Quarta-feira, dez dias haviam se passado do episódio com o rapaz do metro. E eu, fanático por esse tipo de transporte lá estava novamente. Um sol abrasivo e desumano latejava lá fora porém sem que me desse aos calores daquela tarde insana; eu permanecia sentava no fresco de um banco de metro que me deixaria na Estação Sé. O trem seguia viagem e vagão não se lotara completamente , afinal, 15 horas ainda não se traduzia em horário de pico. Eu o pegara nas Clínicas. Chegando à estação Consolação, vi embarcar na composição alguém muito semelhante ao Allan, um dos poetas da comunidade. Claro, até então eu não tinha tido o prazer de conhecê-lo pessoalmente, mas o ar feudal que revestia aquele ser de calça jeans e camiseta negra, juntamente com seus longos cabelos faziam-no muito semelhante ao sujeito do avatar do Orkut. Entrando no vagão sentou-se à minha frente e estirou-se no banco e olhou em volta e depois na minha direção. Ao fixar os olhos em mim pareceu surpreso.
-Opa! Será que o senhor é quem eu estou pensando ? - Disse-me. Ali eu tive a plena certeza que era ele; Provavelmente deve ter acontecido com ele o mesmo que comigo.
-Já sei já sei o que está pensando! - Respondi - Sou ele mesmo, meu bom amigo Allan! O velho fanático por metro. O próprio, Véio China, pelancas e ossos.
Ele sorriu marrom num tom abaixo do castanho dos seus olhos. Em seguida levantou-se do assento e veio sentar-se ao meu lado. Permanecemos em silêncio por alguns instantes até que puxou conversa:
-Véio, a coincidência de estarmos aqui ta me fazendo lembrar daquela sua insana conversa com aquele tal de Hortênsia.
-Ah, Allan! Apenas conversas de metrô! - Sorri e continuei a olhando para a escuridão através da minha janela. Um pouco mais e entraríamos na próxima estação.
-Poxa, China, que cara filho da puta aquele, heim! – Exclamou num tom de desagrado enquanto meneava a cabeça, negativamente.
-Está falando do Quimera? - Perguntei. Claro, eu estava dando uma de joão sem braço.
-Sim! Ele mesmo! Quimera, Hortênsio, Primavera, é tudo a mesma merda! Não é verdade, China?
-Hum..,acho que sim! Fedeu, é bosta! Mas... na verdade; aquele sujeito era um grandíssíssimo dum filho da puta! – Acabei concordando.
Allan silenciou-se. Porém algo parecia o incomodar.
-Véio, será que o destemperado se reportava a mim quando se referiu ao tal Clube do Gamão?
-Como vou saber, Allan? Talvez sim, talvez não. Nunca se sabe – Retorqui –
Ele pareceu-me incomodado com a minha resposta. Novamente caiu em profundo silêncio. Eu podia sentir os seus miolos torrando à procura de algo que fizesse sentido; Eu tinha esse dom de pressentir quando pessoas inteligentes pensavam. E mais anda; Essas pessoas costumavam, depois de concatenadas, disparar flechas certeiras.
-Pois é, Véio. Esse sujeito é um cara tão sacana que provavelmentose também deva ter incluído você no núcleo de pessoas que ele considera compadres, puxa-sacos, e congêneres! Um grande sacana!- Procurou responder num ar de aparente despretensiosidade e com o olhar fixo na minha janela. Parecia que estávamos num jogo de xadrez; ele avançava a sua poderosa Rainha contra o meu Cavalo.
-É! É bem provável que estejas certo, Allan! – Para mim não havia outra saída se não assimilar o movimento e tentar livrar meu nobre quadrúpede. Novamente nos mantínhamos em silêncio quando eu arrisquei uma jogada arriscada; eu tentaria pegá-lo desprevenido:
-Ah, e por falar nisso, quem ganhou, Allan?
-Ganhou o que, Veio? Do que você está falando? – Inquiriu surpreso
-Porra! To falando da partida de gamão! – Atirei sem olhar pra ele, mantendo-me concentrado na janela. A sua rainha dançava no tabuleiro procurando safar-se do meu ataque com a Torre.
-Ah! Aquela partida acabou em empate técnico. O cansaço nos fez desistir. Nem eu e nem meu oponente! - Sentenciou, recolhendo a Rainha e a coloocando à salvo num movimento defensivo.
Novamente caímos em silêncio e ele pensava. Não era um bom sinal. Então disparou:
-Pena, né China? Você não conseguiu assistir aquele partida porque estava ocupado com os seus “bom dia” para uns e outros. Sabe, admiro muitíssimo essa sua amabilidade otimista -
O filho da mãe encontrará uma brecha e me atacava com o Bispo. Por instantes pensei, analisei mas não vi perigo nesse movimento.
- Amabilidade otimista? - O que isso quer dizer, Allan?
-Bom..eu quero dizer que aquele dia estava horrível. Desaguava uma terrível tempestade enquanto os trovões urdiam nas calçadas, avenidas, parques municipais. E os raios então? Caiam por todos os cantos! Não se lembra disso, Véio?
-Não, não lembro! O tempo estava tão ruim assim, Allan?
-Putz! Que memória fraca, heim China? Você quando entrou no Bar estava completamente encharcado pela chuva. Até espirrava! Lembra agora? - Perguntou-me num tom de gozação.
Ele executava um movimento interessantíssimo com o seu Cavalo. Só restou-me salvar um peão que eu tentara colocar estratégicamente.
-Ah... é mesmo! Você têm razão! Agora me lembro. Lembro perfeitamente – Correto, Allan.
Ele me abalara; sabia disso. Vinha pro ataque com um arsenal de jogadas previamente ensaiadas por sua capacidade de tramar. Não falamos mais nada, constrangidos, quando, decidido voltei-me para ele.
Eu olhava para ele enquanto ele persistia olhando através da minha janela a paisagem de concreto aparente, afinal, ainda estávamos no fundo e à dezenas de metros da superfície. Estrategicamente ele não deu conta da minha presença em observá-lo, portanto retornei à posição original. Aí foi a sua vez de virar-se e olhar para mim. Claro que igualmente não lhe causou surpresa o fato de eu continuar admirando as mesmas paisagens subterrâneas do Metrô. Assim que trem abandonou as trevas e alcançamos a luz as nossas feições deixaram de ser sombrias e soturnas. Parecia que a claridade do sol havia dado algum promissor sentido ás nossas presenças.
Levantei-me, afinal a minha estação seria a próxima. Assim que sai do meu lugar eu o olhei e o surprendi com o olhar cravado em mim. Então nos olhamos com simpatia, cordiais, como se nos dissessemos: " O time! Tudo pelo Time. A unidade é o que importa" - Naquele momento embaralhavamos todas as peças do tabuleiro de xadrez. Não havia vencidos e nem vencedores. Antes de ganhar o corredo lhe convidei:
-Allan, topas um blood mary com Sputnik, na próxima sexta, la no Bar?
-Sputnik? Que é isso Veio?
-Ah, é uma vodka nacional que eu gosto! 16 mangos a garrafa - Respondi
-Claro, Véio! Mas sob uma condição!
-E qual é? – Eu quis saber
- Que me acompanhe num Chateau Fombrauge Saint Emilon Grand Cru 2005!
- Chateau Fombrauge? Que diabo é isso, Allan?
-Ah! É um vinho francês! 1 barão e meio a garrafa – Respondeu com um sorriso e sem ostentar qualquer afetação de grandeza.
-Putz... - Foi a única coisa que consegui responder.
-Então, ta combinado! Até la, Allan! – Despedi-me dele; Eu havia chegado ao meu destino e a porta me aguardava aberta.
-Combinado! Até la, Véio! – Ele retribuiu com um sorriso e um aceno de mão.
Ao sair da estação do Metrô, duas certezas me acompanhavam:
Ele faria o possível para segurar as tripas e não botar goela afora o meu bloody com a Sputnik.
De meu lado, eu tentaria esquecer que a grana que ele pagaria por aquele vinho garantiria os quatro meses do meu aluguel, em atraso, evidente!
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