quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Esquizofrenia

-Carlão, Carlão! Um macaco enorme mordeu o meu traseiro! – Ele proferiu caminhando ao seu encontro na entrada de casa. Assim que se viu diante do amigo, olhou-o e girou  lentamente sobre o próprio eixo como um pião que perde a força.

-Era um macaco imenso! Olha, mordeu bem aqui! Olha as marcas dos dentes! -Gemia dolorido enquanto rodava cada vez mais lento até cessar por completo.

Esse era o Astô, como Carlão gostava de chamá-lo.
Civilmente, Astolfo Oliveira, um excelente pai, marido e enfermeiro, definitivamente um grande sujeito,  porém, um pobre diabo.
Tudo aconteceu a partir de um dia calorento de julho de uns dez anos atrás.

Carlão também estava na escuridão daquela noite quando ouviu o grito gutural do amigo, um lamentoso uivo de perda que varou o vazio das três casas que os separavam.
Por telefone conseguiram avisá-lo no manicômio, seu local de trabalho, meia hora antes.
Ele chegara rápido, de táxi. Viera da entidade mantida pelo estado que cuidava de todos os tipos de dementes que não tinham condições de sustentar qualquer tipo de tratamento.
Perfez o caminho rezando  – A voz de quem o avisara ele não conseguira discernir, ela apenas o comunicara “ Venha urgente, é necessário tua presença” e desligou - Somente isso e nada mais – “ Pai nosso que estais no céu. Santificado seja o vosso nome...” Ele persistia na reza e na fé diante o desdém do motorista, provavelmente ateu. Astolfo rezou católicamente  e permaneceu rezando até desembarcar no destino.
O que Astolfo ainda não sabia era que apesar de tanta fé  as preces não evitaram os acontecimentos e nem naquilo que ele viria a se  tornar.
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Fora dolorido para Astô ver o camburão do Instituto Médico Legal levar os corpos da esposa e da filhinha acondicionados em imensos sacos de um plástico grosso e negro – Sim, fora assassinato. Melhor dizendo; Auto-assassinato. E não foi por outras mãos. Foi por mãos delicadas que fez o fogão aspirar a mortalidade do gás contido no botijão.
Antes, as mesmas mãos minuciosas e femininas vedaram cuidadosamente todas as frestas de portas e janelas com panos de sacos de farinha, desses comprados em supermercados.
Os motivos? Bem...os motivos nunca foram satisfatoriamente elucidados, ainda mais porque Astolfo era a própria dedicação à família – Talvez a intensidade daquele amor não o permitisse discernir o conturbado comportamento que Aimeé apresentava há algum tempo.

Quanta ironia com Astolfo. Justamente com ele que nem tempo lhe sobrava para engolir o jantar. Justo com ele que saia esbaforido de casa, na direção do seu sonho, à caminho das aulas na Faculdade de Psicologia. Quanta dor. Justo com ele que tanto convivia com todos os tipos de mentes perturbadas.

-Olha Carlão! Veja a marca que aquele macaco miserável deixou em minha bunda – Sussurrou tocando-o no ombro e depois direcionando a mão para o cinto de sua calça; queria que o amigo visse as marcas deixadas pelo primata.

Havia sido triste o funeral celebrado debaixo de chuva torrencial. Não era Astolfo que estava ali. Era um morto-vivo, sem reação, sem emoção, sem lágrimas, sem ranço de saudades. Era apenas um pobre diabo que se encontrava ali, um olhar perdido nas águas, nas centenas de formigas que labutavam próximas às covas e dos seus sapatos barrentos.
Duas semanas após ele foi internado na mesma instituição e nunca mais se recuperou –

Carlão o visitava regularmente, afinal, Astô fora o seu único amigo de infância e juventude. No primeiro ano de tratamento e nos seus raros momentos de falsa lucidez, Astô se imaginava na pele do Dr. Astolfo. Nessas ocasiões era flagrado sentado nos bancos das ruazinhas arborizadas, consultando aos demais pacientes. Era um fato engraçado, todos riam; médicos, enfermeiros e a família de Carlão. Ainda pela fila de pacientes que se formava, além do avental de médico que Astô usava e que fora surrupiado no descuido dos funcionários da lavanderia.
Em outras oportunidades, inesperadamente ele se tornava tão agressivo que eram obrigados a enfiar-lhes a camisa de força, já que a contenção de gastos com medicamentos apropriados para aquelas situações estava em pleno andamento.
E a crise da instituição veio após sete longos anos, quando o Estado alegando impossibilidade de manter o manicômio, o desativou.
 
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Hoje, Astô mora num quartinho que Carlão mantém anexo ao quintal de casa. Lavam-lhe as roupas, dão-lhe comida e medicamentos quando necessários. Hoje ele é calmo apesar dos distúrbios. Não há mais a rebeldia, arrefecida pelos milhares de comprimidos de tarjas negras consumidos durante anos e anos de tratamento.
Hoje, Astô mais se parece uma criança.
Na primavera poda a grama e molha a si e as plantas que dispôs com zelo num pedaço de terra que cultiva ao lado do seu cômodo. No outono é comum surpreendê-lo aconselhando as rosas, declamando inesquecíveis poesias para as margaridas. E no inverno é tristonho vê-lo chorar com os lírios orvalhados nas manhas frias e de névoa densa.

Na atualidade, dificilmente alguma lucidez o contempla. E quando ela o toca Carlão, ao chegar do serviço, percebe; os olhos da esposa e da filha trazem marcas de água – Nesses dias Astô relembra da mulher e da filha, que viva, estaria com a mesma idade de Tammye, filha do seu protetor.
E ele chora. Chora pueril, birrento, sendo necessário ficar atento e retirá-lo frequentemente da cozinha, já que ele insiste em desparafusar a válvula do botijão para levá-lo além dos azulejos das paredes. E essa incansável atividade, de ir e vir, associadas às outras tensões psíquicas o confunde e ele chama a mulher e filha de Carlão pelos nomes de Aimeé e Narinha, as criaturas que mais amou nessa vida.

Às vezes Carlão fica tão amargurado com a aspereza dessa realidade que pensa em reagir: “Cara, como você pode ter permitido isso acontecer?“ – Imagina-se questionando o Onipotente – Passado o devaneio ele se pega no ridículo daquilo e então sossego no seu canto.

-Ó! Ó Carlão! Ó que o macaco bobo me fez! – Ele murmura virando as nádegas. Suas calças estão arriadas até os joelhos e ele, envergonhado abaixa discretamente a cueca samba-canção para que Carlão possa ver as marcas imaginárias.

E Carlão examina o local com a mesma atenção que os ginecologistas dedicam às suas pacientes – Tenta ser convincente -


-Ô macaco filho da puta, Astô! – Exclama, para depois austero reconfortá-lo com tapinhas nas costas – Amanhã a gente vai atrás desse bicho safado! – Sentencia convicto.

Então, Astolfo ri. Ri divertido e serelepe como um garoto que acaba de ganhar a sua primeira bicicleta. E sorrindo, enlaça o obeso pescoço de Carlão com seu braço trêmulo e não mais falam no assunto.

Eles entram juntos pelo jardim e se encaminham para sala. Eles sabem que lá há gente sorridente e confortáveis cadeiras com encosto e assento de curvim .

Eles sabem que o jantar fumega e que depois das mãos lavadas e dos cumprimentos carinhosos a refeição será servida.

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