quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Holly, o estranho escritor da 1/2 noite.


Terminei! – Disse o Sr. Holly ao finalizar com um ponto a extensa obra que acabara de produzir.

Feito, espreguiçou-se na poltrona e salvou “As pegadas” em arquivo "word", fechou a pasta virtual e dirigiu-se à cozinha onde um merecido chá de maçã verde o aguardava no esmero de um jarro de cristal. Era o seu prêmio por ter escrito 15 horas a fio o derradeiro capítulo do seu romance. Mas, como de praxe aos autores, algo ainda o incomodava e no curto percurso entre o escritório e o chá de maçã, ocorreram-lhe outras idéias para o romance - se viu pela primeira vez em sua vida de escritor sujeito a mudar o enredo e por vontade render-se ao clichê dos finais felizes - E isso vinha de encontro da sua necessidade de modificar os destinos, literariamente perversos com os quais geralmente brindava os seus anti-heróis personagens. E munido do sentimento que apaziguava seu espírito e solucionava definitivamente a conturbada e doentia relação entre Julie e Wasford, que juntos com um estranho e indecifrável escritor protagonizavam a trama – afinal, a sua alma inquieta não se satisfizera com os destinos que lhes destinara na peça. Ansioso, puxou uma cadeira e anotou no inseparável bloco de notas todas as mudanças em pouco mais de 40 minutos. Terminado, sorriu tanto satisfeito ao sentir que cada uma das novas frases alterava drasticamente a estória. Revisada a última linha retornou apressadamente ao escritório, equilibrando as pernas e o chá de maçã que num bailado insano ondulava no copo mantido em suas mãos.

E mais: A certeza que estava fazendo o correto, a sua firme convicção que aquele casal, desta vez merecia um destino melhor - E ele o sabia – seria amplamente compartilhada com seus milhares de fãs - "O público é e sempre será afeito aos finais que tornam as pessoas felizes" - sussurrou para si - E ele mais que ninguém sabia disso, como sabia que geralmente, por detrás desses finais perfeitos escondem-se as partes amargas e jamais alcançadas pelo ser. E eles os leitores, redimidos nesses finais sentem-se vingados e o “bem sempre há de vencer o mal” gera-lhes uma sensação de felicidade, como se houvessem estado na pele do personagem e como ele sofrido as mesmas emoções e amarguras, mas, para no fim sobreporem às tragédias e saborearem o triunfo - Concluiu reflexivo ao entrar pela porta do escritório e encaminhar-se para a mesa de trabalhos. Andou menos de 2 metros tamborilando a caneta na capa do bloco de notas quando um calafrio lhe percorreu o corpo:

-Não é possível! O que aconteceu com o monitor? – Exclamou ao notar que havia um imenso rombo na tela.

A fim de verificar se não tratava de engano, esfregou os olhos com as palmas das mãos e afirmou bem as vistas – talvez o reflexo do sol ao atravessar a sala tivesse afetado momentaneamente a sua visão –

-Não. Definitivamente há um rombo aqui! – Exclamou surpreso ao ver que o buraco ainda permanecia lá.

Perplexo, sentou-se na poltrona e percorreu com o dedo indicador o local onde deveria estar o vidro – nada – Só havia o vazio de uma cavidade escura. Procurou por cima da mesa e pelo chão, mas não se via qualquer resquício de estilhaço de vidro, o que tornava o fato amplamente incompreensível. Atônito, enfiou a cabeça dentro do rombo de 17 polegadas na tentativa de encontrar algum indício que o fizesse entender – novamente, nada – apenas vislumbrou o oco, o escuro, exalou o cheiro característico dos componentes eletrônicos, inclusive, sentindo-se incomodado por ele. Lentamente retraiu a cabeça que juntamente com as costas retornava a posição original quando sentiu uma mão pousar em seu ombro.

-Senhor Holly? – Perguntou-lhe um rapaz loiro e de tipo atlético.

-Sim, ele mesmo – Respondeu assustado e sem dar conta de como aquele rapaz viera dar ali.

O rapaz, imediatamente postou-se ao seu lado, e ao mesmo tempo desse breve diálogo perceberam passos vindos pelo corredor, e os ruídos produzidos por saltos altos dos sapatos de uma mulher se fizeram ouvir. E o senhor Holly sem saber exatamente aonde e em quem se fixar virou levemente a cabeça a tempo de perceber que uma jovem de corpo bem moldado sorria-lhe amistosamente. Próxima, postou-se atrás da sua cabeça e suas mãos, cheiradas à fragrância de fino perfume francês, surpreendentemente começaram a pressionar seus ombros numa espécie de massagem. Naquele instante o toque firme da mão feminina pareceu confortá-lo. E foi assim, pressionando nervos e músculos sob a pele flácida que ela, finalmente, se dirigiu a ele:

-Ah, então é o famoso senhor Holly? – Perguntou. A sua voz, sensual e harmônica preenchia o vazio, misturando-se magicamente ao perfume francês, enquanto os dedos empregavam maior volume de força, dando continuidade àquela inesperada massagem.

-Sim, já disse que sou. Mas, o que significa isso, podem dizer? – Inquiriu o Sr. Holly, nervoso e um tanto apreensivo. Os dois olharam-se maliciosamente e sorrriram. A moça foi a primeira a se manifestar para dirimir as suas dúvidas:

-Sr. Holly, muito prazer em conhecê-lo pessoalmente. Antes só o conhecíamos através dos textos! – Disse simpaticamente, descendo o pescoço por detrás dele, roçando suavemente o pontiagudo par de seios em sua nuca, enquanto o rapaz enfiava a cabeça pelo buraco, como se procurasse entender o que se passara.

A moça se fixava nele quando deu a volta ao seu redor. Volta feita postou-se à sua frente. Agora sim ele podia vislumbrá-la por inteiro. O belo rosto era marcado por uma indisfarçável cicatriz que nascia no canto externo do olho para morrer meio centímetro depois, próximo da orelha. Os cabelos, fartos, oxigenadamente loiros, contrastavam estupendamente com os lábios rubros e carnudos, mas que denunciavam nela uma feição tanto depravada. No corpo, um justíssimo e curto vestido vermelho deixavam expostas magníficas coxas através da fenda do corte frontal. Ela sorria simpaticamente, e isso pareceu surtir algum efeito nele e ao ponto de tranqüilizá-lo quase de imediato. O senhor Holly, sentiu-se mais seguro e olhava amistosamente para o casal, detalhando agora que o rapaz, apesar de bonito, trazia no rosto um ar de "anos 50", um bigodinho a lá Rodolfo Valentino, algo um tanto démodé e sem uso nos dias de hoje e que lhe conferia certo surrealismo. Quanto a ela, ele se dedicava aos detalhes e percebia que no alto da farta cabeleira da cor de fogo repousava uma bela rosa, igualmente, vermelha. Sentindo-se confiante como um avô em presença de netos, perguntou:

-Ah! Então posso concluir me vejo diante de um simpático casal de meus leitores?

A dupla, outra vez se entreolhou divertido para em seguida ceder o ar simpático para dar lugar à ironia do casal:

-Nós? Consumidores dos seus livros? Ah! Não, não é exatamente isso, senhor Holly - Reagiu o rapaz que agora pressionava fortemente os ossos dos seus ombros, fazendo-o sentir demasiadamente desconfortável.

-Bem, então quem são vocês? – Inquiriu-os, mais assustado que curioso.

-Oras! O senhor nos conhece tão bem, senhor Holly! – Posso dizer até que nos é uma espécie de pai - Sussurrou-lhe no ouvido a loira. Em seguida, abriu a bolsa que trazia, procurando por alguma coisa.

Como assim?- Quis saber o escritor. Aquilo, do jeito que estava começava tomar um rumo imprevisto e preocupante –

O rapaz percebendo a sua aflição abaixou-se em sua frente e de cócoras, olhando-o firmemente nos olhos apresentou-se:

-Muito prazer senhor Holly! Sou o Wasford, ao seu dispor! A garota, incentivada pela atitude do amigo, antecipou-se e esticou o braço na direção do escritor, como querendo que ele correspondesse ao cumprimento. Seu braço permaneceu estendido no ar sem que fosse correspondido. E ela então, trazendo de volta o cumprimento recusado riu-se num riso estranho, quase insano:

-Prazer também, senhor Holly! Sou Julie, a sua criada! – Apresentou-se diante de um senhor Holly, atônito, mas com senso de espírito o suficiente para em segundos digerir tudo aquilo e achar que aquele "teatro" nada diferia do que se propunha a oferecer em seus romances: fantasias. Certo de que aquilo se tratava de algo sadio, perguntou com o mais amplo dos seus sorrisos:

-Vocês estão brincando comigo! É gozação, não é? Alguma brincadeira de algum amigo meu. Vamos! Digam-me logo quem é o safado que está lhes pagando para isso. Vamos, digam! - Completou gargalhando.

O casal mais uma vez se entreolhou, perplexos com a conclusão do escritor. A moça, voltando à realidade, continuou procurando por algo perdido na imensa bolsa a tiracolo até que achou. Tateava com prazer o objeto que, aos poucos foi sendo puxado até surgir, cintilante: uma adaga de prata, afiada e que ostensivamente se curvava na extremidade.

O senhor Holly olhou-os aterrorizado: era aquela adaga que ele descrevera no conto. Era a arma branca usada na diabólica trama do seu livro. E fora com ela que o escritor matou a prostitua Julie, com cortes profundos em ambos os pulsos. Um pouco antes havia se livrado do gigolô Wasford, acertando-lhe a cabeça com uma pesada estatueta de bronze. Mas, não o matou, afinal, precisaria dele, já que sobre ele recairia a culpa da morte da prostituta - Teria que deixá-lo desacordado e a tempo suficiente para a chegada da Polícia - E foi exatamente assim que as coisas se deram - E o pobre Wasford foi pego com a adaga em mãos, chorando sobre o corpo da amada, banhado por um sangue que jamais fora o seu, enquanto o nobre e insano escritor, usando uma das duas passagens que comprara, embarcava para Paris sem levar Julie, o amor da sua vida - Ele jamais permitiria dividí-la com alguém -

Era exatamente isso que Holly relembrava quando foi acordado da real pesadelo que enfrentava:

-Então pensou que tudo terminaria daquele jeito, Holly? Você me mataria, culparia Wasford, e sairia numa boa? Vamos, desembuche! Matou mais alguém em Paris?

Holly estava aterrorizado. Aquilo não podia estar acontecendo:

-Mas, mas, entenda. Não era eu! Jones foi um personagem que criei. Um escritor...por coincidência – Holly tentava convencê-la.

-Coincidência? – Exclamou um raivoso Wasford ao ouvir as justificativas do escritor. – Deixe-me ver até onde vão essas “coincidências” – E dito, percorreu o apartamento de Holly a procurava de evidências que se tornassem mais que meras justificativas.

-Chama isso de coincidência Holly? O mesmo perfume Paco Rabanne? Os mesmos sapatos de couro italiano? E ainda por cima o inconfundível terno Hugo Boss? Coincidências uma ova! Era você Holly que estava na pele daquele escritor. Eu sei! Eu sei! Confesse! - Berrava Wasford ao trazer consigo todo o aparato de coisas do escritor.

Holly suava frio. Do alto da testa um filetes e filetes de suor escorriam na direção da face.

-Sim! Tudo bem! Mas o que isso tem a ver? São meras coincidências!– Gaguejava Holly.

-Tem a ver sim, seu velho filho da puta! – Gritou Julie – Tem a ver porque todo escritor discrimina os desvalidos da vida. É sempre assim, e a corda sempre rompe do lado mais fraco. E quem paga a conta? Somos nós! As putas, gigolôs, trombadinhas de esquinas e outros miseráveis. Inclusive pagamos com o próprio sangue. Você me fez pagar com sangue, Holly - Insistia ela num fôlego só -

Desabafo jorrado, cintilou a adaga de prata diante da luz e a posicionou na jugular de Holly, que mesmo na imensidão do seu metro e noventa, se tornara um velho frágil e seus 74 anos já não impunham qualquer resistência.

Julie, num golpe preciso dilacerou a jugular de Holly que, desesperado tentava estancar o sangue com suas próprias mãos: não queria morrer. Wasford, morbidamente sorriu ao sentir o sangue de Holly esborrifar no seu rosto - vingava-se por Julie - E Holly, sentindo o sangue esvair, tomado por uma sensação repentina e gélida como se fora a mais pura pedra de gelo, percebeu o mundo girar em torno de si. E foi então que percebeu que estava partindo. E antes de ir, não podia deixar as coisas naquele estado. Foi então que se lembrou do bloco de notas adormecido ao lado do mouse. Então sorriu para Julie e fez sinal para que ela o pegasse.
Julie entendeu o gesto e então, de posse do bloco de notas leu em voz alta o que estava escrito nele:

“Wasford, mesmo não sendo tão forte quanto o escritor, desviou-se da pesada estatueta de bronze, que riscou sua cabeça como vento em tempestade. E, num golpe preciso de "chave de braço" resgatou a adaga das mãos de Jones e a cravou no seu coração. Julie, ao lado, chorava: sabia que sua vida estava fora resgatada por Wasford. Tinha a certeza agora que não deveria ter cruzado o caminho daquele estranho escritor. Sabia que apesar da podridão que sempre cercou a sua existência estava fadada a ter um final feliz. Seria com Wasford? Isso ainda não sabia. Soube sim, naquele momento que ele a amava e isso a faria tentar. E foi assim que ela olhou para Wasford, que cansado ofegava num canto do quarto e olhava atônito para as mãos vermelhas pelo sangue do escritor e para a adaga que jogara ao chão. Jones respirava com muitas dificuldades, principalmente agora quando sentia o aproximar do seu fim - Que pena! quase fomos à Paris - lamentou-se com as luzes lhes fugindo dos olhos e fazendo os rostos perderem suas feições. E então, com extrema dificuldade puxou pelo pouco ar que havia e inspirou o último cheiro do Paco Rabanne que impregnava o seu Hugo Boss. O aroma, másculo e famoso penetrou em suas narinas e isso o deixou feliz. Vencido, porém tentando manter certa dignidade deslocou a sua atenção na direção donde julgava vir os gemidos e sussurros do casal - sabia que a paixão fora a mais forte e vencera e eles copulavam ignorando o seu estado terminal - E então imaginou olhar para eles e pareceu vislumbrar cada estocada que se davam e penetravam. Sentiu cada um dos beijos que flamejava como tábua em fogueira. Ouviu todos os sussurros e murmúrios e daí sorriu. E nessa hora pensou na batina de um padre e em extrema-unção. Pensou em seus pecados e em arrependimentos, mas o tempo não lhe coube. Como nada mais se fazia necessário ele se foi. E o par, diante do corpo imenso e flácido vorazmente se amava, pisoteando sem perceber a imensa poça de sangue que ele se tornara"

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