sábado, 2 de janeiro de 2010

Véio China e a Sessão Espírita

Fazia uma penca de meses que eu não falava com o Véio. Não que houvéssemos nos desentendido, por dinheiro ou mulheres, únicos motivos para dois homens adultos e imaturos se digladiarem. Nem mesmo questões literárias, já que a admiração era mútua. Em verdade, havia eu abandonado por uns tempos a esbórnia etílica da qual, vez por vez, nós éramos parceiros. Necessitava de um afastamento da vida mundana em virtude de certas escolhas. Como dizia um amigo em comum, “evangélico até o último fio do rabo”, segundo o China; eu agora “servia aos espíritos”. À época da minha conversão, expliquei ao Véio os motivos de tal escolha. Ele olhou de lado, bebericou do seu bloody Mary e soltou o seu já clássico:“ Talsquepariu, cumpade Lameleque!”
Contudo, ele não estranhou o meu telefonema naquele começo de tarde.
- Véio China?
- Veja se não é o meu cumpade Lameleque! –Saudou-me em voz pastosa para em seguida fulminar – Ainda anda naqueles trecos de falar com os mortos?
- Na verdade, é este o motivo do meu telefonema. Um espírito baixou numa sessão mediúnica e deseja levar um lero contigo – revelei desprovido de delongas.
Breve silêncio do outro lado da linha
- Homem ou mulher, cumpade?
- Espírito não tem sexo, mas eu diria que ele tem uma personalidade feminina.
- Mulher? Então eu estou dentro. Quando é a sessão?
- Próxima terça-feira, às 20 horas. Eu te pego em casa e, Véio, por favor, esteja sóbrio.
- Cumpade Lameleque, vá cagare! Te espero às sete e meia.
Na hora marcada eu estacionei em frente à pensão onde o Véio se escondia e britanicamente vi a sua figura surgir através umbral da porta. Era o mesmo China de sempre. Aquele jeitão desleixado, terninho amarrotado, cabeleira branca penteada para trás e os indefectíveis óculos escuros. Percebi então que nunca havia visto o China sem aqueles óculos, fosse dia ou noite.

Cumprimentou-me com o entusiasmo de sempre e dentro do carro relembramos farras, bebedeiras e encontros literários. Véio demonstrou interesse na sessão espírita, perguntou o nome de morta e diante da minha resposta percebi uma interrogação surgindo em sua testa enrugada.
- Norma? Não me lembro de nenhuma Norma, cumpade.
- Talvez seja uma conhecida de outra encarnação.
- Ou a identidade verdadeira de uma falecida piranha. Vai ver que eu só conhecia pelo nome de fantasia, nénão?
Chegamos ao centro espírita poucos minutos antes do inicio da sessão. Apresentei o Véio aos outros participantes da reunião, não mais de cinco ou seis gatos de meia-idade pingados. Véio interessou-se pela mecânica da sessão e lamentou que os kardecistas não se utilizassem de uma bebidinha para atrair os espíritos, comentário que constrangeu os participantes, em especial dona Dalva, poderosa médium de efeitos físicos e cara de Jabba do filme Guerra nas Estrelas.
Fomos todos encaminhados para uma sala no segundo andar do centro, onde uma grande mesa forrada com uma tolha branca era a coadjuvante da decoração em que se destacava uma cabine de madeira cujo portal era protegido por uma alva cortina. Dona Dalva dirigiu-se para o reservado enquanto o restante do grupo sentou-se em volta da mesa.
O coordenador do grupo leu uma mensagem preparatória e fez uma prece rogando sucesso para os trabalhos da noite. Em seguida, apagou as luzes deixando o ambiente iluminado por uma pequena lâmpada vermelha. O China, sentado ao meu lado, cutucou-me com o cotovelo para em seguida sussurrar:
- Já frequentamos muitos puteiros de luz vermelha, nénão, Lameleque?
Implorei ao Véio por silêncio e concentração, como quem ralha com uma criança. Como resposta, recebi um sorriso debochado.

Permanecemos alguns minutos em silêncio até que a câmara reservada começou a emitir sinais de algum movimento. Em seguida, a cortina moveu-se e de lá surgiu uma entidade feminina envolta em um material semelhante à gaze. Apenas seu rosto era visível por detrás daqueles panos que envolviam um corpo escultural. Um rosto lindamente esculpido. Olhei o China e percebi riso de velho safado subindo por entre as bochechas.
Norma postou-se ao lado do Véio que se virou para admirar a figura do outro mundo materializada. Foi então que Norma falou.
- Henry Chinaski, trago novas da outra dimensão para ti. Esta vida no planeta é uma gota d’água dentro do oceano da eternidade. A verdadeira vida é a de cá. A de vocês, encarnados, apenas uma aprendizagem na experiência da carne. E você não tem aprendido muito, Henry Chinaski. Lameque também não, mas ao menos anda se esforçando, a despeito das escorregadas. Deixemos porém o cara de limão para outra oportunidade, pois o objetivo da minha vinda hoje é você.
- Mas a gente já se conhece, Normita? – Perguntou o Véio.
- Sim, Chinaski. Fomos prostitutas sagradas em templo romano 500 anos antes da vinda do Cristo.
- Talsquepariu! Puta, eu? Difudê isso...
- Sim, Chinaski e das mais devassas. Por isso você reencarnou como homem para que não usasse das facilidades que um corpo feminino possibilita e não levasse homens à loucura como fez anteriormente. Porém, notamos que o tiro saiu pela culatra. Sua libertinagem escrevendo, falando e, sobretudo, relacionando-se o seres do sexo oposto é a prova.
- E cumpade Lameleque? Foi puta também?
- Torno a dizer que Lameque não é objetivo da nossa reunião mas, ele já sabe do seu passado como autor famoso que usou mal seus talentos literários. Por isso voltou como o escritor fracassado e medíocre que todos conhecem.
O Véio soltou uma gargalhada e novamente me cutucou. Os outros membros da sessão permaneciam concentrados. Norma prosseguiu.
- Dada as circunstâncias, Henry Chinaski, viemos lhe propor uma troca: ou você toma jeito ou terá que reencarnar como uma hermafrodita na próxima vida para não usar dos atributos do sexo como instrumento de atraso em sua jornada rumo à evolução.
- Sifudê, Normita! Não quero ser hermafrodita! O que devo fazer?
- Largar a bebida, a luxúria e os escritos libidinosos.
- Prefiro o hermafroditismo então. Será uma nova e interessante experiência. Já pensou, Lameleque? Comer a mim mesmo?
Norma pareceu decepcionada.
- Bom, quem avisa amiga é...
Em seguida, a entidade rumou em direção ao reservado onde Dalva se encontrava. Quando o Véio pôs os olhos na imensa bunda da entidade materializada, perdeu o controle e, levantando-se, passou a mão traseiro redondo de Norma, enquanto gritava seguidas vezes: “Rabão, hein! Rabão!”
Em contato com a mão do China, Norma começou um imediato desmaterializar, derretendo diante de nossas vistas feito um sorvete ao sol. Instalou-se verdadeiro pandemônio na sessão. Os participantes, furiosos, censuravam em altos brados o Véio. Temendo um possível linchamento, procurei uma saída.
- Gente, esquecemos Dona Dalva!
Os membros da reunião largaram o China e correram apavorados em direção à cabine. Puxaram a cortina e encontraram a cover do Jabba desmaiada. Aproveitei o descuido e tomei o o braço do Véio, fugindo ambos do centro espírita.
Dentro do carro, de volta para a pensão, não pude deixar de expressar a minha revolta:
- Seu fêdaputa! Tu podia ter matado Dona Dalva!
- Por quê, Lameleque?
- Era ela que estava doando o ectoplasma para a materialização da Norma. Quando você passou a mão na bunda do espírito abalou todas as estruturas vitais da médium.
- Numa boa, cumpade. Cê acredita mesmo nesse negócio? Me pereceu enganação. Para mim, era a Dalva disfarçada, com efeitos especiais, é claro. O rabo pelo menos parecia do mesmo tamanho.
- Sifudê, Véio!

Continuamos boa parte do trajeto em silêncio. China tratou de quebrá-lo.
- Engraçado, Lameleque, o corpo da Normita parecia ser feito de algodão.
- É que é muito difícil, tanto para o médium quanto para o espírito, o processo de materialização. Por isso a textura do corpo não é exatamente igual ao dos encarnados. Como também é muito difícil formar o corpo, eles preferem dar atenção a face, envolvendo-se em ectoplasma condensado semelhante à gaze. Daí vem as histórias de fantasmas envoltos em panos ou lençóis.
Captei um riso abafado. Na certa pensei que o China debochava das minhas crenças. Nasceu em mim uma vontade de parar o carro para esbofeteá-lo. Foi quando ele mais uma vez surpreendeu:
- Qual será o gosto de ectoplasma, cumpade?
- Gosto? Como assim?
Em resposta, o China tirou a mão direita do bolso do paletó. A freada foi brusca. Xingamentos e buzinas ecoaram por toda a avenida. Espantado, vislumbrei a mão do China lambuzada por um elemento branco, viscoso. Tratava-se de uma pequena quantidade de ectoplasma que ficara em sua mão após a bolinada na Norma. Véio cheirou e depois provou a substância. Passeou a língua pelos lábios, fez cara de degustador profissional e decretou:
- Talsquepariu, cumpadi Lameleque! Tem gosto de chantily!

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*** Mais uma grata homenagem  que recebo de um dos melhores escritores  que conheço e que também posta no Orkut - comunidade Bar do Escritor -  O seu nome? O seu mome é Zulmar Lopes, popularmente conhecido como Lameque, porém, sempre cumpade Lameleque para o Véio China. Dizer que adorei seria óbvio demais assim como outros que o leram. Porém eu tive um ataque de riso diante tanta criatividade, inclusive a que me faz rotulá-lo como um  grandes escritor ainda não famoso com suas letras. Talvez seja somente uma questão de tempo - Aguardem!

Valeus a homenagem, grande véio Lamão!!!

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