo não trabalhando em serviços dos mais nobres.

-Onde que é mesmo? Inglaterra? Alemanha? - Murmura em questionamento, pois não se lembrava ao certo, já que só soube do fato ao reencontrar o Meireles, seu vizinho de casa nos tempos de casado.

-Mas isso também faz tantos anos - Geme ao deixar de tamborilar os dedos no balcão.

-Sim,  acho que eles jamais teriam conseguido por aqui - Sussurra

Inevitável agora era um outro gole e a lembrança de alguns fatos logo após a separação.
Sim, houve mulheres que dormiram  em seu leito, duas de forma mais duradoura, no entanto não sobreviveram à geladeira pouco abastecida, os raros vestidos novos, óbvio, situações decorrentes dos seus infindáveis desempregos. Entretanto as despedidas jamais lhe foram surpresa, nem mesmo o abandono que relega o homem à solidão, esta sim, sua de fato e por direito. E suas construções inacabadas obrigavam-no agora a remexer ainda mais o passado, não propriamente sobre mulheres e seus capricho, mas as suas culpas, as muitas noites boêmias junto de bêbados tão vazios quanto ele.

-Vocês nunca tiveram paciência! Sempre presunçosas, imediatistas! -  Ele traga mais um gole ao recriminá-las num discreto monólogo.

-Ah, mulheres, mulheres! Queixou-se,

Elas jamais teriam o poder de invalidar  a sua opinião sobre elas, pois as comparava ao jogo entre exímios enxadristas, onde o resultado sempre será imprevisível.
Sim, ele igualmente se habituara a conviver com os imprevistos, mas nunca como a questão que para muita gente parece tão simples; Os filhos.

-Por que vocês têm que crescer? - Questionou

Aliás, questionou não somente dessa vez, mas nessa em muitas outras ocasiões. Não, para ele não deveriam, pois ao crescerem  levavam consigo a inocência dos sorrisos. Sorriso que lhes da ofertavam principalmente às épocas dos seus aniversários,  natais  ou no dia das crianças.
Naquele momento, e por mais que tentasse não mexer nas feridas da memória lá estava o esplendor dos sorrisos das suas crianças, revivendo cada um deles, os recebidos pelas bolas de couro, os tênis novos, ou uniformes completos do time do coração. Claro, revia-os nitidamente, mas agora andavam por aí de barba noa rostos,  perdidos talvez  em aparências que nem mesmo ele conseguiria reconhecer.

-Mas, mesmo assim... daria  tudo para  vê-los novamente - Lamuriou aos sussurros, empurrando para a garganta mais um trago da bebida.

Foi o instante em que afastou do rosto a expressão preocupada, cedendo lugar ao sorriso e às muitas viagens de sua mente. Um por um lá estavam todos lá! Os brinquedos com que se divertiam nos parques públicos nos dias de domingo, e o primeiro dia que os levou ao Pacaembu para uma partida do time.  E ele continuou sorrindo, e agora não mais importava as salsichas ou o Bruce, nem mesmo a educação do atendente. Não, nada importava, agora era propriedade da saudade que remexia sua memória de quase 30 anos, e diante dela o derradeiro espetáculo que assistiu com os meninos; Uma engraçada, porém dramática tarde num circo.
Era como lá estivesse, e podia vê-lo à sua  frente - O trapezista –

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E o rapaz surgido no meio das cortinas ganhou o picadeiro vestindo  uma dessas malhas prateadas semelhante às usadas por ginastas. Entretanto ele não estava só, pois junto  um par de assistentes davam um especial  e gracioso ao número. Todos pareciam felizes, e eles, sorridentes, iam de um lado para o outro agradecendo os aplausos da platéia.
As luzes se apagam e um poderoso holofote ilumina  a extensa da corda que, estirada, ainda deixa uma ligeira curvatura entre uma plataforma e outra.
Assustador foi olhar para o alto e imaginar que o moço estaria há uns 8 metros do chão. Com o número no aguardo do herói, graciosamente o trio galga as escadas até atingir uma das bases. Os movimentos são elegantes e  não escapam ao público que se mantem apreensivo. Já estão no alto da plataforma e acenam para o público quando o trapezista  faz o sinal da cruz e tremula pernas e braços para relaxar a musculatura. Entrando na corda os primeiros passos do trapezista parecem desarticulados, claudicantes, já que suas pernas se mantém instáveis e num vai-e-vem constante. Outro par de passos e a situação se degradou, pois não mais conseguiu manter o equilíbrio.
Tudo se sacramentou quando o filho mais velho pressentindo o pior exclamou:

- Ih pai! Ele vai cair! - Foi o suficiente para o caçula fazer parte do coro- É sim, acho que vai sim! -  As vozes soavam aflitas, temerárias.

Foi o momento da ruptura, e o trapezista não mais conseguindo manter o equilíbrio despencou surfando o ar como um condor ferido de morte, desabando na rede de proteção. A platéia, assombrada não perdeu os instantes do fracasso anunciado. Foi decepcionante ver o trapezista nas redes de proteção, um instante em que as coisas saíram do seu controle,  isentas de mecanismos que  evitassem  surpresas e que  mantivessem o sujeito longe do perigo.  Sim, mecanismos! E por que não? - O trapezista deve ter questiona decepcionado - Não seria tão bom o homem ser munido de sensor que que se antecipasse às crateras, subterrâneos, uma luz sinalizadora que piscasse por debaixo da pele do dedo e avisasse o homem - "Cara, cuidado, estás prestes a entrar numa fria" - Mas não havia sensores, mas apenas um rapaz envergonhado. Entretanto ele não era qualquer um e sim bravo, tanto que  no impulso do corpo livra-se das redes e retoma aos degraus e se põe outra vez à plataforma, desta vez sem as garotas. Concentrado e já no alto da plataforma olha demoradamente a corda  e percebe que manter a calma e dominar a ansiedade serão os seus desafios. Ele respira profundo, uma, duas vezes, e faz sinal para que as assistentes retirem as redes de proteção. A sua decisão põe a platéia num transe quase hipnótico, não se ouviam barulhos, e tão somente centenas de olhos atentos à insanidade do sujeito.
Mais uma vez o trapezista se concentra e repete os primeiros passos, calmos, determinados, adquirindo confiança, vencendo pouco a pouco a extensão da corda com a ajuda duma vara de equilíbrio.

E conforme ganhava o espaço a platéia se mostrava ainda ansiosa, aflita,  pois o menor dos deslizes poria a sua vida em risco. Confiante e passo após passo o trapezista atravessou toda a extensão alcançando a segunda plataforma.
Foi o ápice, estrondosa gritaria,  palmas e assobios espocavam por todos os lados brindando a façanha, a vitória de alguém que desafiou a morte. Ele não cabia em si de contentamento, e agitando as mãos para o publico foi que desceu rapidamente os degraus e ganhou o centro do picadeiro, saltitante. "Bravo! bravo! Alguns gritavam, era o reconhecimento duma platéia que o aplaudia  freneticamente. Depois e ainda saltitantes, ele e as assistentes desapareceram por entre  as cortinas.
Aliviado, o homem olhou para as crianças e percebeu o quanto estavam tensos, e seus olhos brilhavam, felizes por tudo ter terminado bem.
E com o espetáculo em curso foi que os garoto pediram cachorro-quente e refrigerantes.  Pacienciosamente e não querendo que os filhos perdessem o show dos palhaços se descolou do seu lugar na  arquibancada à busca de sanduíches e bebidas.
Enfim, terminado o espetáculo e já do lado de fora os filhos  ganharam saquinhos de pipoca doce e amendoins torrados.

E comendo suas guloseimas foi que caminharam por um bom tempo até chegarem ao parque da Aclimação. Ganhando o santuário florido caminhavam de mãos dadas, felizes, transitando por alamedas arborizadas quando um céu carrancudo prenunciou a chuva. Não foram necessários mais que dez minutos e as gotas to tempo foram sentidas, acompanhadas dum vento gelado que fazia arder seus rostos. Não, para eles nada disso importava, nem mesmo o frio ou a persistência da chuva, densas, pois havia tanta beleza na bucólica paisagem, no cheiro das flores, nos odores do mato, algo tão sublime e poderoso que eternizaria o momento.

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- Por onde andarão agora? Estarão realmente bem? – Perguntou para seus botões ao abandonar a mágica tarde

Sim, sobre a esposa  soubera que se unira a um sujeito que  podia dar bem mais que os bifes de segunda e os potes de sorvetes caseiros.

-Compreendo, certamente você deve ter optado pelo melhor - Sussurrou de forma tão dolorosa que as laboriosos formigas interromperam a marcha pela beirada do balcão.

E foi naquele exato momento, e sem que houvesse esforço ou comiseração por si que, um par de lágrimas desceu solitário transpassando o espesso bigode, escorrendo até os lábios - Homens não devem chorar - Pensou consigo, incomodado, ao livrar-se das lágrimas sorvendo-as discretamente. No entanto era tarde demais, já que o atendente o pegara em flagrante. Constrangidos, ficaram a se olhar, depois agiram como se nada estivesse ocorrendo.

-O senhor vai querer outras bebidas? – O atendente lhe pergunta ainda sem graça.

-Sim, vou querer, obrigado! Repita as bebidas junto de mais quatro salsichas – O homem solicita num tom de quem pretende se afugentar das emoções.

O rapaz lhe dá as costas e ele novamente ele se vê disperso e vazio, Sua mente está transparente e não há qualquer pensamento. Outra vez ele é  acordado pelo som do prato chocando-se contra a pedra do balcão. Ele olha para o copo de vodca e sorve o seu conteúdo  e em dois longos goles – O rapaz ainda se vê constrangido e isso o preocupa, já talvez o garoto o imaginasse  um desses bêbados emotivos e chorões -  Ainda pensava sobre as reações  do atendente quando outra vez se dirigiu à porta e ofereceu o lote de novas salsichas para Bruce. O cão farejou o prato e  abana o rabo para entreter-se  com as salsichas sem a presença de forasteiros.

-Vamos Bruce, coma tudo! Sei desse teu apetite sem fim! - Exclamou carinhosamente para cão.

Foi então que inesperadamente, e não se sabe se por presságio ou pela cúmplice solidariedade que, Bruce, abandonando momentaneamente os petiscos soergueu a cabeça e fitou os olhos do seu dono dum jeito que nunca fizera antes. Era um desses olhares que transmitem as boas sensações, que se carregam na doçura e lealdade assim como os olhos das crianças.
Para o homem foi um instante de rara emoção e ele  retribuiu com um sorriso de boa parte dos dentes, acariciando o animal, desferindo amistosos tapinhas em sua cabeça. Carícias trocadas, Bruce voltou para as salsichas enquanto o sujeito retornou ao bar e quitou a sua conta.  Despedindo-se do rapaz do balcão se dirigiu à porta e constatou que o rabo de Bruce  balangava apesar de inexistir rastros das salsichas.

-Bruce, você saco sem fundo!" - Exclamou e sorriu enternecido para Bruce, afinal o cão era o único fato que a vida consentira ficar.

Antes de ir acena novamente para o rapaz do balcão como agradecendo a compreensão. Já do lado de fora caminha lado à lado com o Bruce antes que esse domine o primeiro poste e deixe o rastro da aquisição de território. E assim eles vão pelo caminho, e Bruce vez ou outra se desgarra do dono para flertar com cachorras que se colocam na trajetória de ambos. Certamente a  existência daquele senhor de óculos escuros persistirá num tremular de cordas, trepidar de constantes situações complexas em emoções, sentimentos, lembranças retidas em sua mente como cartas resgatadas dum velho relicário.
E tenham a certeza que vê-lo nostálgico e melancólico será sinal que as recordações estão lhe tomando, e ele as compartilhará com a bebida e com a sua Rita de Cassia, a santa das causas impossíveis.
E ainda sim será no auge e na afirmação das bebedeiras e nos efeitos que elas provocarão que o ouviremos bradar, orgulhoso:

-Eu sou um trapezista!



Copirraiti11Jaan2013
Véio China©