quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Feliz Ano Novo, Margarida!

Estranhos eram os olhares dirigidos para nós, ali no meio-fio; eu, um homem de 40,  faces rubras e ao meu lado a estúpida garrafa de champanha, sem bocal. Nem eu sabia ao certo da  proeza ao quebrá-la daquele jeito. Só me lembro de tê-la chocado contra a calçada  numa estocada perfeita, “Touché!” e depois o tilintar e a decepção por ter  degolado o  gargalo e não a base, como era de se esperar –  E foi exatamente assim que a coisa ocorreu. Sentado,  eu olhava por todos os lados e percebia um mundo cheio de olhares. Não eram unicamente  os olhos ou  ouvidos, também  as mãos,  bocas, gritos, castanhas portuguesas, leitoas e perus assados. Sim! não podia esquecer-me das frutas e bebidas, aliás, muitas bebidas, coisas  puramente óbvias naquele 31 de dezembro.

Evidente, eu ja me encontrava  bêbado. Eu amanhecera enchendo o caco com misturas  oportunas e  tão fatais como os vinhos ordinários. Havia mais que vinho. Havia uma  garrafa de uma vodka de categoria duvidosa que ganhara de um cliente,  além de duas caixinhas de 12 latas de cervejas vagabundas.
E parecia que o pior  sempre estava por me acontecer quando naquele estado; neurastênico. Eu sabia que  desavenças com  Margarida se tornariam inevitáveis. E ela aconteceu apesar de não ter me sentido responsável.
Tudo havia ocorrido há duas noites anteriores, dia em que fomos fazer  compras no melhor shopping center da cidade. Recordo que ao sair critiquei o  seu vestido negro, ja que este lhe acentuva demasiadamente a avanjatada região do glúteo. E não era só isso:  Aquele vestido  aliado  ao palmo acima dos joelhos era pura nitroglicerina, mistura explosiva, uma mina terrestre que  se tocada levaria nosso relacionamento aos ares. Às duras penas ela me convenceu de quanto aquilo poderia ser  normal, além de achar que eu estava sendo um mero apostador ao dizer a cor da  sua calcinha vista através das tramas escuras do tecido. Contudo, no shopping eu percebi diversos homens olhando para trás na ânsia de confirmarem se realmente o que viam era a branca a calcinha  de minha parceira. Como não poderia deixar de ser aquilo me deixou furioso,  e isso, somado ao ciúme  precipitou o contato com a mina, e daí à sua consequente explosão.

-Você tá doido homem? - Eu não dei mole pra ninguém! Larga de ser besta! - Nervosa ela se defendeu.

Os gestos bruscos e a tonalidade das vozes alteradas chamavam a atenção das pessoas, e algumas paravam, disfarçavam que viam vitrines, mas o que queriam era ver onde chegaríamos.  Nós acabáramos de sair da loja de calçados onde ocorreu o fato.

-Tava dando mole sim. Eu vi!  E ainda percebi você facilitando pra ele. Notei quando cruzou as pernas la no alto para ele olhar por entre a abertura do vestido! -  Acusei.

Talvez eu tivesse exagerado, mas, não poderia recuar, não agora.
Incomodada com as pessoas nos olhando, Margarida andou apressadamente enquanto eu, deixado para trás, a chamava e apertava o solado na tentativa de seguir seus passos irritados  e  alcançá-la.
Constrangida com o espalhafato do meu chamamento  ela freou e deixou-se tocar no braço e não mais respodeu às minhas acusações. No carro e durante o trajeto não trocamos uma única palavra. Ao chegarmos em casa continuamos em silêncio e fomos dormir, ela na cama, eu no sofá - Eu era um cara duro, muito duro.
Na manhã seguinte após o banho ele conseguiu o milagre de penetrar na sua agarrada calça jeans e colocou uma delicada blusinha de voil com bordados florais. Feito, passou a escova pelos cabelos, se maquiou e retirou suas perfumadas  roupas da gaveta da cômoda e as acomodou numa mala que era minha e,  se foi.
E eu, um orgulhoso, um  cara durão e sem mala  nada fiz para impedir.

E agora me encontrava desse jeito, saudoso, sentindo a falta de Margarida e das coisas que  me deixavam louco, excitado, prostrado. No fim, ela e seu temperamento tinham a consciência dos efeitos  que causavam em  mim, e por isso, talvez,  o abuso.
Contudo  foi  aquela sua natureza indômita a coisa mais difícil e que não consegui lidar.
Portanto, noves fora,  eu e minha garrafa sem bocal permaneciamos ali, estúpidos,  olhando para o nada,  remoendo  saudades e na espera de que algum milagre pudesse acontecer.

Mas não aconteceu.  Agora, duas casas abaixo eu via os garotos infestarem a via numa enorme algazarra  – “Feliz Ano Novo” – gritavam para quem passasse –  Nos céus, repentinamente  eclodiam os fogos de artifícios,  clareando o firmamento com seus efeitos especiais, derramando-se na noite como  se fossem cachoeiras coloridas desprendidas dos olhos de Deus. E os clarões de tonalidades fortes aos poucos perdiam suas luminosidades até definharem, inócuos e em apenas um show à céu aberto,  sem circo e sem palhaços. E tão logo esmaeciam outros fogos de artifício eram lançados na negridão, agora mais potentes, oceano de cascatas fosforescentes que resplandeciam ante os olhares embevecidos, até que  despencando dos ceús apagavam-se outra vez. Eu assistia o espetáculo de pirotecnia  enojado daquele vício de todos os  anos. Entediado o suficiente com a farsa da época, com os sorrisos amplos,  os tapinhas nas costas de gente que às vezes eu nem mesmo conhecia. “ Feliz Ano Novo” me diziam com sorrisos que deixavam suas arcadas dentárias à mostra – “Feliz Ano Novo” invariavelmente eu respondia.

"Ah, Margarida! três minutos para o ano novo e eu estou aqui, tão só!" – Gemi enquanto os ruidosos garotos aproximavam-se subindo a rua e vindos em minha direção.

-Feliz Ano Novo, tio! –  Um deles  berrou ao passar por mim-

Eu nada respondi.

-Tio, por que o senhor ta com essa garrafa quebrada? – Quis saber  o mais baixinho deles ao percebê-la na minha mão – A sua curiosidade me irritou.

-Pra socar no teu rabo! –

Eles olharam assustados e depois gargalharam –  Seria sempre assim? Eu era um tremendo fiasco e não conseguia impor respeito nem àquela meia dúzia de garotos de 12 anos.
Em seguida continuaram a subida desejando um bom ano aos que topassem pelo caminho.

O céu agora fosforescia neon. Chuvas brilhantes se desprendiam de núcleos maiores e desabafam como gotas sonoras dos ensurdecedores  rojões. Os cachorros latiam  assustados, incomodados, e isso incomodava a mim e  aos meus ouvidos. Na casa vizinha à minha, de dona Sara,  as luzes permaneciam acesas e eu ouvia o alarido que a sua gente proporcionava – Era ½ noite, em ponto -

“Adeus Ano Velho, feliz Ano Novo....” -  Num  cd, Simone cantava para pessoas entusiasmadas.
A melodia  tanto chinfrim  transpassava as paredes da sala de estar de dona Sara para ganhar a rua e a abraçar a esperança das pessoas.   Apesar da letra  otimista a canção me levou à melancolia.  “Que tudo se realize no ano que vai nascer” - Eu murmurei com  Simone enquanto eu tentava beber o pouco da champanhe que sobrara na garrafa. Juntei meus lábios aos cacos pontiagudos e, assim que entornei e o  líquido escorreu  senti  pequenos estilhaços de vidro  machucando minha gengiva, esfolando-me a língua.  Cuidadoso,  separei os estilhaços  trabalhando a língua  e os dentes e depois os cuspi – Um deles deve ter me causado uma leve fissura pois sentia o gosto de sangue ao engolir a saliva.

-“Muito dinheiro no bolso. Saúde pra dar e vender” – Desafinado eu persisti  sussurrando, porém  o meu pensamento não estava ali; Estava com  Margarida e no que ela poderia estar fazendo naquele instante. Provavelmente numa hora daquelas ela estivesse festejando com um dos seus cativos clientes. Provavelmente um sortudo que teria uma noite de serviços de primeira, gratuito, brinde da casa. Provavelmente também......
"Provavelmente o que, seu idiota?" – Questionei-me ao ver-me quase refém daquilo -  Nada! Provavelmente, nada!  Respondi  bruscamente para a minha raiva.

A noite seguia esplendidamente  feliz para alguns e isso me causava  inveja. Inveja dos festejos, inveja da casa de dona Sara e da sua  família sorridente.
Outra vez meu pensamento voou até Margarida e imaginei-a agora estirada em lençóis de cambraia numa suite presidencial de algum motel grã-fino. Talvez naquele minuto ela estivesse  sussurrando palavras que denotassem algum amor, talvez sendo possuída de quatro, sussurrando prazeres,  no leito, no chão ou numa banheira de hidromassagem..
Talvez...talvez...talvez... - Murmurei comigo ao voltar para o mundo dos vivos.


Eu não devia, mas me sentia incomodado por esses pensamentos. Não que ela não tivesse o direito de dar seu corpo a quem quisesse. Claro, podia, afinal,  Margarida era uma profissional do sexo e  sabia como ninguém  valorizar os  prazeres seus e do homem com quem estivesse.
Tudo bem, talvez a minha revolta fosse porque não queria que isso acontecesse naquele noite, não naquela noite.....Ah, Margarida!por que? por que?

-Sr. Zambini! Um feliz ano pro senhor! Eu estava olhando o senhor lá de longe e o vi sozinho na calçada. Aí  supus que pudesse estar com  fome –  Era alguém que me acordando do pesadêlo colocava algo entre as minhas mãos.

Era a dona Sara, e ela trazia um prato enorme e onde se acondicionava farta porção de arroz, um pouco de maionese, fatias deperu e  lombo defumado. O arroz ainda fumegava e o cheirava bem.
Apesar do aroma eu não estava com  apetite, mas não queria me desfazer da sua boa vontade. Lentamente espetei o garfo numa fatia de lombo, o levei à boca  e o mastiguei. Eu nada dizia, apenas abria e fechava mandíbula como se cão magoado, e o que deixou a pobre da dona Sara visivelmente constrangida. Desajeitada e sem saber se deveria continuar ali,  ela se despediu:

-Seo Zambini, vou indo. Ainda tenho que fazer os pratos dos meninos. Sabe como são essas crianças de hoje! Querem tudo na mão! Quando tiver um tempinho o senhor me devolve o prato – Disse num tom amigável e gentil. - Bom Ano para o senhor! – Completou com um sorriso simples e saiu.

Quando ela se foi me senti mal com aquilo. No meu mundo as pessoas não tinham por hábito serem tão solícitas assim. Eu fora grotesco e mal educado com ela. Está certo que  estivesse bêbado, mas o que não  significava  que tivesse o direito de ser indelicado da forma que fui.

-Dona Sara! Dona Sara! – Chamei-a quando ja tinha se afastado. Ela virou-se surpresa.

-Olha, obrigado por isso! Eu quero que a senhora e sua família tenham um feliz Ano Novo!
-Desejei enquanto procurava por algum entusiasmo que me fizesse mostrar os dentes. Ela  olhou e sorriu. Um sorriso singelo, bom, de gente caridosa e de quem se preocupa com o próximo, seja  quem for.

-Obrigado seu Zambini! – Ela agradeceu cruzando graciosamente  os braços sobre o peito e depois  partiu.


Eu a olhei seguir no seu caminho. De repente tive vergonha de mim, do que  era,  e no que estava me tornando. Pensei em Margarida novamente. Talvez ela estivesse copulando  daquele seu jeito doentio e devorador.

-Feliz Ano Novo, sua puta safada! – Brindei oferecendo o prato ao vento.

O amanhã viria e seria sempre um novo dia apesar do dia anterior. Sempre fora assim.
Margarida ainda haveria de estar com muitos homens, brigando ou sendo punida óra por um, óra por outro. Era dessa forma que queria dirigir a sua vida. Era um jogo no qual ela escolhera um lado e eu tinha que aceitá-la do jeito que decidira. Lembro-me que tentei afastá-la da prostituição,  em vão. Recordo-me como se fosse hoje....
"Escuta aqui meu chapa! Está pra nascer o homem que colocará esporas em mim! - Repreendera-me arrogante naquela feita - Vocês são sempre assim; Compram xampus, condicionadores, esmaltes pras unhas e já se julgam os donos do barraco –  Resmungou  levantando-se do sofá de casa.  Ela ia dar no pé,quando a acalmei: "Está certo! Sem xampus ou absorventes" - Concordei.
Foi então que ela deu o melhor dos seus sorrisos,  beijou-me a boca e apertou as bolas do meu pau até que eu implorasse por trégua. Era isso. Fora justo, e se não fosse o maldito ciúme  jamais  teria do que queixar.

Ainda sorria das lembranças da cena quando os garotos voltaram e passaram por mim. O baixinho vinha à frente como o mais destimido capitão.

-Hey garoto! – Chamei-lhe a atenção – Ele estancou e me olhou desconfiado.

-O tio estava com  aquela garrafa quebrada na mão porque é um babaca! – Disse-lhe num tom amigável de quem tenta uma reaproximação.

-Ah...isso eu ja sabia, tio!  Conta outra, vá!– Respondeu e olhou para os demais garotos. Todos eles riram. Eu também ri, achei engraçado aquele seu jeito de falar.

-Feliz Ano Novo, cambada de filhos de uma puta! – Brindei-os erguendo novamente o meu prato de comida.

-Feliz Ano Novo por senhor também, tiozinho! – Eles bradaram e seguiram descendo a rua.

A vida continuava. Eu continuava. Todos aqueles que necessitavam de alguma esperança tinham que continuar. Então pensei em Margarida e nos seus sussurros. Pensei  na sua pele aveludada, nos peitos fartos e na bunda libidinosamente torneada. Pensei nela  numa banheira de espuma, no cheiro bom da fragrância  e ela toda nua num sorriso descarado para o sujeito. Depois imaginei-a copulando na cama redonda  num papai e mamãe sem graça, observando pelo espelho do teto o monte de gorduras localizadas e a flacidez das nádegas do seu cliente. E era assim e jamais seria menos que isso! A profissão que se dedicara de corpo e alma, aliás, mais de corpo, era tal qual o ditado popular   " Nos cavalos dados não se olham os dentes". Então simplesmente eu analisei todos os pormenores, todos os lados  e relutei  bastante mas me dei por vencido. Talvez para  Margarida a prostituição não devesse ser encarada pelo aspecto financeiro, ou pela grana que entrava fácil. Talvez a prostituição fosse para ela  foss a única forma de viver. Um estilo próprio e  onde seria necessário compreender que o único dono que a possuia era o mundo, o acaso.

-Feliz Ano Novo, Margarida! Esteja você onde estiver! - Desejei-lhe e brindei novamente  com o prato semi erguido. Depois garfei uma generosa fatia de peito de peru e um pedaço de pêssego em calda. Tudo, tudo deliciosamente saboroso. 





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