sábado, 9 de abril de 2011

Flagrantes da virtualidade consentida

Tudo estava como devia ser. Banho tomado, cabelos aparados e os inconfundíveis óculos escuros apesar de estarmos em plena noite. Também me perfumara com farta porção de Paco Rabanne, apesar de nem haver a necessidade.
Já era hora, aliás, passara da hora de conhecê-la menos virtual que até então.
Naqueles dois meses de chat em uma sala de bate-papo travei contato com sua alma e ela se abriu como as asas de borboleta num voo inicial e discorreu seus sentimentos e flertou-me com frases carinhosas e de fácil assimilação.Evidente e como era de se esperar na última de nossas conversas trocamos nossos endereços de msn.

Sentei  ao rack ansioso como uma criança que assiste o seu primeiro filme da Walt Disney  e retirei o equipamento da embalagem e li o manual de instruções e o acoplei ao meu antigo notebook seguindo as instruções do fabricante. Isto posto coloquei o CD de instalação e depois de pronto testei o microfone e a webcam. Com tudo funcionando ajustei o brilho e uma tonalidade menos densa em cor e de forma a me deixar mais amorenado que propriamente sou. Daí foi só domar as expectativas e conectar àquele programa de comunicação utilizado por 10 entre 10 internautas,  e apesar da minha pouca experiência com câmeras tive a certeza que aquela configuração escondia  os pequenos orifícios em meu rosto e outras perceptíveis imperfeições. Com tudo pronto estava chegando o momento de conhecê-la, e eu torcia para que tivesse uma webcam, para não continuarmos naquele esquema de fotos estáticas e visíveis num chat, mas sim vermos com nossos próprios olhos os trejeitos do ser, a expressão do olhar, os contornos dos lábios e aquilo que me sempre foi fundamental, ou seja, a  forma de sorrir.

A angustiante espera me apavorava, portanto, para abrandar o anseio  fui à cozinha e de lá voltei a munido de duas garrafinha de Ice da Smirnoff. Decorridos 20 minutos eu a aguardava online e a ansiedade me tomava, então da segunda  pra  terceira, e da quarta para a quinta garrafinha de Ice  foi vapt e vupt. Olhava atentamente para a tela e a dona não aparecia, e a  minha agonia dizia que aquela bebida continha muito açúcar, portanto voltei à geladeira e peguei duas Skol e retornei para o notebook. "Era doce, mas era gostoso, porra!" - Disse para mim ao terminar a segunda latinha de cerveja - " Bem...e se misturamos o Ice e as cervejas?" - Questionei - "É...é boa ideia " - Convenci-me. Portanto lá fui eu para cozinha e voltei com mais duas Ice e um par de latinhas de cerveja. E a espera persistia e a dona não aparecia e ao terminar as bebidas retornei mais duas vezes á cozinha. Portanto não seria necessário mencionar que  ao fim dos primeiros oitenta minutos eu estava bêbado.

Plimmmmmmmmmm – No canto direito inferior direito do meu notebook um aviso  visual seguido de um som de fliperama indica que Manuela, uma loira de mais ou menos  35 anos acabava de entrar online.
Sim, era ela.

-Oi, Augusto, boa noite! desculpe o atraso. Tudo bem com você? - Apuro as vistas e leio na tela a sua saudação

-Tudp mwu amorr. E vpcè? To morrwmdp de saidade de bocé – Respondo, aliás, eu não, os meus dedos. e por intuição.

-Hã, como assim, o que você quis dizer  com isso Augusto? – Ela parecia não entender as frases que eu me esforçava por digitar

-É tap sinpled  de emtander queruds, tá tudi aí! - Tentei explicar

-Hã? - Ta gozando com a minha cara, não é Augusto?

-Nap! Clsro quy nai meu samor! Jamaid! - Justifiquei

Lógico, achei que lhe faltou um pouco de boa vontade, afinal, mesmo que não entendesse as  palavras não seria  impossível para qualquer inteligência mediana  utilizar o poder de dedução, ou, no pior das hipóteses substituir os caracteres  errados  pelos vizinhos para que entendesse perfeitamente, apesar de saber que o trabalho seria maior.
Logo notei que não iríamos longe na interação, pois meus dedos incertos tocavam teclas que pareciam dançar rumba. Enfim, se pretendesse interagir com a linda moça da foto era necessário parar de digitar, afinal, não fora para isso que me preparara à noite toda? Portanto seria aquele o grande momento, e então  percebendo o ícone indicativo de sua webcam enviei o convite para a liberarmos as nossas câmeras, já que estávamos em condições de igualdade. Minha pulsação acelerou e eu ofeguei   quando Manuela aceitou o convite e alguns segundos após lá estava ela em carne e osso, maquiagem e resolução. Definitivamente Manuela era um pedaço de mau caminho.

-Auguuuuuuuuuusto! É você? – Ela exclama num sorriso bom.

-Zzzuzu bem meu amor? - Respondo sem precisar digitar, via microfone, atropelando palavras e com a fala de quem tivesse um ovo cozido na boca. Pelo jeito não eram somente as teclas e os  dedos que estavam com problemas.

-Augusto, por que desses óculos escuros? Por acaso você é deficiente visual?

Foi então que dei por mim ao me olhar atentamente no vídeo do canto esquerdo da tela. Nos meus olhos a  armação metálica e as lentes negras e redondas me conferiam a aparência dum gangster distrital. Nos ouvidos os imensos fones  estouravam meus tímpanos com a “Wont¨t get fooled again” do Who. Assim que percebi o ridículo da situação tentei disfarçar e tirei os óculos, desconectei os plugs do fone de ouvido  e o retirei da cabeça. E óbvio, ao tomar essas medidas acabei por  trazer a música para um som ambiente.
A essa altura os meus olhos brilhavam, e não somente de ansiedade, mas também pelo estado de torpor.
Ao lado direito e esquerdo do rack se aglomeravam alguns pares de  garrafetas de Ice e outras tantas de latas de cerveja, todas vazias. E com a noite extremamente quente deixara os botões da minha camisa negra abertos até a altura do umbigo e isso deixou à mostra os grisalhos pelos do peito de alguém com pouco mais de cinquenta anos. Ao me ver sem os ósculos ela exclama:

-Uiiiiii Augusto! – Você é maduro, tem um olhar insinuante e é bonitão! Que tórax forte você tem!

-Você acha  meu amor? - Respondi ainda tropeçando nas palavras.

-Acho! Ah, vem cá, que música mais barulhenta é essa? Parece que estamos na pista de pouso  do Galeão! Posso ouvir as turbinas daqui.. Quem são esses metaleiros horrorosos? -  Manuela me pergunta colocando ambos os indicadores nos seus ouvidos.

-Essa é a "Uante guét fuuled Aguém" E a banda é o De Hu  – Respondo num inglês incompreensível e continuo meneando a cabeça e compassando o solado do tênis  direito ao chão na mesma batida da bateria.

-Nossa! Que música pavorosa! Que péssimo gosto musica você tem, Augusto! – Ela disse com cara de insatisfeita. Depois me pergunta – Ah, você não tem aí alguma coisa de Daniel, Zezé di Camargo e Luciano, Chitão e Xororó? Acho eles tão românticos!

-Hã? - Dignei-me a responder.  Por Deus! Aquela mulher só poderia estar louca. Onde estava aquele oceano de sensibilidades que me falava coisas tão inteligentes? Zezé di Camargo e Luciano, não me faltava mais nada.  Mas, infelizmente não parou só por alí.

-Você fuma? – Questionou num tom professoral ao me ver colocando um cigarro na boca – Isso causa câncer, além de um mau hálito desagradável, sabia? - Complementa torcendo nariz e boca.

Foi outro choque para mim! Traguei o cigarro e expeli uma longa baforada e a fumaça serpenteou à frente da tela e eu olhava pra quela figura atraente e  me fixava no vão do decote generoso dum tomara que caia de alças onde seios fartos e redondos pareciam suplicar por liberdade. Sim, a impressão que tive é que eles queriam se ver livres como os  pássaros, afinal era  visível a olho nu  que seus seios eram dois números maiores que o sutiã que vestia. E  digo isso porque também deu pra ver uma parte da peça vermelha e com a  bordas rendadas.
Manuela percebeu que eu olhava, então deu um jeito de deixar o decote e os seios mais á mostra. Inesperadamente disse que não se sentia bem com aquela a roupa e me pediu licença e se levantou e pude reparar os contornos do seu corpo voluptuoso. Ao sair rebolou as nádegas empinadas que se ajustavam esplendidamente num desses trajes femininos em cotton. E seguida ouvi o ranger da porta de um guarda roupas e pela sombra projetada na parede notei que trocava de roupa. Passados alguns minutos ela retorna com uma blusa ainda mais decotada juntamente duma saia amarela rodada e de talvez quatro ou cinco dedos acima dos joelhos. Diante a surpresa dos meus olhos esbugalhados  afastou-se da webcam o suficiente para manter o seu corpo em foco e deu duas voltas sobre o próprio eixo e sua saia subiu permitindo-me ver rapidamente uma sensualíssima calcinha negra. Depois com um jeito de mulher fatal  penetrou os dedos nos cabelos e os empurrou para trás como se fosse Ingrid Bergman, uma das musas do cinema dos anos 50.

-Manu, vou me ausentar um pouquinho, mas volto num minuto - Foi a minha reação.

Claro, mesmo  bêbado eu estava excitado e alguém parecia ganhar vida por debaixo da cueca,  todavia não pretendia dar bandeira,  não naquele momento. Saio da rack um tanto trôpego e com a mão cobrindo a frente da bermuda  vou à cozinha onde dou um tempo e depois volto com outro Ice e mais uma cerveja. Olho para o monitor e Manuela não se encontra em sua cadeira giratória,  mas deixa sua  impressões registradas na tela do msn.

“Augusto, to reparando que você bebe um bocado. Homem, isso pode te matar, apodrecer teu fígado. Quanto ao cigarro, já te falei e todos devem te falar,dá câncer, além do mau hálito e dentes amarelos. Agora... to achando extremamente juvenil uma pessoa na sua idade estar curtindo rock pesado. Isso nada mais é que barulho, é transferência de crise existencial adolescente, sendo que você não é adolescente. Você não percebe que já passou da idade?”

Porra! Eu não acreditava no que estava lendo. Tantas mulheres para conhecer e eu fora dar com uma do tipo - "Mamãe é gostosa e te quer" -  mas cheia dos  - “ Mas mamãe não gosta disso” -   E o pior, a severidade das suas críticas se assemelhavam à somatória de tudo que pode tolher a liberdade e o bem estar  de um homem. Em poucos minutos Manuela exercera a profissão de crítica musical, odontóloga, psicóloga, médica oncologista, hepatologista e personal trainer, dessas que malham doentiamente ao acreditarem que a saúde perfeita se adquire nas malditas esteiras ergométricas (sim, eu havia visto uma ao fundo, no canto direito do seu quarto) Se por acaso Manuela curtisse Yoga  fatalmente eu desconectaria o meu msn.

Repentinamente perdi a vontade e o encanto de conversar com Manuela. Ela retornou e apenas ficamos nos olhando enquanto as músicas se sucediam uma após outra. Porém para não desagradá-la por completos coloquei as canções  mais maneiras do `Pink Floyd, Led Zeppelin, Purple e do Genesis do Peter Gabriel. Ainda    não recordo se foi sonho, mas passou algum tempo e me peguei ligado e de olhos bem abertos e nossas câmeras ainda permaneciam abertas, porém ela não estava lá, mas tinha a nítida  impressão de tê-la visto se desfazer da blusa e da saia.  Olhei para mim e a braguilha de minha bermuda estava aberta, mas não havia nada que denunciava que houvera algo de sexo. Mesmo que tenha sido sonho as lingeries eram deliciosamente devassas e os seus seios  simplesmente mágicos. Ainda me lembro de ter tomado outra garrafeta de Ice e uma latinha de cerveja, tê-la esperado por alguns minutos antes que apagasse de  vez.
Acordo três horas e meia depois ao me sentir incomodado com a friagem da madrugada. Olhei para todas aquelas garrafas e latas vazias e pensei – Ainda vou morrer disso -
Concentro o olhar na tela e não mais havia a webcam ligada e nem Manuela, mas sim e apenas a  página offline do MSN e um recado deixado em caixa alta:

“AUGUSTO   VOCÊ  É  O FIM  DA  PICADA. UM SUJEITO VELHO, BÊBADO E DESINTERESSANTE. E O QUE É PIOR...ALÉM   DE BABAR,  RONCA!  BYE”

Sim, acabei sorrindo. Foi a última vez que falei com a devorada de sujeitos bêbados e idosos, se é que realmente tenha existido aquele fantástico strip-tease de lingeries negras.
Talvez eu não precisasse de virtualidade, mas somente daquilo que tinha e que era só meu; cigarros, rocks e algumas bebidas. Talvez eu precisasse de muito mais.
Talvez eu devesse me enquadrar à normalidade e ao que pessoas aparentemente sensatas aguardam de outras que não aparentam sensatez alguma.
Talvez o universo virtual detivesse o tom da contradição, o dom de fazer parecer o que é insano em algo perfeitamente viável, e aquilo  que é correto em coisa sórdida e feito na cabeça de malucos.
Pela primeira vez pensei em jogar o meu notebook fora e tentar a sorte no Bingo da esquina. Pensei naquilo por segundos e desisti, pois estava muito velho para abrir mão de pequenas futilidades, e não precisava de sorte  ou do prêmio da milhar completa, mas sim apenas de compreensão.
Porém... bem, porém, os anormais não se rendem jamais.

Tirei a bermuda e me olhei e reparei nas minhas pernas e apesar de uma ou outra artéria sutilmente azul a musculatura ainda não aparentava a idade que tinha. Olhei para trás e tentei ver a minha bunda, porém sem saber o motivo, afinal, quem se preocupa com o glúteo são as mulheres.
Fui ao banheiro dei uma mijada, escovei os dentes, lavei o rosto e me dirigi para o quarto. Lá puxei a colcha e o coberto e entrei para dentro e uma sensação agradável e quente me tomou; era a hora de completar  o sono que me faltou. Antes de dormir olhei para o teto á procura de aranhas e não havia qualquer vestígio delas. Ainda pensei em rezar, já que há muito eu não o fazia, mas desisti também;  Provavelmente ele não perderia o seu tempo com alguém como eu.

Antes de ferrar no sono relembrei o obsoletismo do meu note e da chatice de ficar ajeitando a webcam  numa posição que me favorecesse. Sim, pensei e resolvi que seria hora de economizar com as bebidas e adquirir um note de última geração, desses que já vem com câmera e o microfone embutido. Tal como nós as máquinas se tornavam ultrapassadas e eram substituídas sem qualquer apego por outras  mais novas e de tecnologias recentes. Revi todos os conceitos e percebi que mesmo que evitasse a rota da velhice também me tornava obsoleto, pois em sã consciência jamais correria contra alguém com 23 de idade. Mas o que era obsoleto para um obsoleto se vestiria de novidade para algo recente como o meu neto que, adoraria inclusive o fato da webcam estar inclusa no pacote de doação.

-Pô, vô, que bacana! Obrigado! Agora dá pra conversar e ver os meus colegas e amigas de classe com essa câmera! - Fatalmente ele me diria em agradecimento vestido  do mais belo dos seus sorrisos.

-Creison, tem certeza que não utilizará essa webcam pra qualquer safadagem? - Perguntaria para ele, preocupado, óbvio.

-Com assim, vô? - Ele me questionaria com olhos surpresos mas sem perder o sorriso nos lábios

-Nada não, Creison! Nada nao! - Eu responderia para ele, esquecido por instantes que o fedelho só tinha a pureza dos dez anos de idade.



Copirraiti 11Jan2013
Véio China©

2 comentários:

Celia R. Domingos disse...

PRESENTE!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Particulamente eu não curto contos rss...enredos, crônicas e afins rss...Porém hj pude me deparar com esse blog que a algum tempo inclui entre os favoritos, mas não parei para ler seu conteúdo. Aplausos! Fiquei satisfeita com que li, entre outros esse texto em particular...vc possui dois extremos porém não é extremista rss e isso não chega ser dúbio rss...Vc consegue trazer uma atmosfera subjtiva e que conduz o leitor à fantasia ao mesmo tempo que aborda sutilmente histórias corriqueiras....Parabéns...Mais ainda prefiro o texto mais recente rs.