terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Bar do Escritor visto através da janela do metrô

Notei que um  rapaz me olhava ostensivamente na plataforma de embarque do metrô, ali, na estação Sé.  Parados, aglomerávamo-nos  numa grande quantidade  de pessoas que aguardava o metrô das 6 da tarde. Afinal, terminado a jornada de trabalho as pessoas queriam voltar para suas casas. Tudo poderia acontecer à partir daquele horário,  inclusive,  entrarmos na composição sem sentirmos nossos pés tocando o chão, num estado de levitação,  não por dom, é claro, mas  soerguidos pela turba que ao abrir da porta automática entraria  enfurecida, sedenta pelo banho das 7,  jantar das 8  e a novela das 9.   Assim como previ me senti  levado por eles ao entrar. A ansiedade e impaciência das pessoas faziam-nas semelhantes a uma manada se refugiando no vagão como se ali fosse um lugar  seguro e onde pudessem se safar dos capatazes e o sons dos  porretes num matadouro.
Milagrosamente do lado de dentro, mas,  mal acomodado, eu sinto um dedo estacando o meu ombro esquerdo. Olhei;  era o rapaz.

-Desculpe, mas o senhor não é o Veio China, do Bar do Escritor?

-Sou! – Respondi lacônico.

-Pois é! O reconheceria em qualquer parte do planeta. Impossível confundi-lo  com essa aparência cansada e óculos de lentes negras e redondas.

-Pois é! Também não confundo-me comigo  – Devolvi sem olhar para ele.

-Desculpe-me aborrecê-lo seu China! É que eu também faço parte dessa comunidade, e, apesar de não postar, eu os leio.

Olhei-o com algum estranhamento. Porém, o que ele acabara de mencionar vinha  reforçar a minha teoria sobre muitos dos anônimos da comunidade; eu acreditava que centenas deles  não postavam por não terem culhões o suficiente ou  excessivo receio de  sentirem-se feridos no caso de críticas ácidas aos seus textos. Em todo o caso o meu amigo parecia querer continuar falando:

-Sabe,  bem que gostaria de postar algo meu, principalmente os meus poemas, que são razoavelmente bons, garanto, mas que fatalmente seriam discriminados por lá.   Disse  com voz  empostada. Não soube discernir o motivo, mas ele me soou falso como um diamante de zircônia.

-É só a insegurança que te impederia de  postar? – Questionei

-E já não seria o suficiente, seu China? Sabe, vocês me lembram uma confraria, um clube privê. E com os novatos então? Acho que são severos demais com os que postam pela primeira vez.  Às vezes as poesias são ótimas, mas parece haver algum prazer ásperero nas críticas que tecem.  E isso, ainda quando se preocupam em comentá-los, pois muito comum são os seus textos   mofarem pelos cantos  e lá permanecerem no aguardo de uma ou duas almas caridosas que se interessem.

-Epa! Pêra lá!....não é bem assim! – Argumentei.

Evidente, apesar do exagero,  sabia por experiência que ele tinha alguma parcela de razão. E sabendo, não me senti excluso da sua observação, mesmo que a realidade  não fosse exatamente àquela. Talvez por perceber o desconforto com seu comentário procurou amenizar.

-Não falo exatamente do senhor, seu China. Não é sempre, mas percebo que o senhor vez ou outra se esforça para não fazer parte do grupo dos indiferentes e dar uma força para os novatos.

-Sim, não, mas, mas.... –  Eu ainda tentava refutar a sua argumentação, porém, sem conseguir o efeito desejado; parece que havia a necessidade de expelir o que o incomodava no Bar. Sua boca era uma máquina de se abrir e fechar, e ele  falava como se fosse rajada num deserto,  como se tivesse na boca  pentes de metralhadora no lugar da dentição alva e regular.

-Mas, mas o que, seu China? Não há o que o senhor possa defender. São visíveis os grupelhos que se formam por la. Mesmo no senhor eu noto um trânsito esforçado para uma  política de boa vizinhança com as mais diferentes correntes. Às vezes saltita tanto que me faz   lembrar um vereador numa praça pública   pedindo votos para releição! - Disse-me com um ar de malícia.

-Euuuuuu? – Tentei me defender.  Que diabo era isso? Mais que a um comunitário, eu tinha topado com um verdadeiro psicólogo de ambientes literários.

-É sim seu China! E toda essa politicagem de vocês afasta os intencionados em postar alguma coisa. – Concluiu com feição enfastiada.  Evidente, as azedas críticas do rapaz despertaram  em mim alguma curiosidade sobre ele.

-Vem cá! Quais são esses grupelhos que você insiste em ver formados por lá? – Cutuquei-o.

-Óras! São tanto que  não vê quem não quer!  Tem a ala dos compadres, onde qualquer coisa se faz pretexto para um bom dia, mesmo que o dia esteja péssimo e chuvoso. Tem o grupo dos visitadores compulsivos, melhor dizendo, a ala da reciprocidade mútua. Tem o pessoal que nutre  antipatia gratuita por qualquer um que escreva. E por fim  há o Clube do Gamão!

-Clube do Gamão? Que porra é isso? – Eu quis saber

-Ah! É aquele grupelho de sete ou oito escritores que não comenta ninguém, salvo os seus parceiros de jogatina, ou àqueles que julgam estarem ao seu nível intelectual.

-Ah sim!... você os trata como o Clube do Gamão! –  O termo reverberava em minha mente, então  sorri.

Bom...até que nesse ponto eu teria que concordar com ele. Quanto a isso só nos diferenciavamos na nomenclatura do tal núcleo; para mim eles eram o  “The Gallery” a turminha do José Victor Oliva.

-É sim seu China! É a turma do Gamão, sim! – Ele repetiu  ao reparar que eu sorria – E continuou -  Ah! também me divirto com a  sua postura diante do senhor Ruy Barbosa, da comuna. Ah, seu  China! Para não confundir o "cabo da enchada" com a "bunda inchada" esclareço que nada a ver com o poeta Ruy, que é um excepcional escritor. Estou me referindo sobre àquele  sujeito que deita e rola em textos rebuscados, eruditos, inclusive já li diversas de suas postagens onde critica o abusivo zelo literário do rapaz – Disse-me olhando pelo rabo dos olhos.

Momentaneamente percebi que ele tentava  me provocar. Talvez  quisesse ver aonde eu
iria desaguar.

-O Senhor acha mesmo que o rapaz escreve aqueles textos cheios de erudição após a consulta de um dicionário? – Insistiu  e depois concluiu-  Também tem uma ou outra coisinha sua que leio e logo penso; o Véio andou visitando o Aurélio.

Eu sabia! Agora sim eu pude sentir o seu ar de galhofa!  Simplório, eu estava permitindo que o meu telefone interno só desse ocupado.  Portanto era mais que a hora de deixar cair a ficha cair. Aquele rapaz estava simplesmente zombando de  nós e da comuna como um todo. Esperto, sob o  pretexto de me adular comparou-me aos políticos. E convenhamos; acho que não há nada pior nos dias de hoje que ser comparado a um político. Além disso ele criticava todos aqueles que tinham suas preferências e o hábito de se lerem mutuamente.  E ainda não satisfeito meteu o pau na turminha do Gallery, ou melhor, do “Clube do Gamão”. Porém o inconcebível foi ele pretender tirar um sarro em mim e  no “Sr. Camões”,  um desafeto meu, porém, mais por questões conceituais  sobre a linguagem do escritor ante uma literatura de vanguarda.
Claro, poderia até concordar com o rapaz  na questão de mantermos diferenças literárias com um ou outro, porém, nisso nada há de pessoal. E nesse caso a minha birra com o caro escritor era com  o desnecessário e exacerbado  uso semântico com um  prazo de validade extinto na primeira parte  do século passado. Inclusive porque nos dias de hoje é impossível imaginar que possam haver interlocutores para esse tipo de linguajar, talvez nem na própria ABL. Portanto, para mim,  algo não natural, que me soava falso, porém viável ante  a consulta  de bons  dicionários.  Contudo, isso era um problema interno e não para estar sendo discutido dentro de uma composição de metrô e com alguém que  eu nem conhecia, ainda mais num dia calorento de horário de verão.

Repentinamente a acidez de suas críticas me fez sentir  incomodado com a unidade. Sacam esse lance de termos o nosso time e  mantermos uma rivalidade agressiva contra torcedores de outros times? O nosso time e os nossos jogadores são os melhores -  costumamos pensar -  Pois é! Contudo, há senso de unidade, espírito de equipe, maior que nossos times. Como? Para isso nos bastaría nossa seleção jogar contra uma Argentina e ganhar com um gol no apagar das luzes, de preferência  aos 47  do segundo tempo. Acreditam que nos importaríamos  quem  foi o jogador que fez o gol  da redenção? Claro que não! Tanto faria se esse jogador fosse do nosso ou de algum time que não gostássemos. Entenderam do que falo?
Portanto foi desta forma que senti que ele nos colocou em xeque a  nossa unidade. E, terminantemente; isso eu nao  permitiria.

-Escute aqui meu rapaz!  Qual o seu nome? – Perguntei-lhe com severidade no olhar.

-Alberto Margarida Vera! – Respondeu-me com altivez enquanto  olhava para o seu reflexo na janela do trem.

Depois espalmou as mãos, esticou os dedos e os penetrou nos fartos cabelos loiros com alguns reflexos castanhos escuros; obviamente um bom trabalho em algum salão de renomados cabeleireiros. Pela primeira vez ele me parecia um escritor na excepção da palavra; ególatra, prepotente, arrogante, e isso me irritou profundamente.

-Pois bem senhor Norberto Tulipa Primavera! - Primeiro; eu quero que o senhor vá à merda! Segundamente, como diria Odorico Paraguaçu, crie vergonha  e deixe de escrever poeminhas que a secretária da tua firma deva achar duma sensibilidade dilacerante  e desfaça-se de sua covardia e vá lá enfrentar aquela cambada de desajustados!  Vamos ver se o senhor é bom, mesmo?  E...té loguinho!

Disse-lhe ao ver a porta do metrô se abrir e descer numa estação que nem a minha era.
Lembro da perplexidade deu olhar ante a minha reação.
Saindo, olhei-o através do vidro da janela. Ele também me olhou, e, simplesmente assim que o carro partiu ele me mostrou a língua. Eu apenas sorri, acendi um cigarro e dei uma tragada quando um dos seguranças me chamou a atenção, indicando com o dedo uma pequeno adesivo colado num dos pilares do saguão - PROIBIDO FUMAR - podia se ler.  Um tanto sem graça desculpei-me e joguei o cigarro  nos trilhos e fiquei o vendo arder, atento à fumaça que subia entre as pequenas pedras cinzas e se dissipava no calor do ar.
Depois sentei num dos bancos da plataforma e deixei passar outras três composições que levariam ao meu destino; eu ainda revivia aquele conversa sem pé e nem cabeça.
Ah, quanto eu gostaria de criticar um sujeito daquele num primeiro dos seus trabalhos na comuna. Indiscutivelmente a natureza vingativa não me faria se manter  imparcial nessa primeira vez, ao menos.

Continuei ruminando o assunto; Eu não poderia me esquecer aquele nome para no caso dele surgir na comunidade.  Eita! Qual era o seu nome  mesmo? Ah sim! “Humberto Hortênsia de Mera” – Sorri ao exclamar.  E foi sorrindoque  me recordei duma canção da Gal num dos primeiros festivais de MPB na  Record. Estávamos no início da década de 70, e,   ela cantava " É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte"
E Gal estava certíssima naquilo que bradava.
E era assim que se fazia necessário ser; forte e atento.

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