quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O livro


“A tarde caía mormacenta na mesmice de sempre . E então se foi, isenta de surpresas, tão inabalada e sem ao menos sentir-se constrangida ou culpada por testemunhar o derreter do homem de gelo”


Na sala, um sofá gasto e puído nas braçadeiras abrigava um homem que acabara de ler o seu livro. A feição, carcomida de tempo e de lembranças, suspirou longamente, o que deixava transparecer que de alguma forma se impressionara com o que lera. E ele, com os olhos grudados nas últimas linhas, saboreava as amarguras que aqueles sentimentos lhes provocavam e ao ponto de relê-los pausada e sussurradamente para si.

Lido, fechou o livro e comparou as muitas semelhanças entre ele e “Sebastian” , o personagem central do conto. E como aquele, sabia que deveria se preocupar mais com a morte do que a conta de telefone em atraso. Evidente, tanto quanto o outro, sabia que esperar algo de alguém, fosse lá quem fosse, seria como acreditar em presentes do papai noel. Pensado nisso por instantes pousou o volume ao lado da perna mantendo-se fixado na cueca, notando as nódoas incrustadas nela, resultados de uma difícil masturbada da noite anterior. O senhor Galindez, fitava aquela coisa esbranquiçada e pensava naquilo que a sua vida se transformara, ou melhor, no que ela lhe deixara como herança. Contas feitas, os resultados apontaram na direção de uma cuecas manchada de porra, algumas roupas antigas e uma filha, distantemente perdida num desses frios países europeus.

Havia também a pensão paga pel Estado, mas, sobre essa nada à reclamar, já que, às custas dela é que sobrevivia: um amargo prêmio pelo avanço da idade. Quanto a Constanza, não via a filha há mais de 20 anos, e dela também de nada poderia se queixar, afinal, a distância e o tempo eram meros bofetões que razão lhe conferia, o seu direito de colheita por tudo aquilo que semeara – Resignou-se num afirmativo meneio de cabeça -

E na amargura, geralmente lhe batia a vontade molhar a goela . Levantou, foi até à cozinha, e olhou para uma garrafa de vodca vagabunda que adormecia num dos cantos da prateleira. Desapertou a tampa, mas, antes mesmo de despejar a bebida no copo, desistiu. Olhou para o aldo oposto e em cima da mesa a garrafa térmica ainda abrigava algum resto de café feito na manhã. Destampou, tomou um gole tanto frio enquanto inspecionava o vitrô da cozinha e se recriminava por não ter substituído os dois vidros quebrados. “Poxa, estão aí há mais de 2 anos” – resmungou ,inconformado com o próprio desleixo - Terminado, empurrou o copo para dentro da pia, onde pratos engordurados aguardavam pela hora da faxina. Na superfície, alagada, boiando como náufragos à espera de socorro, restos da comida do almoço conferiam à cena um toque nauseante. Lentamente deu as costas para a bagunça e refez o caminho de volta pelo corredor. De volta à sala, sentou-se no sofá e outra vez se fixou nas manchas e permaneceu fitando-as atentamente até perceber que elas formavam um desenho semelhante a cabeça de um leão. Deteve-se mais minuciosamente nos contornos da figura até se certificar que, sem dúvidas, pareciam com o animal – Sorriu e ainda sorria ao supor que a cueca fosse uma tela, e ele o pintor, jamais conseguiria grafar aquilo : “Meu Deus! Devo estar me tornando insano” –Disse alto para o espanto do gato que, preguiçoso ronronava no tapete, enquanto ele, com o dedo indicador, persistia no contorno do tecido e do leão feito de esperma.

E ele insistiu na figura até que o desinteresse se fez e cedeu lugar à sua rotineira melancolia. E o senhor Galindez , como de praxe à todo sujeito desesperançado, tinha seus cotidianos acessos de melancolia. E assim, como estivesse em profunda reflexão fechou os olhos e se manteve em silêncio absoluto. A quietude, o ar inerte e quente e um gato que deixara de ronronar permitiram sua mente produzir uma música do seu passado: E ela parecia tão real nas vozes afinadas dos garotos de Liverpool, que ele, como se fosse o 5º elemento da banda, empunhou a guitarra imaginária, e solando cantarolou desafinado: "La,La,La,lalalala, Hey Jude" - E aquela canção de Lennon e MCartney tornou-o frágil e o momento tão propício aos fragmentos do passado que ele, mantendo os olhos cerrados permitiu que eles viessem, em flashes.......

E eles vieram como fachos de luzes, e os fragmentos atravessaram o universos, as barreiras de tempo , travestiram-se de imagens multicoloridas e se instalaram em seu cérebro, reprisando todas cenas de outrora, tornadas agora na mais cristalina das realidades. E as imagens foram se catalogando dentro de si como num filme de sessão contínua , e ele relembrava as coisas boas e ruins que lhes aconteceram. E como estivesse sentado na poltrona de um cinema assistia o vídeo - tape dos tempos das tardes furtivas e ensolaradas e de noites de lua cheia e dos ventos fortes.

E ali, sentado na primeira fileira, socando garganta àbaixo pipocas hipotéticas, recordou as magníficas portarias e as escadas dos bons hotéis que freqüentou naqueles tempos de quase nenhuma dificuldade. E nesse devaneio, saído de uma nuvem de fumaça como se fosse um astro de rock, ele se via subindo os degraus, acompanhado de todas as mulheres que ele havia levado para lá. E uma por uma elas iam com ele. E lá no topo, o tapete rubro e felpudo se estendia e os deixavam à porta da suíte e onde suas “coelhinhas” seriam abatidas. E ele, costumaz em soberba e autoritarismo as empurrava para dentro, incitava, dizía-lhes impropérios, e ouvia com prazeroso sadismo as lamúrias e justificativas por estarem ali, mesmo diante de tantas ofensas de alguém tão vil.

E eram, justamente nessas horas que a libido mais lhe aflorava. E ele, tateava com a língua aquelas bocas vermelhas, mordia avidamente seus lábios carnudos e se excitava como um animal. E no auge da sua loucura desfería-lhes palmadas nos traseiros e as obrigava desfilar com os presentes trazidos de um sexshop fuleiro. E elas, após o ritual das prendas, desfilavam suas novas e diminutas calcinhas, rebolando as nádegas ardidas em brasas, escancarando-se ao mundano, seguindo um script pré determinado, deixando dominarrem-se para depois se verem copuladas selvagemente acima dos lençóis de linho branco.

E assim, ato posto e satisfeito, ele as mandava embora sem não antes dizer-lhes o quanto eram rameiras. E dito, na saída, humilhava-as ainda mais, esbofeteava-lhes as faces com algumas notas graúdas para depois atirá-las ao chão: " Sumam daqui putas rampeiras! Tomem o pagamento por seus buracos fétidos e mal lavados!" - Ele berrava- E elas, corredor afora, como os fervorosos em cultos, ajoelhavam-se e seus rostos quase tocavam ao chão ao recolherem as notas, para depois ouvirem o ranger e a seca batida de porta, enquanto ele, satisfeito, sorrisso de herói estampado no rosto, fumava charutos cubanos, par depois, como besta saciada, dormir e roncar..........


O ronco imaginário o fêz acordar-se assustado desse transe. Tentando firmar a visão em alguma realidade percebeu que os rostos de uma por uma iam desaparecendo da sua mente como sendo apagadas por mãos das quais não se viam os dedos. - “Sim! Eu sempre dizia para elas que eram vagabundas” – murmurou confessado num sorriso quase envergonhado

Novamente, pegou o livro e o abriu na pagina favorita. Ao reler, outra vez a tristeza estampou o seu rosto – Todas aquelas moças eram as mais fuleiras das prostitutas, mas hoje, daria o que tivesse para ter uma única delas ao seu lado: quem sabe assim terminaria aquela solidão desgraçada e e olhar para oito paredes que nunca lhe diziam nada - "Ah, se eu pudesse voltar no tempo teria feito tudo diferente!" – Concluiu olhando o vazio, sentindo repentinamente percorrer no corpo uma sensação estranha de uma dor intensa que começava na nuca, descia pelo ombro e depois morria no braço esquerdo.

E a dor que nunca sentira antes o incomodava. Inerte ele nada fez e nem procurou ajuda, e só ficava lá no aguardo de outras sensações: -"Será que vai doer ainda mais?" - Se perguntou - Ele sabia que teria de morrer um dia - E naqueles instantes de uma quieta aflição conscientizou-se que a morte estava mais ligada as dores da alma que propriamente do corpo. E, morte por morte, ele já sabia-se morto. - "È só o meu espírito que reluta, que resiste" - Convenceu-se, enquanto, mais uma vez, pegava o livro e o abria na última página -

“A tarde caía mormacenta na mesmice de sempre . E então se foi, isenta de surpresas, tão inabalada e sem ao menos sentir-se constrangida ou culpada por testemunhar o derreter do homem de gelo” - Ele ainda leu pela última vez antes que a dor desistisse do braço e avassaladora cravasse no centro do seu peito. E ela foi tão intensa e definitiva que o fez cair no chão e grunhir como um porco. Um pouco depois ele se fez totalmente imóvel. Seus olhos se mantinham inertes e arregalados, e da boca, entre aberta, um filete de uma baba cristalina corria na direção do queixo pontiagudo. O gato o olhou com desinteresse o exalar do último suspiro. E então ele se foi: Jorge Galindez, 68 anos , pensionista de um governo, não tão jovem quanto gostaria e nem tão velho quanto merecia ser.

E se foi sob um sol de uma tarde escaldante e todos os cachorros da vizinhança pareceram perceber e seus uivos de lamentos foram ouvidos como se fossem uma cantiga de adeus, e as moscas nas fétidas lixeiras zuniram alto e tão forte como se entoanssem uma irritante reverência, uma última homenagem ao velho companheiro.

E foi assim e dessa forma que ele simplesmente se foi e nada deixou de muito valor. Partiu sabendo que havia uma filha, distante, num desses países da europa e do qual nem o nome sabia. Se foi e fez retornar aos cofres do governo a miserável pensão , paga por gente, que ele sabia, nunca ter se importara com ele.

E partiu de forma tão imprevista e surpreendente que nem tempo houve, que lhe permitisse fechar o livro abandonado num canto de sofá. Uma obra que nada mais foi que um achado despretensioso, hibernado nas prateleiras de um sebo muquetrefe.
Um livro de nome e autor desconhecido, de folhas que não se faziam muitas, mas que tinha dito tanto em tão pouco que se tornou juntamente com o gato e a tarde quente que se respirava, as únicas testemunhas da sua morte. Da morte do homem de gelo.

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