sábado, 27 de novembro de 2010

Rio 40 graus!

Bexigas amarelas, verdes, azuis estouravam ao contato de ínfimos gravetos colhidos no chão de terra. – A gurizada se deleitava entre brincadeiras de pega-pega e de pular cavalinhos. Surpreendentemente no aniversário outro balão acabava de espocar. Um balão humano e de sorriso arteiro mesmo  lhe faltando um dente. O que se viu foi o sangue esvair e manchar de encarnado o corpo pequeno e frágil de pouco mais de sete anos. O gosto da morte se apossou de tudo; do bolo de chocolate aos sanduíches de cachorro quente.
Nas vias de acesso ao morro homens fardados numa mescla de tonalidades do verde empunhavam metralhadoras poderosas pondo em polvorosa toda a comunidade. A cena era de terror. Tiros espocavam morro abaixo, morro acima. Nas ruas, veículos incendiados  pelas mãos do tráfico como se fossem tochas de balões indicando o aviso fatal;  Estamos aqui, venham nos buscar!

Mais tiros à deriva se ouviam numa possibilidade infinda de ceifar outras vidas  ou atingir  outras gentes inocentes de tal gravidade que  nunca mais recuperassem seus movimentos.
O cheiro da morte persistia na atmosfera. O vento sul  soprava nos estreitamentos daquelas vielas  deploráveis,  silêncio apenas entrecortado pelo trotar das ágeis pernas dos soldados e das vozes estabelecendo comandos. Nas entradas dos barracos nenhum morador;  todos enfurnados para dentro de suas portas de madeiras compensadas,  reclusos no próprio medo. Nas escadarias nenhum agrupamento de crianças, suas algazarras, muito menos o som pueril de seus pés serelepes escalando os degraus que as levavam morro acima.

Perto dali os braços abertos de uma estátua descomunal pareciam assimilar a violência.
Ela nos olava. Olhos pétreos que à tudo percebia e que pareciam chorar as mesmas lágrimas das nuvens, contudo, impotentes, e mesmo em  sendo o Cristo, não pôde fazer.

No dia seguinte em meio ao trânsito caótico e na frieza dos envidraçados corredores das segundas feiras, homens fardados e autoridades civis se pronunciariam ante um batalhão de repórteres e microfones e TVs. Naquelas horas das mais tristes onde se perdeu gente inocente e não se chorou por filhos que não eram deles,  se baseiam em estatísticas para amenizarem o caos que nos vemos expostos-  “ Neste ano, se comparado ao  mesmo período do ano anterior,  veremsos que as mortes ocasionadas pela guerra do tráfico” reduziram em 25%  – Dirá um deles  dentro dum terno de boa marca e um sorriso eficiente.

Para eles, acostumados a estudar a desgraçada alheia como mero número estatístico  pouco importará que estejam há poucos momentos do laudo do  IML com o resultado da “causa mortis” da criança aniversariante – “Disparo de projétil de arma de fogo - calibre 38” –  Certamente confirmarão os caracteres de um laudo  gélido ante a insensíbilidade alva da folha de um computador.

Nos céus o sol continuará cintilando, forte,  desumano, 40 graus,  enquanto  as areais se enamorarão das ondas sob os olhares plácidos de mulheres que se bronzeiam em toalhas estiradas. As agitadas ruas de bairro acolherão os feirantes que bradarão  suas bacias de um real.  No alto, o Redentor continuará de braços abertos numa postura impassível para mais um dia das sabidas desgraças.
Nas vias, casas e escritórios outras guerras acontecerão, sejam elas do tráfico, de casais, de pais e filhos, amigos e inimigos,  ou mesmo,  dos chefes e seus subordinados.
Muitas sirenes se farão ouvir. Muitos choros  serão inaudíveis viscerando apenas um pranto de alma. - " O Rio de Janeiro continua lindo/O Rio de Janeiro fevereiro e março/Alô, alô, Realengo/Aquele Abraço" Gilberto Gil cantará em alguma caixa de som de qualquer  bar de orla. O turista o  ouvirá sorridente  e meneará os quadris numa tentativa  desastrada de repetir com  sucesso os passos vistos num mestre sala vencedor do carnaval.
" O Rio de Janeiro continua lindo" Insistia o poeta.


Copirraiti 2007/2010
Véio China©

Um comentário:

Christiane Freire-Gari disse...

Essa é a realidade da guerra, ao vivo e cores. O cheiro de morte chega até aqui, Hemisfério Norte embrulhando o meu estomago de dor.

China, você sempre beija o meu coração, mas com o Rio 40 graus, tão real, tão forte, algumas balas perdidas se alojaram por aqui...