segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Os novos gênios serão os donos do mundo


-Manhêê! – Resmungou o garoto para depois completar: -Por que o dele vai bem mais alto que o meu? – Enquanto apontava para o garoto que ao seu lado imprimia tal velocidade ao balanço que se elevava cada vez mais.


Dona Laura, afeita a satisfazer todas as vontades e mimos do fedelho, tentava em vão empurrar as suas costas na ânsia de fazê-lo voar alto e cada vez mais longe – Impossível! Não atingiam o objetivo –

E assim, impassível e contrariada ela se ateve aos movimentos do garoto ao lado e a sua perfeita coordenação de um conjunto  de pernas e tórax que, ritmados, faziam-no ir  longe. E lá ele pairava absoluto como se um condor tivesse subido aos céus para arrojar-se no mais espetacular dos rasantes. Porém a sua contínua eficiência  começava a incomodá-la ao ponto de achar  melhor retirar o filho dali para irem num novo  brinquedo. Conhecedora das rabugices da cria procurou por algum divertimento que não estivesse sendo compartilhado com outras crianças. Encontrado, caminharam para o gira-gira.

Gira-gira era uma espécie de carrossel, um desses que rodam em círculos e que as crianças os empurram e os alçam em pleno movimento. E assim foi, e tão  logo o filho tocou no novo brinquedo, ela, contrariada percebeu que o outro garoto largara a sua cadeira de balanço para vir brincar justamente no brinquedo que  escolheram. Chegando, arteiramente retirou o chorão do gira-gira com um empurrão nas costas e agarrou-se a uma das hastes metálicas do carrossel e imprimiu tal velocidade que Dona Laura sentiu vertigens só ao vê-lo girar. E evidente, o seu menino, impressionado com a agilidade daquele atleta dos brinquedos postou-se carrancudo ao lado da mãe,  declarando o seu aborrecimento:

-Manhêê! Esse menino deve achar que o mundo é só dele!

Dona Laura,   concordando com a opinião do filho olhou sisudamente para o intruso, porém obteve como resposta apenas um olhar vencedor do pequeno exibicionista,  que se expressou sem a necessidade de afirmar: “Dona, apesar de seu filho ser bem maior, eu sou melhor que ele”. E para a persistência do seu desconforto o garoto insistia em mantê-la  fixa em seu olhar. Dona Laura, tentou, tentou,  mas não conseguiu se esconder do seu olhar zombeteiro. E então como se acusasse o golpe,  questionou: “Por que meu filho não é tão esperto?”
Bem! O seu filho poderia não ser o melhor em tudo, afinal,  seria demais exigir isso dum garoto em idade tão tenra  – “E ele já me dá grande alegria ao ser um filho carinhoso, educado. Gosta até de literatura ô danadinho!” – Justificou consigo mesma ao olhar apaixonadamente para o seu guri.  Sim, aquele era o seu filho, seu sangue, alguém gerado com todo amor que se possa imaginar, e  não um exibicionistazinho qualquer – Murmurou entre dentes, satisfeita ao relembrar que o filho terminara a leitura de “O Pequeno Príncipe” – “Imagine! Apenas nove anos e uma leitura dessa?” – Balbuciou consigo e riu-se patética, orgulhosa.

Foi então que um sentimento de redenção tomou conta dela e a fez relembrar que também fora amante da literatura. Foi na juventude, idade de acalentos, de sonhos, de se tornar uma escritora de sucesso tal qual a Zélia Gattai, seu ídolo. Porém o sonho sucumbiu aos obstáculos impostos por críticas amadoras, o desinteresse de algumas editoras e de alguns pareceres nada lisonjeiros de alguns escritores amigos de seu pai, um renomado professor da língua portuguesa. Portanto,  os castelos em sua imaginação ruíram como os feitos de areia e que se desmancham sob a maciez das ondas,  guardando a necessária distância da amizade dos escritores, restringindo-se  unicamente  a admirá-los enquanto exercício de criação, posto   para ela que a literatura fabrica egocêntricos,  narcisistas, desvios que sempre passaram ao largo da sua natureza correta e leal.
Assim, vacinada contra aquela gente ela  aprendeu a relacionar-se e respeitar cada traço de caráter,  agora despoja dos sonhos impossíveis, libertando-se  das miragens que se locupletam quando os olhos se fecham, principalmente da maior de todas: de que um dia poderia se transformar numa autora de sucesso.

-Manhêê! Agora quero ir à gangorra! – O filho a resgatou das recordações apontando o dedo em riste para outro brinquedo. Ela assentiu com um meneio de cabeça e rumou com ele na direção daquele.

Caminhando, persistia certa curiosidade sobre o menino prodígio. Repentinamente parou e olhou para trás e sorriu ao notar que o serelepe ainda permanecia por lá rodando de forma insana aquele brinquedo maluco– “Que fique aí, seu feio, e deixe a gente em paz!” – Resmungou consigo  –
Contudo seu sossego não perduraria e terminaria justamente quando viu as ágeis e encapetadas pernas infantis  desistirem do gira-gira e virem correndo  aonde estavam . E tão logo chegou sentou-se numa das pontas da gangorra e impulsionou a parte inferior das pernas, elevando-se no ar. E do alto, ao descer  e não utilizando  os pés como freio para amortecer o encontro do assento contra o chão fez o garoto da outra ponta subir repentinamente e em  completo desgoverno. E como já era de se esperar,  na outra extremidade se encontrava  o filho de Dona Laura, que ante o violento  golpe da madeira contra o chão o fez  voar em direção à terra,  estatelando-se no chão.

-Manhêêê! Olha que esse menino me fez! – Gritou enraivecido ao tentar se erguer no corpo dolorido.

Ao conseguir erguer-se reparou que no tombo raspara o  joelho e que em  algumas fissuras vertiam  pequenos veios de sangue. Ao notá-los vermelhos o guri chorou até não mais não poder.
Para dona Laura foi a gota que transbordou. Ainda mais diante do ar zombeteiro que parecia que nascera no rosto daquele pequeno malfeitor. Desta vez não se conteve:

-Mas que diabos, guri! Você é impossível, mesmo! Parece-me evidente que com essa tua natureza darias num tremendo dum escritor fanfarrão! – Disse-lhe com severidade.

O garoto além de não sentir-se abalado ainda mantinha no sorriso um deboche que lhe emoldurava o rosto.
Contudo, ainda não foi o pior: Qual não foi a surpresa de Dona Laura ao ouvir daquele pirralho de nem  10 anos, a resposta:

-Escritor, eu? Jamais! Eu os acho vaidosos! – E continuou para o desespero da mulher:  Eu serei um teatrólogo! Desses escritores ególatras  só quero os textos, afinal, terei que adaptá-los! –

Mas o pirralho ainda não se deu por satisfeito:

-Claro! A senhora não teria como saber, mas, estou no meio da minha primeira experiência, tentando adaptar o mais comum dos  contos de Hem ; O Velho e o Mar. A tia já ouviu falar? - E dito isso, saiu em disparada na direção de alguns meninos que jogavam futebol, metendo-se entre eles, chutando a bola para longe diante o reclamo geral da gurizada

Perplexa, dona Laura permaneceu parada, sem ação, sem reflexo, sem nada, apenas reverberando dentro de si as derradeiras palavras do garoto – Hem, ao que o garoto se referia era nada mais, nada menos que Ernest  Hemingway!
Porém o que Dona Laura não sabia e jamais poderia  supor é que a poucos metros dali um irrequieto par de olhos a tudo acompanhava. Aquele garoto não deveria ter mais que onze ou doze anos dentro de um rosto desordenado, engraçado,   olhos protegidos por um enorme óculos de armação negra  e com lentes tão potentes que  pareciam o fundo de uma garrafa de cerveja. E o garoto usava  os polegares e os indicadores de ambas as mãos e com eles formava uma figura semelhante ao retângulo e a usava essa janela como se fosse uma câmera, a qual movia  de um lado para o outro na tentaiva de focalizar a cena num ângulo que lhe parecesse perfeito. Assim que julgou ser aquele o momento  manteve-se com os braços e dedos inertes enquanto que a sua boca fazia um barulho semelhante ao ruido dessas claquetes que se usam nos sets de filmagem.

Ninguém poderia imaginar, mas ali  naquele instante o destino lhe incumbia de registrar um fato de grandeza maior  ante as cenas tão pueris: Ali, aos dez de idade ela  via nascer o mais espetacular cineasta que o mundo haveria de reverenciar.
E o que ela  também não sabia era que,  Fellini, Scorsese e Spielberg jamais lhe seriam sombra.

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